1. Introdução
A Emenda Constitucional n. 45, promulgada em 08/12/2004 e em vigência desde 31/12/2004, ampliou substancialmente a competência da Justiça do Trabalho. No presente estudo, trataremos apenas da alteração estampada no inciso I do art. 114 da Constituição da República - mais especificamente, o conteúdo da expressão relação de trabalho, novo traço definidor da competência material trabalhista.
Às vésperas da entrada em vigor da EC 45/2004, intensa e fecunda controvérsia alastrou-se no meio jurídico trabalhista acerca do alcance da alteração na competência da Justiça do Trabalho - o texto constitucional anterior referia-se aos dissídios entre trabalhadores e empregadores; o atual alude às ações oriundas da relação de trabalho. Poderíamos abreviar o dissenso (ainda borbulhante) em três correntes: a primeira abrange na nova competência trabalhista, a priori, toda e qualquer relação jurídica em que haja prestação pessoal de serviços; a segunda vertente exclui do conceito de relação de trabalho o fornecimento de serviços de consumo; finalmente, o terceiro entendimento deduz restritivamente que a EC 45/04 não inovou a substância da competência material delineada no caput do antigo art. 114 da Constituição, e que a expressão relação de trabalho remete à própria relação de emprego.
Paralelamente a essa divergência conceitual foram-se esboçando, nas duas primeiras correntes interpretativas, elementos intrínsecos à caracterização da relação de trabalho, visando delimitar os contornos da competência da Justiça do Trabalho. Convergiu-se para a pessoalidade da prestação como requisito essencial da relação de trabalho. A natureza diferida da prestação (como antítese de trabalho de ato instantâneo) e a subordinação econômica foram critérios rejeitados pelos intérpretes da primeira vertente.
Pretendemos demonstrar, através deste estudo, que a relação de consumo não configura espécie do gênero relação de trabalho. Partindo dessa premissa, buscaremos definir os elementos caracterizadores da relação de trabalho, para então analisar situações específicas envolvendo a prestação pessoal de serviços, atraídas ou não pela nova competência material da Justiça do Trabalho.
2. Relação de trabalho versus relação de consumo
Antes de aprofundarmos tal análise comparativa, seria importante que o leitor assimilasse a idéia sintetizada a seguir, chave para o entendimento de nossa tese, esboçada e exposta entre os dias 13 e 15 de março de 2005 no grupo de discussões pela internet dos juízes trabalhistas da 3ª Regiã
Quando um trabalhador, ainda que autônomo, presta serviços a uma empresa, o proveito econômico principal segue na mesma direção do serviço prestado, beneficiando o tomador dos serviços. O trabalho é agregado à atividade produtiva do tomador.
No fornecimento de serviços de consumo, o proveito econômico relevante segue na direção contrária, favorecendo o prestador dos serviços.
Tome-se o exemplo da relação jurídica entre o paciente e seu médico, dentista ou terapeuta: como o cliente consome o serviço contratado, o único proveito econômico é auferido pelo prestador; o patrimônio material do consumidor dos serviços não apenas não aumenta, como diminui após o fornecimento do serviço e o pagamento respectivo. O mesmo ocorre quando uma pessoa física vai ao salão de beleza, ou contrata um advogado para representá-la numa causa individual, ou ainda quando entra num táxi e pede ao motorista que a conduza ao aeroporto.
O inverso se verifica, por exemplo, quando aquele mesmo médico, o dentista ou o terapeuta prestam serviços a uma clínica, ainda que de forma autônoma: tal prestação beneficia economicamente o tomador dos serviços - no caso, a clínica.
Passemos à análise legal. Quem é, juridicamente, o consumidor de um serviço? O Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8078/90) o define como toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza aquele serviço como destinatário final (art. 2o). E o que vem a ser o serviço objeto de consumo?
Pelo `PAR` 2o do art. 3o, qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.
