O primeir outro dia, quando estava na sala de aula, depois de vários dias explicando para os alunos o que é o direito do trabalho, seus fundamentos históricos e principiológicos, quais são as suas normas e institutos, ou seja, quais são os direitos do trabalhador e como o direito do trabalho os protege, um aluno me perguntou: meu irmão trabalha em uma empresa e cumpre várias horas extras, chega a trabalhar em finais de semanas inteiros e às vezes até de madrugada e não recebe as horas extras; além disso, o local onde trabalha é bastante barulhento e ele está ficando meio surdo. O que ele deve fazer?
Sinceramente, não soube responder. Foi dessas horas em que um nó pára na garganta e a gente fica sem fala. Esta é, sem dúvida, uma situação constrangedora, sobretudo, quando os olhares estão voltados para você. A sensação que tinha era de que tudo que eu havia dito até aquele dia não valia nada, pois, sem tentar tapar o sol com a peneira, com respostas vazias de conteúdo prático do tipo, "ele pode procurar o sindicato", "pode entrar com uma reclamação trabalhista", no fundo eu bem sabia, e isto é de domínio comum, que àquele trabalhador restaria apenas continuar trabalhando em horas extras, sem recebê-las e correr o efetivo risco de ficar surdo, com prejuízo à sua saúde e ao seu convívio social, se quisesse manter sua fonte de sobrevivência.
Dentro dos parâmetros atuais da vivência real do direito do trabalho, a resposta para aquela pergunta seria: depois que ele for dispensado, por aplicação do princípio da irrenunciabilidade, ele poderá pleitear seus direitos, respeitando-se, é claro, o prazo prescricional de 05 (cinco) anos e a "obrigação" (ônus) de provar em juízo os fatos que geram tais direitos.
Passemos, agora, ao segundo fato.
Em outro dia, próximo do anterior, recebi o telefonema de um amigo, que me procurava na esperança de que eu, um juiz do trabalho, expressão viva, portanto, do poder estatal, pudesse lhe ajudar na solução do seguinte problema:
- Jorge - disse-me ele -, a empresa em que eu trabalhava há 08 (oito) anos me dispensou e disse que para eu receber minhas verbas rescisórias tenho que entrar com uma reclamação na Justiça do Trabalho. Estou precisando, urgentemente, desse dinheiro. O que posso fazer?
Novamente, a garanta entalou. Podia lhe dizer várias coisas sobre a ligação histórica do direito do trabalho com a formação dos direitos humanos, sobre os princípios do direito do trabalho, com realce para o princípio da proteção, podia lhe falar, ainda, sobre a função social do direito do trabalho, sobre a proteção constitucional da dignidade humana. Para parecer moderno, poderia falar também dos novos paradigmas do direito do trabalho (citando Supiot). Para impressionar ainda mais, poderia tratar da eficácia normativa da constituição (citando Konrad Hesse), da teoria da supremacia das normas internacionais dos direitos humanos sobre a Constituição (citando Piovesan), da força normativa dos princípios e das novas técnicas de interpretação social (citando os autores da moda, Dworkin e Robert Alexy). E podia, enfim, mencionar a atual tendência internacional de aplicação das normas fundamentais e princípios da OIT no ordenamento interno, por obra da jurisprudência, sem o requisito da ratificação. Mas, como a minha pretensa demonstração de intelectualidade não resolveria o seu problema, tive que, mentalmente, ultrapassar esta exposição preliminar e concluir dizend
- Infelizmente, não há nada a fazer. Você vai ter que procurar um advogado; vai ter que propor uma reclamação trabalhista; aguardar a audiência; e, na audiência (daqui uns quatro meses, mais ou menos, para ser otimista) a empresa vai lhe pagar as verbas rescisórias, sem a multa do art. 477, `PAR` 8º., da CLT, sem correção monetária e sem juros, e vai lhe entregar a guias para levantamento do FGTS e seguro-desemprego. Você não pode esquecer, também, que deverá pagar o seu advogado, um percentual (de 10 ou 20%) sobre o valor que você receber.
