Maio de 1980 - O operário Lula lidera o mais significativo movimento contra a ditadura militar instalada a partir do golpe de 1964, levante este da sociedade civil que teve a capacidade de aliar uma reivindicação trabalhista da classe operária do emergente ABC paulista à pauta política, até então amordaçada pelas baionetas. Estava rompido o silêncio contra as atrocidades e demais atos violadores dos direitos humanos praticados pelo aparelho repressor das forças armadas brasileiras. A intervenção decretada nos sindicatos pelo então Ministro do Trabalho, Murilo Macedo, no mês de abril de 1980, não foi suficiente para segurar o ímpeto dos novos dirigentes classistas, que pareciam estar rompendo com a política colaboracionista sempre presente na ação dos velhos militantes do Partidão.
Maio de 2005 - O operário Lula, Presidente da República, começa a viver a fase mais crítica do seu governo de coalizão, aliança tão ampla e direitista que consegue incluir o partido de sustentação do regime militar, derrotado também pela força do movimento operário do ABC paulista, além de outros arremedos de organização partidária essencialmente movida pelo dinheiro fácil, pelo clientelismo, pela corrupção e por todo tipo de prática nefasta bem familiar à elite nacional. Tudo começa com a divulgação de um vídeo revelador da propina recebida por corrupto de menor expressão lotado em determinada empresa pública brasileira. As consistentes denúncias não cessam, estando o antigo líder operário ameaçado de sofrer processo político de impeachmant na Presidência da República.
A leitura desses dois momentos, por parte da máquina ideológica da desinformação, nos conduziria à conclusão irresponsável de que o exercício do poder corrompe inocentes e puras consciências, só restando à nação apelar aos santos para uma mudança de comportamento da classe política nacional. O mundo da política, para os segmentos satisfeitos com esse modelo e, portanto, propagadores da teoria antes anunciada, é espaço reservado para os gângsteres e para outros menos cotados, como se o povo trabalhador tivesse que desempenhar o papel de figurante, explorado-enganado, o tempo todo.
O capitalismo, regime econômico que tem como base de sustentação o lucro a qualquer custo, a partir da exploração da mão-de-obra humana, muitas vezes na busca de seu objetivo central, não mede esforços para afastar o Estado das relações sociais, mas o quer como financiador das atividades privadas e como sujeito vulnerável a atos de corrupção.
No Brasil, cuja economia é frágil, essa prática incestuosa é de maior intensidade. Os grandes grupos econômicos aqui instalados não conseguem administrar os seus negócios sem a "mãozinha" camarada do poder público, muito menos podem conviver sem o auxílio "remunerado" dos agentes políticos.
Definitivamente, boa parte da história do acúmulo de riquezas financeiras no Brasil está a unir o viés da exploração econômica com a expropriação da res publica. Fingem estar indignados os seus autores, no entanto, com berros de pregação pela moralidade. O imortal Raymundo Faoro, na clássica obra "Os donos do poder", bem definia a singular característica da formação do patronato político brasileiro.
Foi nesse mundo que o operário Lula e os seus companheiros de viagem ao Planalto ingressaram há muito tempo, desde o dia em que montaram um plano para levar ao poder da República o destacado sindicalista do ABC paulista. Passaram, pois, a não mais distinguir as pessoas por suas qualidades e defeitos: humanistas de torturadores; probos de corruptos; socialistas de selvagens capitalistas; trabalhadores de grandes empresários; ecologistas de devastadores do meio ambiente; autênticos representantes do povo de parlamentares oportunistas e servidores comprometidos de pessoas que ficam milionárias no serviço público da noite para o dia. É tão elevado o nível de degeneração ética e política que chegam a preferir, em certas ocasiões, a companhia dos últimos personagens, desde que a opção resulte na ampliação da malsinada "base aliada".
Enfim, descobriram que é pura bobagem pensar numa sociedade voltada para a redução dos lucros dos ricos como meio de aumentar a renda dos trabalhadores, como também nenhuma relevância possui a escolha do aliado a partir de sua história de vida, pela sua trajetória política e pela sua conduta ética.A sociedade socialista, então, não passa de uma aventura dos radicais inconseqüentes, na concepção da nova direita brasileira disfarçada de esquerda. O delegado da ação celebra as mais espúrias alianças em nome de um projeto "maior" de dominação. A escancarada corrupção, praticada com maior "habilidade" por outros governos, não surge por acaso, sendo reflexo da sede da chique canalhice por poder, político e econômico, outro dia travestida de legítima representante do honrado povo trabalhador brasileiro.
Quando atacados pela direita tradicional, portadora do símbolo e das armas próprias do referido pensamento político, os novos dirigentes do País buscam abrigo no sofismático argumento de que se trata de uma perseguição à esquerda política, quando bem sabemos que a briga entre os acusadores e os acusados, no caso em questão, não se reveste de qualquer diferença ideológica profunda. Ambos, na essência, defendem as surradas idéias do neoliberalismo, com a preservação dos valores fundamentais da classe dominante. Insultam-se mutuamente apenas pela ocupação do espaço político. Não há nenhuma outra preocupação nobre nessa guerra entre pássaros e estrelas. São mestres no ofício de copiar as práticas dos "adversários" que dizem odiar.
Ainda que seja notória a falta de autoridade moral da classe política, pelo menos de alguns segmentos, para criticar o comportamento dos atuais dirigentes do país - alguns velhos conhecidos hoje dominam os holofotes numa espécie de "Eliot Nessa" à caça de Al Capone, não se deve tolerar a corrupção, devendo a sociedade promover a mais profunda investigação, sem dó nem piedade dos infratores, do pequeno corrupto da empresa pública ao ocupante do cargo político de maior status, cortando cabeças e reduzindo mandatos.
Muitos tinham a ilusão de que a bandeira rasgada estivesse presa ao perverso modelo econômico, certos de que ainda sobraria um pedaçointacto da alma, como se fosse possível fracionar o indivisível.
Quem vende a alma algum dia jamais a recupera. Ela pode vaguear em noites tenebrosas, zombar do seu mercador, reincorporar-se em pesadelos, mas tem brio o suficiente para não ceder às tentações de quem não soube honrá-la, cultivá-la, respeitá-la e amá-la com a intensidade própria do verdadeiro afeto, desrespeitando, pois, a parte mais sublime e sensível da existência humana.