A dedução é singela: nosso ordenamento jurídico distingüe a relação de trabalho da relação de consumo. Para o nosso direito, a relação de consumo não é espécie do gênero relação de trabalho. E nem poderia ser diferente.
Se as duas situações são essencialmente antagônicas (como se demonstrou acima), como enquadrá-las no mesmo modelo jurídico?
É curioso constatar que, na polêmica acerca do conteúdo da expressão relação de trabalho no novo texto constitucional, alguns dos intérpretes que criticam a exegese mais restritiva, por equiparar o conceito de relação de trabalho ao da relação de emprego, são os mesmos que sustentam que o Código de Defesa do Consumidor, ao usar a expressão relações de caráter trabalhista, na verdade se reporta à relação de emprego. Ora, a Lei n. 8078/90 foi editada dois anos após a promulgação da Constituição Federal de 1988, cujo caput do art. 114 já distinguia expressamente a espécie relação de emprego do gênero relação de trabalho. A EC 45/04 - é importante salientar - não inovou ao adotar a expressão relação de trabalho, já gravada no antigo texto constitucional. Por isso não vislumbramos espaço para se interpretar restritivamente o `PAR` 2o do art. 3o do CDC, contrapondo-se os serviços de consumo à relação de emprego, ao invés da relação de trabalho lato sensu.
Alguém poderá objetar: mas existe trabalho na relação de consumo. Certo. Como existe consumo - ainda que parcial - da prestação de serviços na relação de emprego, e nem por isso será razoável concluir que a relação de emprego é espécie de relação de consumo. O que define uma relação jurídica são seus elementos essenciais, não os secundários.
Voltemos o foco à relação de consumo. Comentando os arts. 1º a 3º do Código de Defesa do Consumidor ao lado de outros autores do anteprojeto - dentre os quais Ada Pellegrini Grinover -, José Geraldo Brito Filomeno observa que a lei adotou o conceito econômico de consumidor, ao defini-lo como o destinatário final do produto ou serviço, pressupondo-se que o consumidor adquire bens ou contrata a prestação de serviços com vistas ao atendimento de uma necessidade própria, e não para o desenvolvimento de uma outra atividade negocial. Examinando o Direito Comparado, Filomeno destaca a legislação portuguesa, que aloca o consumidor na relação produção/consumo como sendo o último desta cadeia; e a lei argentina, estabelecendo que não são consumidores aqueles que adquirem, armazenam, utilizam ou consomem bens ou serviços para integrá-los em processos de produção, transformação, comercialização ou empréstimo a terceiros. Daí o ilustre jurista adotar a teoria finalista do conceito de consumidor, que exclui a figura do consumidor profissional, realçando na distinção o elemento da vulnerabilidade econômica (retornaremos a esse tema quando abordarmos o trabalho eventual).
Ora, tal modelo de relação jurídica, no qual por definição o fornecimento do serviço atende necessidade própria do consumidor, não se harmoniza com a idéia da relação de trabalho, cuja essência é a expropriação da mão-de-obra do prestador dos serviços, com escopo produtivo , sendo o trabalho doméstico apenas a variante que confirma a regra, como se verá adiante.
Essa noção da relação de trabalho é quase instintiva, e precede - não apenas historicamente, mas na própria lógica do conceito - o conteúdo mais restrito da relação de emprego. Mesmo os compêndios da doutrina trabalhista, ao analisarem os antecedentes históricos do Direito do Trabalho, invariavelmente se referem às origens da expropriação do trabalho humano - desde as remotas figuras do trabalho forçado até o advento e a evolução do sistema capitalista, onde se fincaram as raízes universais da legislação de proteção ao trabalho.
A índole, a vocação do Direito do Trabalho sempre foi a proteção do trabalho expropriado.
Como ensina Maurício Godinho Delgado , a relação empregatícia foi a categoria socioeconômica e jurídica que se estruturou no processo da Revolução Industrial, construindo entre os séculos XVII e XVIII uma hegemonia como modelo de vinculação do trabalhador ao sistema produtivo que iria se consolidar ao longo do século XIX, com a generalização do sistema industrial europeu e americano, alcançando a sociedade industrial contemporânea.