- Ah, outra coisa - prossegui -, o pagamento será feito mediante proposta de acordo e para a homologação do acordo a empresa, em troca, requererá que você dê "quitação pelo extinto contrato de trabalho".
- É? - indagou-me ele, meio ressabiado.
- É. - respondi e em seguida completei - Isto se tudo der certo, porque pode ser pior. Pode ser que para fazer o tal acordo a empresa ofereça apenas 60% do valor total das verbas rescisórias (sem a multa do art. 477, do `PAR` 8º., da CLT), em três ou mais parcelas, como uma espécie de favor, oferecendo, ainda, como proposta de acordo, a entrega das guias para levantamento de FGTS e recebimento do seguro-desemprego. Você pode até questionar, mas o advogado e o preposto da empresa vão dizer que este é o limite máximo que eles estão autorizados a negociar. No fim, sem alternativa, e diante até de uma certa pressão do juiz, você, premido pela necessidade, vai acabar aceitando o acordo. Ou ainda...
Quando ia continuar apresentando as alternativas realistas para aquela situação, ele me cortou e já um pouco indignado e um tanto quanto frustrado comigo disse:
- Tá bom, chega! Não precisa dizer mais nada. Já entendi. Será, então, que, pelo menos, você tem uma grana para me emprestar?
Tempos depois, refletindo sobre estes dois fatos, aparentemente isolados, percebi que, em razão da avaliação feita para a situação do meu amigo, a resposta que havia dado em sala de aula, mesmo tentando ser realista, estava equivocada, pois a empregadora do irmão do meu aluno poderia, ao dispensá-lo, valer-se do mesmo procedimento adotado pela ex-empregadora do meu amigo e, assim, para que aquele recebesse as verbas rescisórias e satisfizesse suas necessidades alimentares teria que se submeter a uma reclamação trabalhista imposta pela sua ex-empregadora, na qual, segundo sustenta a doutrina, o princípio da irrenunciabilidade já não tem incidência e, então, fazer um "acordo" com para receber as tais verbas, dando quitação das horas extras não recebidas, do adicional noturno, dos domingos trabalhados, do adicional de insalubridade e de todos os reflexos conseqüentes, sem recebê-los, evidentemente.
Dois fatos, que traduzem a realidade cotidiana das relações de trabalho e do dia-a-dia das Varas do Trabalho, são suficientes para demonstrar o quanto a separação entre teoria e prática é danosa para a efetivação dos direitos sociais.
Mas, poderia ser pior: podia ser que a ex-empregadora do irmão do meu aluno utilizasse outro artifício, muito usado por sinal, aproveitando de alguma circunstância específica, de uma falha cometida pelo empregado, ou mesmo sem falha nenhuma, de proceder a sua dispensa por justa causa, para facilitar que a concretização do "acordo" em audiência com valor ainda mais reduzido (às vezes limitado ao "favor" de liberar para o reclamante as guias para recebimento do seguro-desemprego e levantamento do FGTS). No aspecto deste artifício, aliás, impressiona como certos seguimentos da economia, impunemente, só dispensam seus empregados por justa causa, forçando-os a procurar a Justiça, que, sem perceber, acaba funcionando como sua parceira na estratégia de negação dos direitos sociais. E os argumentos utilizados são os mais estapafúrdios (e, pior, muitos deles às vezes "colam"). Só para citar um exemplo, em algumas empresas, que não pagam horas extras - diga-se de passagem - quando o empregado chega 10` atrasado pela primeira vez já recebe uma advertência por escrito, na segunda idem e assim por diante até um dia em que a sua falta ao serviço não é justificada por um atestado (que simplesmente não existe ou que "some" na empresa). Assim, quanto maior o tempo de casa maior a pontencialidade da dispensa do empregado por justa causa, sob o argumento de desídia. Ao longo de anos de trabalho o empregado acaba acumulando advertências, suspensões e, enfim, na última falta, justa causa, que, no fundo, pela tática adotada, é apenas uma questão de tempo. E o Judiciário, como dito, muitas vezes, cai nessa...
Mas, poderia ser pior... Podia ser que o irmão do meu aluno fosse empregado de uma empresa de prestação de serviços, atuando no ramo da chamada "terceirização". Neste caso, seu caminho para receber as verbas rescisórias seria um verdadeiro martírio.
A primeira audiência seria adiada porque a prestadora não foi localizada e o juiz concederia prazo de 10 (dez) dias para que o reclamante localizasse o novo endereço da prestadora.
Após realizado o trabalho de detetive, o reclamante apresenta o endereço e nova audiência é realizada, mas também é adiada ao se constatar que a notificação enviada para o novo endereço retornou com a indicação "mudou-se".
Novo prazo, nova investigação. O reclamante encontra, então, o endereço dos sócios da prestadora, os quais, por óbvio, residem em outro município, ligado a jurisdição diversa. A notificação, mesmo assim, é enviada pela via postal e nova audiência é designada. No dia marcado, novamente, está lá o reclamante (sempre acompanhado da empresa tomadora, que dá uma de "mulher invisível"). A audiência, no entanto, novamente não se realiza, pois também a notificação enviada aos sócios retorna com a indicação "recusado". O reclamante insiste na notificação em tal endereço e o juiz determina, então, a expedição de carta precatória para tal fim (e vão-se os meses...)
Enfim, dois ou três anos depois da data da propositura da reclamação, a audiência se realiza. Mas, o martírio está só no começo. A empresa prestadora, como regra, não comparece ou se comparece diz que não tem onde cair morta. E a empresa tomadora? Esta fica finalmente visível, para "dar de ombros" e arrotar a Súmula 331 do TST.
Reproduz-se, assim, em audiência a mesma segregação e desconsideração da dignidade humana que a terceirização produz no ambiente de trabalho, onde os "terceirizados" são deslocados do convívio dos demais empregados da reclamada; usam elevadores específicos; almoçam em refeitório separado ou em horários diversos; não são alvo de qualquer tipo de subordinação, para, como se diz, "não gerar vínculo"; ou seja, são tratados como coisa ou são simplesmente não vistos. Estão por ali, mas deve ser como se não estivessem. Na audiência, como dito, a tomadora reforça a lógica e diz: "nem sabemos se ela (a dona Maria que por mais de cinco anos varreu as salas dos chefes da empresa) trabalhou para nós"; "temos um contrato com a empresa prestadora, segundo o qual ela nos forneceria um jardineiro, talvez o reclamante seja este `um`, mas não sabemos". Ou, então, pior, resolve dar uma de boazinha e oferece um "acordo": 50% das verbas rescisórias devidas ao reclamante, precedido do argument "reconhecendo que o reclamante nos prestou serviços e como a sua real empregadora sumiu, para mostrar nossa compaixão, temos a seguinte proposta..." Uma vez insisti com a tomadora para que pagasse, no acordo, a totalidade das verbas rescisórias devidas à reclamante, pois era um direito alimentar incontroverso e, afinal, a reclamante tinha prestado serviços a ela e obtive a seguinte resposta: "bom, mas aí qual a vantagem a empresa leva?" "Para ninguém sair perdendo a reclamante tem que dividir o prejuízo conosco."
Mas, podia ser pior... Podia ser que o trabalho tivesse sido prestado em várias empresas tomadoras de forma alternada. Neste caso, além do martírio para se conseguir realizar a audiência e depois conseguir executar a devedora subsidiária, deve o reclamante, antes, suportar os argumentos não de uma empresa tomadora, mas de várias, todas elas, então, com a convicção de uma vinculação com o reclamante ainda menor. Deve suportar, ainda, a pressão de ordem econômica que se concretiza. As tomadoras, todas elas, representadas por prepostos, acompanhados de advogados (todos muito bem vestidos), com suas defesas (com mil e uma preliminares) e inúmeros documentos, que são postos à mesa, para demonstrar ao reclamante a sua insignificância.