Apenas como conseqüência dessa hegemonia da relação empregatícia - e aqui a conclusão é nossa - é que o Direito do Trabalho erigiu-se como espelho da relação de emprego, e não de seu gênero relação de trabalho.
Ambas as figuras, contudo, integrando a mesma taxonomia jurídica, têm em comum a raiz e a essência: a expropriação da mão-de-obra alheia; e nisso não apenas se distingüem da relação de consumo, como antagonizam a mesma.
A percepção da relação de trabalho na contramão econômica da relação de consumo pode ser assim sintetizada:
Na relação de trabalho, o tomador dos serviços explora a mão-de-obra do prestador; na relação de consumo, o prestador dos serviços explora uma necessidade do tomador.
Essa distinção fundamental deságua
na questão da hipossuficiência.
Na relação de trabalho, ao alienar seu trabalho a
uma organização produtiva, o prestador dos serviços,
ainda que não subordinado juridicamente ao tomador, é
absorvido por uma situação de hipossuficiência
econômica relativa; dizemos relativa porque - do mesmo
modo que ocorre na relação de emprego - tal condição é
aferida de forma intrínseca à relação de trabalho; é
irrelevante que, no lado externo da relação de
trabalho, o trabalhador detenha mais recursos
econômicos que o tomador dos serviços; no âmago
daquela relação jurídica o prestador dos serviços é a
parte mais vulnerável porquanto, ao invés de explorar
sua mão-de-obra em proveito econômico próprio, aliena-a
a um corpo produtivo que não lhe pertence, e do qual
de alguma forma passa a depender economicamente.
Alguns juristas denominam a esse fenômeno subordinação
econômica.
Precisamente intentando corrigir tal desigualdade é que o tecido, a lã das normas trabalhistas sempre agasalhou mais o prestador dos serviços que o seu tomador. Na lição de Américo Plá Rodriguez , "o legislador não pôde mais manter a ficção de igualdade existente entre as partes do contrato de trabalho e inclinou-se para uma compensação dessa desigualdade econômica desfavorável ao trabalhador com uma proteção jurídica a ele favorável."
Como se sabe, as normas que regulam a relação de consumo trilham a direção inversa: ao invés de protegerem o prestador dos serviços, amparam o consumidor. José Geraldo Brito Filomeno observa que "a relação de consumo destina-se à satisfação de uma necessidade privada do consumidor, e este, não dispondo, por si só, de controle sobre a produção de bens de consumo ou prestação de serviços que lhe são destinados, arrisca-se a submeter-se ao poder e condições dos produtores daqueles mesmos bens e serviços"; daí a perspectiva do consumidor como parte vulnerável na relação de consumo. Corroborando sua explanação, Filomeno cita Fábio Konder Comparato e José Reinaldo de Lima Lopes . No mesmo sentido, Ada Pellegrini Grinover sublinha que o fornecedor inegavelmente assume a posição de força na relação de consumo, e por isso "dita as regras", sobrevindo a legislação de proteção ao consumidor para reequilibrar aquela relação . Filomeno acentua com pertinência a demarcação do papel do Estado na defesa do consumidor, erigido à estatura de preceito constitucional (art. 5o, inciso XXXII e art. 170, inciso V da Constituição Federal).
O que faz o ordenamento jurídico é apenas fotografar a realidade econômica que apontamos acima: a relação de trabalho na contramão da relação de consumo; fenômeno que, a nosso ver, inviabiliza a fusão daquelas duas categorias em um mesmo modelo jurídico sem que se crie um paradoxo, verdadeiro absurdo jurídico a desafiar o ânimo casuístico do magistrado trabalhista, ora a lei protegendo o prestador dos serviços, ora o seu tomador; aqui se aplicando a inversão do ônus da prova para beneficiar o consumidor (art. 6º, VIII do CDC), ali se considerando a maior aptidão do tomador para a prova; em cada caso concreto o juiz do trabalho arriscaria um palpite sobre o hipossuficiente da relação - tudo em evidente prejuízo à identidade da jurisdição trabalhista.