As tomadoras, então, apresentam seu discurso favorit "não tenho nada com isto, e se tiver é restrito ao tempo em que o reclamante nos prestou serviços, um ou dois meses"; "a dispensa do reclamante não se deu quando o reclamante nos prestava serviços, não temos, portanto, nada a ver com suas verbas rescisórias".
Aliás, na linha de que tudo pode ser pior, pode ser que o reclamante, quando dispensado (prática não incomum e por certo proposital) estava, como se diz, na "sede" da prestadora, de plantão, ou seja, sem estar trabalhando em nenhuma empresa tomadora. Neste caso, então, na audiência, todas elas se dizem irresponsáveis pelas verbas rescisórias pleiteadas pelo reclamante.
E, por aí vai a "luta", sem fim, do capital para negligenciar o direito social do trabalhador (geralmente, pouco mais de R$1.000,00). Outro dia, em audiência, ouvi uma nova. Disse uma das tomadoras: "queria argüir a prescrição bienal porque o reclamante deixou de nos prestar serviços há mais de dois anos da data da propositura da reclamação". E, em outra, a prestadora contratou a reclamante por meio de uma empresa de trabalho temporário... Como diria o Simã é mole?
Depois que todos, juiz, advogados (incluindo o do reclamante) e prepostos, começam, em audiência, a falar a linguagem jurídica incompreensível para o reclamante, fácil perceber, que este se sente sufocado e só quer sair daquele lugar o mais rápido possível. Na sua mente, apenas Kleiton e Kledir: "tudo que vier, eu topo, tudo que vier, vem bem!"
Mas, poderia ser pior... Podia ser que a tomadora fosse um ente público. Além de não oferecer o pagamento espontâneo das verbas rescisórias, ainda viria com novos argumentos extraídos da Lei n. 8.666/93 e valer-se-ia do permissivo legal (inconstitucional, é claro) de recorrer sem pagar custas. Neste aspecto, no entanto, uma ressalva se impõe: a circunstância de estar o trabalhador prestando serviços, por meio de terceirização, ao ente público, não está na linha de que tudo pode ser pior, pois que lhe é, de certo modo, benéfica, na medida em que, mesmo demorando, com apoio no que prevê a mesma Súmula 331, do TST, este trabalhador vai acabar recebendo seus direitos do ente público, pois reconhecida sua responsabilidade "subsidiária", enquanto que se estivesse prestando serviços, os mesmos, mas contratado diretamente pela Administração, sem prévia aprovação em concurso público, nada receberia além de salários e FGTS, conforme prevê a Súmula 363, do mesmo Tribunal. Vai entender!...
O que impressiona no aspecto da terceirização, que provoca toda essa situação de ineficácia do direito social, com o apoio jurídico dado pela Súmula 331, do TST, é que não se trata sequer de um problema de ordem econômica, como normalmente se alega quando no pólo passivo da reclamação trabalhista está uma micro-empresa ou uma empresa de fundo de quintal. A terceirização é uma prática de grandes empresas. Curiosa, mas ilustrativa, foi uma reclamação trabalhista em que as tomadoras dos serviços do reclamante (que se negavam a pagar-lhe as verbas rescisórias, mesmo diante do não comparecimento da prestadora) eram: o Município; a Igreja; e um condomínio de luxo, como se estivessem bradand "Estado, Igreja e Alta Burguesia, unidos, jamais serão vencidos!"
Mas, poderia ser pior... Podia ser que a prestadora fosse uma empresa de construção civil (pior, ainda, se fosse uma pequena empresa) e, assim, a tomadora se considerasse "dona da obra".
Neste caso, com apoio em vasta jurisprudência, a tomadora não teria nada a ver com os direitos trabalhistas, nem mesmo "subsidiariamente". Os reclamantes, então, teriam que conviver com o desgosto de verem erguidos, para uso privado ou público, os frutos de seu trabalho, sem sequer terem recebido as verbas rescisórias. Se pensassem em derrubar a obra, lógico, sua atitude seria rapidamente reprimida pela direito e pela sociedade, como ato de terrorismo ou vandalismo. Para ilustrar, vai outro exempl em uma reclamação trabalhista, movida por 12 reclamantes, o "dono da obra" comparece em audiência (o prestador de serviços, por óbvio, não comparece) e diz que é "apenas e tão somente" o "dono da obra" e que, portanto, nada tem a ver com os direitos perseguidos pelos reclamantes (que construíram, em três meses, toda a parte de lazer, incluindo piscina, de seu sítio). Mas, não se limita a ist acrescenta que os reclamantes ameaçaram de derrubar toda a obra e diante dessa ameaça "terrorista" pagou a cada um deles a importância de R$100,00 e naquela ato, em audiência, então, oferecendo reconvenção, pretendia receber o dinheiro de volta, além de uma indenização por danos morais.
Dentro dessa lógica, oriunda do espírito de atribuir uma profunda ineficácia ao direito social, o que restaria àqueles reclamantes seria cantarolar:
"Tá vendo aquele edifício, moço!
Ajudei a levantar
Foi um tempo de aflição
Eram quatro condução
Duas pra ir, duas pra voltar
Hoje, depois dele pronto,
Olho pra cima e fico tonto
Mas me chega um cidadão
E me diz desconfiado
Tu taí admirado
Ou tá querendo roubar
Meu domingo tá perdido
Vou pra casa entristecido
Dá vontade de beber
E pra aumentar o meu tédio
Eu nem posso olha pro prédio
Que eu ajudei a fazer.
Tá vendo aquele colégio, moço!
Eu também trabalhei lá
Lá eu quase me arrebento
Pus a massa, fiz cimento
Ajudei a rebocar
Minha filha inocente
Vem pra mim, toda contente
Pai vou me matricular
Mas me diz um cidadão
Criança de pé no chão
Aqui não pode estudar
Essa dor doeu mais forte
Porque que eu deixei o norte
Eu me pus a me dizer
Lá a seca castigava
Mas do pouco que eu plantava
Tinha direito a comer.
Tá vendo aquela igreja, moço!
Onde o padre diz amém
Pus o sino e o badalo
Enchi minha mão de calo
Lá eu trabalhei também
Lá sim valeu a pena
Tem quermesse, tem novena
E o padre me deixa entrar
Foi lá que Cristo me disse
Meu rapaz deixe de tolice
Não se deixe amedrontar
Foi eu quem criou a terra
Fiz o rio, fiz a serra
Não deixei nada faltar }repete
Hoje o homem criou asas
E na maioria das casas
Eu também não posso entrar."(Cidadão - Lucio Barbosa)
Talvez, acrescentand "E nem os meus direito eles quiseram me pagar".
Mas, poderia ser pior... Podia ser que o trabalho executado fosse daqueles que o próprio direito, nos termos em que doutrina e jurisprudência se posicionam (por razões imaginadas, mas que não vale a pena explorar) não existe. Podia ser que o pedreiro trabalhasse diretamente para o "dono da obra". Aí nem de empregado se trataria, ou, no máximo, seria considerado empregado doméstico, o que, de todo modo, não seria um grande benefício, pois como têm dito a mesma doutrina e jurisprudência, empregado doméstico não tem direito a FGTS, multa do art. 477, `PAR` 8º., da CLT, férias proporcionais, 13º. salário proporcional, estabilidade-gestante, horas extras etc (muito embora, claro, possa ser dispensado por justa causa).