O dualismo entre a relação de trabalho e a relação de consumo nos parece cristalino.
Um exemplo prático, tangenciando as duas relações jurídicas antagônicas, pode ilustrar essa concepção. Imaginemos que uma pessoa física (A) ingresse na economia informal preparando salgadinhos congelados para festas, tendo como um de seus clientes outra pessoa física (B) nas festas de aniversário de sua família. É fácil presumir que o preço dos salgadinhos será definido por A, tendo B que se sujeitar a essa estipulação ou procurar outro vendedor de salgadinhos ou - se todos lhe estiverem cobrando "os olhos da cara" - preparar seus próprios salgadinhos para as festas de família.
Suponhamos que B, depois de organizar tantas festas, comece a auxiliar os amigos nas suas comemorações e, finalmente, resolva empregar o know-how adquirido, montando um bufê. É mais lógico ainda supor que, nesse novo contexto, B renegociará com A o preço dos salgadinhos, e também estabelecerá novas condições à prestação daqueles serviços (ainda que não exista subordinação jurídica), mesmo porque a partir de então B deterá uma organização produtiva, um empreendimento econômico, no qual os serviços de A estarão inseridos. Na situação original, havia mero consumo dos serviços prestados por A; quem ditava o preço dos salgadinhos era A; o vulnerável na relação era B. A partir do momento em que B monta seu próprio negócio, e passa a produzir, a mão-de-obra de A passa a ser expropriada, e por isso ele assume a condição de hipossuficiente relativo (mesmo trabalhando de forma autônoma), sendo o preço e as condições de trabalho ditados por B: a relação passa a ser trabalhista.
E assim formulamos a premissa fundamental de nossa tese, sobre a qual se alicerça o conceito da relação de trabalho que iremos propor no item 4:
A essência da relação de trabalho é a expropriação do trabalho alheio, com finalidade produtiva.
O trabalho como fator de produção, e não de mero consumo - eis a substância da relação de trabalho. Quem apenas consome o trabalho, não o expropria (o termo expropriar nos parece mais preciso que o explorar, se considerarmos a finalidade não lucrativa do trabalho doméstico).
Como procuraremos demonstrar no item 7, se na relação trabalhista doméstica inexiste produção direcionada ao mercado econômico, ocorre ali verdadeira substituição da atividade produtiva daquele mercado; por isso afirmamos que o trabalho doméstico é a variante que confirma a regra do escopo produtivo da relação de trabalho.
3. Modernas relações trabalhistas
Façamos agora uma breve incursão pelas veredas históricas e socioeconômicas das relações trabalhistas. Expõe Márcio Túlio Viana que o Direito do Trabalho é conseqüência do modo de ser capitalista, produto da fábrica. À imagem e semelhança de uma fábrica "cada vez mais concentrada, com seus produtos previsíveis, as suas máquinas grandes e potentes e os seus trabalhadores em massa, homogêneos e estáveis", moldou-se o Direito do Trabalho, "seus princípios fortes e rígidos, suas regras minuciosas e abundantes".
Ocorre que, como observa com lucidez o estimado catedrático mineiro, a fábrica moderna se desconcentrou; organiza-se agora em rede; articula-se com outras, de todos os tipos, até as pequenas oficinas de fundo de quintal; e passa a recorrer sem cerimônia a empregados informais e trabalhadores autônomos; não apenas os falsos, mas também os verdadeiros autônomos, e estes, muitas vezes trabalhando à distância da fábrica, graças aos avanços da técnica, passam a fazer o que antes apenas os empregados faziam .