Lógico, alguém poderia dizer: "Mas, poderia ser pior... Podia ser que o trabalhador estivesse reduzido à condição análoga de escravo, vinculado ao empregador por dívidas assumidas perante este, sempre superiores ao valor do seu trabalho, e sem possibilidade concreta de deixar o local de trabalho". A enorme perversidade desta última situação, que, infelizmente, ainda acontece em nossa realidade, não pode constituir, no entanto, obstáculo para que se perceba a grande injustiça que o descumprimento do direito social representa, mesmo sem significar uma privação da liberdade no seu aspecto físico, até porque, se pensarmos bem, a liberdade, em seu sentido pleno, não existe dentro de uma sociedade economicamente injusta, na qual as diversas formas de escravidão são efeitos não da ausência de uma lei que as proíbam, mas da inexistência de uma opção condigna de sobrevivência. Trabalhar sem ter a possibilidade de receber, integralmente, os direitos decorrentes, é o primeiro alimento da negação da liberdade e como tal deve ser, eficazmente, reprimida.
E algum "espírito de porco", ainda poderia dizer: "Mas, poderia ser pior... Podia ser que o trabalhador estivesse desempregado, passando fome e então, o favor que lhe fizera o empregador, dando-lhe trabalho e salário, mesmo não cumprindo todos os direitos trabalhistas, mereceria um prêmio e não uma reprimenda." Se a lógica a adotar na avaliação da evolução do convívio humano for esta, resta somente indagar: Para quê direito? Para quê Estado democrático de direito? Para quê Constituição? Para quê história? Para quê sociedade?
Afinal, por que falo dessa realidade que, no fundo, é de conhecimento de todos? É que, talvez, não nos demos conta de quanto ela é perversa à efetivação dos direitos sociais e de quanto ela denigre a imagem da nossa querida Justiça do Trabalho. Como numa terapia, pode ser que falar sobre os fatos que vivenciamos todos os dias nos auxilie a enxergar, de forma crítica, a realidade e, quem sabe até, ficarmos um pouco envergonhados de expressá-la (para iniciar um exercício neste sentido, talvez valha a pena assistir o filme: Feitiço do Tempo).
Isto nos conduz a uma necessária reflexã é possível que fiquemos (juízes, advogados - de empregados, sindicatos e empresas - professores, doutrinadores, todos que lidam, profissionalmente, com o direito do trabalho, portanto) tranqüilos ao perceber que toda nossa intelectualidade e toda nossa força de trabalho são canalizadas para a produção da injustiça, ou, no mínimo, que são desperdiçadas por não serem utilizadas para mudar a realidade social?
Enquanto isto, a Justiça do Trabalho se move por pressão de dados estatísticos e sede de arrecadação, que impulsionam e alimentam as práticas processuais condenáveis e a renúncia aos direitos trabalhistas.
É preciso reconhecer que a grande vocação da Justiça do Trabalho é a efetivação dos direitos sociais, parcela mais visível e importante dos direitos humanos. Neste aspecto cinco sentimentos são fundamentais:
a) a percepção da injustiça: é preciso ter olhos para a injustiça. Não se pode fingir que a realidade não existe. Aliás, historicamente, ninguém se exime de responsabilidade sobre o desconhecimento de fatos que tinha a obrigação de conhecer. Vide, neste sentido, o julgamento de Nuremberg. Alguns dos acusados disseram que mandavam as pessoas para os campos de concentração, mas que não sabiam o que ocorria lá, até que um deles reconheceu: "no fundo nós sabíamos, apenas não queríamos saber". Aliás, este exemplo serve, igualmente, para o nosso Presidente da República, o Lula. Não lhe é permitido eximir-se de responsabilidade apenas aduzindo que não sabia o que os seus comandados faziam. Se não sabia, tinha a obrigação de saber e nisto consiste a sua responsabilidade. "Mutatis mutandis", isto serve para todos nós, profissionais do direito do trabalho, que não seremos isentos de responsabilidade simplesmente dizendo que não sabíamos que muitas empresas adotam, deliberadamente, os procedimentos mencionados acima;
b) a indignação em face da injustiça: não basta perceber a injustiça, é preciso indignar-se com relação a ela. A injustiça, sobretudo a injustiça social, não tem nada de natural, embora habite em nosso cotidiano. Assim como o ilegal não se torna legal pela repetição, o injusto não passa a ser justo, ou natural, pela reiteração. O nosso desafio neste aspecto é desenvolver uma noção de valores humanísticos, que estão um tanto quanto abalados desde o advento da sociedade da cibernética e da globalização econômica, que nos impõe uma postura fatalista, como se coisas fossem da forma como se apresentam porque não há outro modo de ser...
c) a crença: é importante acreditar que a realidade pode ser diferente. O iluminismo teve grande importância na evolução da humanidade, mas nos deu como herança um modo de pensar racional. Tudo se explica pela razão. As diversas complexidades da vida moderna tornam quase impossível equacionar, racionalmente, uma saída para os problemas sociais e econômicos e isto, de certo modo, nos impede a crença de que o mundo possa ser diverso. É preciso, portanto, junto à razão, que, claro, não pode ser abandonada, incrementar-se uma boa dose de sonho, ou de utopia, como queiram, para que tenhamos uma motivação a mais para ação;
d) a vontade: além dos passos anteriores, é necessário, também, que queiramos mudar as coisas. A vontade, afinal, segundo Kant, é o primeiro postulado da ética e sem vontade nada se faz;
e) por fim, a açã é preciso agir, concretamente. Teoria sem prática não passa de retórica. Importante que cada um assuma a responsabilidade pela mudança e aja, concretamente, nesta direção.
A soma desses cinco sentimentos é a essência da efetivação dos direitos sociais, pois se notarmos bem, os direitos sociais até hoje não foram completamente aplicados porque implicam relevante mudança no contexto social e são sempre obstados pelos arranjos políticos e econômicos que atuam em sentido contrário. Sobre os obstáculos econômicos, aliás, impressiona como o argumento ainda é fincado nas crises do petróleo de 1973 e de 1979. Tudo (e ao mesmo tempo nada), em termos de obstáculos econômicos à construção do direito social, se explica a partir dessas crises. Sabe-se lá até quando... Mas, no fundo, bem sabemos, essa retórica econômica é apenas um porto seguro para ancorarmos nossas deficiências ou comodismo. O verdadeiro obstáculo não é econômico, é cultural, basta lembrar (e quem conhece a realidade sabe) o quanto várias empresas gastam a mais, para não pagar os direitos sociais, do que gastariam se, simplesmente, pagassem, regularmente, os seus empregados. Interessante, ademais, a nova sacada do "marketing", de demonstração da "responsabilidade social" das empresas. Gastam com o social, em ações filantrópicas que repercutem na mídia, mas não cumprem os direitos dos trabalhadores, nem pagam os tributos integralmente. Aliás, em termos de obstáculos culturais, um dos grandes problemas para a efetivação do direito social é o fato que, em geral, o direito é aplicado por aqueles que já têm um bom lugar na sociedade e que pouco dependem das políticas públicas sociais, ou melhor, que não se dão conta de quanto elas lhes são igualmente necessárias.
Relevante entender, no entanto, que não falo neste texto de uma mudança profunda na sociedade, de posturas que, embora no nosso alcance, fossem mais difíceis de se requerer. Falo de algo extremamente simples e que está ao completo alcance de todos que lidam, profissionalmente, com o direito do trabalh evitar que o não pagamento dos direitos trabalhistas, sobretudo as verbas rescisórias, seja utilizado como forma de impor ao trabalhador uma situação na qual ele seja impelido a renunciar os seus direitos.