O problema, pondera Márcio Túlio, é que esse moderno autônomo não apenas depende economicamente da empresa tomadora dos serviços como passa a se submeter às suas rígidas diretrizes, surgindo daí um "trabalho por conta própria com um novo traço", o qual, "na medida em que vai ocupando os espaços deixados pelo trabalho por conta alheia, contamina-se com os seus ares, tornando-se - também ele -uma mistura" . Mais adiante, o i. professor alerta para a tendência atual da lei e jurisprudência trabalhistas em alargarem as hipóteses de subordinação sem vínculo de emprego e darem "importância crescente ao ajuste meramente formal da autonomia", verdadeiro "movimento excludente" da órbita do Direito do Trabalho, e conclui que o advento da EC 45/04 é uma "boa oportunidade para tentar inverter essa tendência" .
Até este ponto, convergimos de forma irrestrita com o mestre. Entendemos que o Direito e a Justiça do Trabalho não podem fechar os olhos às mudanças sociais, apegando-se a cânones e dogmas que já não acompanham a dinâmica e os "dribles à lei" impostos pelo moderno sistema de produção. Não é por divergir da ideologia neoliberal que o operador do direito ignorará os efeitos de sua hegemonia, deixando à margem da proteção trabalhista as novas formas de exploração de mão-de-obra que o sistema vai modelando com criatividade e rapidez impressionantes, nutrindo-se de fenômenos sociais como o subemprego e o desemprego.
Como dizia o comercial de automóvel, a Justiça do Trabalho precisa rever seus conceitos; já não lhe convém focar exclusivamente a relação de emprego, visão esta que seria míope diante da nova paisagem socioeconômica que se descortina. Merecem atenção urgente os trabalhadores não protegidos pela CLT, os contratos precários - mas legais - que se multiplicaram nas últimas décadas em cômoda alternativa aos encargos trabalhistas. Esse o propósito, a nosso ver, da Reforma do Poder Judiciário, no tocante especificamente à ampliação da competência material trabalhista.
É interessante observar que esse movimento ampliativo da proteção trabalhista era prenunciado há décadas pela doutrina. Em sua obra Direito do Trabalho, cuja 1ª edição data de 1966, Délio Maranhão já mencionava a tendência do Direito do Trabalho ao alargamento de suas fronteiras .
Mais recentemente, Alice Monteiro de Barros discorria sobre o fenômeno já em esboç "A sua tendência à ampliação crescente levou alguns autores a apelidar o Direito do Trabalho, há muitos anos, de "direito em vir a ser" (Photoff, em 1928). Essa ampliação ocorre no tocante à extensão pessoal e à intensidade. No que se refere à extensão pessoal, embora o campo de atuação do Direito do Trabalho ainda se restrinja ao trabalho subordinado, a legislação material tende a estender sua esfera normativa ao trabalhador autônomo (...), enquanto a legislação processual (art. 652, "a", III da CLT) tende a atribuir competência aos tribunais para conciliarem e julgarem dissídios resultantes do contrato de empreitada em que o empreiteiro seja operário ou artífice" .
A redefinição do foco da Justiça do Trabalho - da figura especial do empregado para a relação de trabalho lato sensu - efetiva-se com o advento da EC 45/04. Cabe ao intérprete, contudo, o ofício de operar o ajuste, devendo usar um mínimo de cautela para que não embace a novíssima lente que foi entregue em mãos pela Emenda, diluindo na mesma imagem figuras jurídicas com contornos não apenas diversos, mas antagônicos - o que, ao invés da ampliação projetada, resultaria em perda do foco trabalhista.
Por isso - e aqui divergimos do mestre Márcio Túlio Viana - refutamos a idéia de abranger, na nova competência material trabalhista, as relações de consumo. Entendemos que a EC 45/04 veio amparar justamente os trabalhadores à margem da CLT; juridicamente não-empregados, mas nem por isso incólumes à mais-valia que sintetiza a lógica capitalista. Esses trabalhadores passam, após a EC 45/04, a ter suas demandas apreciadas pelo juiz do trabalho - mais sensível e afeiçoado ao trato da questão social -, e sujeitas ao rito trabalhista, bem como aos princípios peculiares do processo do trabalho.