O ideal, bem verdade, é que não se conceba a possibilidade jurídica da dispensa arbitrária, o que já seria suficiente para a solução de diversos problemas em termos da efetivação dos direitos sociais. Mas, para não aprofundar inúmeras situações jurídicas complexas, é importante que, pelo menos, quando for reconhecido que uma empresa tem como postura ordinária a adoção da prática da ex-empregadora do meu amigo, qual seja, a de dispensar seus empregados sem pagar-lhes as verbas rescisórias, para forçar um acordo na Justiça, ou que adote práticas piores, com o mesmo fim, de dispensar, sistematicamente, por justa causa, de utilizar a terceirização como meio de precarizar as relações de trabalho e que seja reincidente no descumprimento dos direitos trabalhistas em geral, algumas reações, na perspectiva da efetivação dos direitos sociais, são essenciais:
1) não homologar o acord isto é não tarefa simples, devo reconhecer. Geralmente, o reclamante, acompanhado de seu advogado, aceita o valor oferecido pela empresa (60% das verbas rescisórias, em 03 parcelas, por exemplo) e o juiz, ao não homologar o acordo, desagrada a todos. Aliás, a reclamada aproveita da situação e diz ao reclamante: "veja bem, nós estamos aqui querendo pagar, só que o juiz não está deixando". Identifica-se o "lobo mau" da história: o juiz. Mas, enfim, pensando em tudo que fora dito acima, ou o juiz assume a responsabilidade em prol da efetivação dos direitos sociais, ou a prática da negligência ao direito continua ocorrendo... Diante da encruzilhada, o caminho a ser escolhido, parece-me, é apenas um, qual seja, o da efetivação dos direitos sociais.
2) homologar o acordo apenas com quitação do objeto transacionad havendo proposta para pagamento integral das verbas rescisórias, acrescido da multa do art. 477, `PAR` 8º., da CLT, a homologação do acordo é recomendável, desde que a quitação se restrinja às verbas rescisórias ou, sendo o valor superior às verbas rescisórias, que atinja, então, os demais objetos que tenham sido transacionados, desde que marcados pela incerteza do direito ("res dubia") e não ditados pela cláusula da irrenunciabilidade. No mínimo, deve-se evitar a fórmula não-jurídica da "quitação pelo extinto contrato de trabalho";
3) no que tange à terceirização, é preciso, urgentemente, reconhecer o equívoco da Súmula n. 331, do TST, que transforma o empregado em coisa ("coisificação" do ser humano), declarando nula qualquer tipo de intermediação de mão-de-obra, afirmando o vínculo de emprego diretamente com o tomador dos serviços seja em atividade-fim, seja em atividade-meio, pois o ser humano não pode ser mercantilizado. No mínimo, não se chegando ao resultado anterior, pelo menos, há de se declarar a responsabilidade solidária entre as empresas tomadoras e prestadoras e conferir aos empregados das empresas prestadoras os mesmos direitos, individuais e coletivos, dos trabalhadores das empresas tomadoras, para tanto, é importantíssimo, reconhecer que a mercantilização do ser humano, que se dá, sobretudo, quando o empregado preste serviços em mais de uma empresa tomadora, de forma alternada e seqüencial, é procedimento totalmente impróprio, gerando a formação de uma solidariedade entre todas as empresas tomadoras por todo o tempo de duração do contrato de trabalho firmado com a prestadora, não se podendo, portanto, falar em limitação da responsabilidade, pois que equivaleria "inventar" um tipo de contrato que não é nem o contrato por tempo determinado, nem o contrato por tempo indeterminado. Na "teoria da limitação da responsabilidade" uma empresa utiliza-se do trabalho humano, sem que tenha qualquer responsabilidade, mesmo "subsidiária", por suas eventuais verbas rescisórias. É uma modalidade "sui generis" de contrato, que, evidente, serve bem ao capital, mas negligencia a lei e o social. Aliás, mesmo se for para manter a de subsidiariedade, é preciso ir adiante neste efeito jurídico e reconhecer que, no fundo, a subsidiariedade nada mais é que uma solidariedade com benefício de ordem, que, para ser exercido, necessita que o devedor secundário apresente bens livres e desembaraçados do devedor principal, situados no mesmo município, para serem executados antes dos seus. Isto transfere, portanto, ao tomador a responsabilidade de encontrar o prestador, que sempre some, sob pena de imediata citação e prosseguimento do processo e conseqüente execução (quando não indicados bens do prestador, na forma anteriormente dita), diretamente em face do tomador.
Pode-se, então, com a adoção dessas medidas jurídicas, dizer ao tomador: "não faz essa cara de quem não tem nada com isso. Pára com esse papo de: o que é que eu fiz?"