É interessante observar que muitos daqueles trabalhadores já batiam às portas da Justiça do Trabalho reclamando proteção, mas tinham seus pedidos rejeitados por ausência de um ou mais requisitos da relação de emprego. A EC 45/2004 veio-lhes abrir aquelas portas, mesmo sem lhes oferecer o agasalho celetista.
Não nos parece lógico estender tal tratamento aos fornecedores de autênticos serviços de consumo, pelas razões apresentadas no item 2 deste estudo. Ademais, é notório que as demandas de consumo vêm sendo solucionadas de forma ágil e eficaz nos Juizados Especiais, instituídos pela Lei n. 9099/95. Tratam-se de prestadores de serviços que não precisam, e não almejam, a tutela especial trabalhista. Atrair tais lides à jurisdição trabalhista acarretaria situações inusitadas, obrigando o magistrado trabalhista a julgar questões inteiramente desvirtuadas do Direito do Trabalho, tais como pedidos de indenização em razão de erro médico, formulados pelo paciente.
4. Elementos
caracterizadores da relação de trabalho
Definida a expropriação do trabalho alheio com
escopo produtivo como o elemento básico da relação de
trabalho, pergunta-se: a pessoalidade é requisito para
a sua configuração?
Entendemos que sim, tanto sob o prisma do trabalho prestado por pessoa física quanto do caráter personalíssimo da obrigação de prestar os serviços, sendo este último propriamente o traço que define a pessoalidade. Na lição de Maurício Godinho Delgado, "a prestação de serviços que o Direito do Trabalho toma em consideração é aquela pactuada por uma pessoa física (ou natural)", uma vez que "os bens jurídicos (e mesmo éticos) tutelados pelo Direito do Trabalho (vida, saúde, integridade moral, bem-estar, lazer, etc.) importam à pessoa física, não podendo ser usufruídos por pessoas jurídicas" . Deve-se ressalvar, evidentemente, a hipótese de fraude ou simulação na constituição da pessoa jurídica, camuflando a contratação de pessoa física para a prestação dos serviços - o que atrairia a aplicação do preceito geral contido no art. 9º da CLT.
De outro lado, no tocante ao caráter personalíssimo da prestação, não nos parece adequado um apego ao conceito clássico utilizado na aferição da relação de emprego, se a ampliação da competência veio justamente contemplar novos feitios de relação de trabalho, que não se enquadram juridicamente naquela fôrma. Parece-nos mais adequado o critério já utilizado na caracterização da pequena empreitada (art. 652, inciso III da CLT): o fato do trabalhador contratar auxiliares ou se fazer substituir não descaracterizará a relação de trabalho, desde que também ele preste pessoalmente os serviços, isto é, seja operário ou artífice, conceito que deve ser interpretado de forma plástica, para abranger também o trabalho intelectual ou artístico.
Quanto ao tomador dos serviços, poderá ser pessoa jurídica ou física, como se verá mais à frente.
Como último ingrediente na receita fático-jurídica da relação de trabalho emerge a onerosidade da prestação. Assim como na sua espécie relação de emprego, é inerente à relação de trabalho lato sensu o conteúdo econômico, afastando-se de seu conceito o trabalho voluntário, prestado com ânimo meramente benevolente, sem intuito contraprestativo por parte do prestador.
O serviço voluntário é regulado pela Lei n. 9608/98, não gerando qualquer obrigação de natureza trabalhista (art. 1º, parágrafo único) - desde, obviamente, que não sirva de máscara à expropriação do trabalho com finalidade econômica, aplicando-se nesta hipótese o princípio da primazia da realidade sobre a forma, como pondera Maurício Godinho Delgado .
No rastro da definição dos elementos tipificadores da relação de trabalho elencamos, na perspectiva de nossa tese, os principais trabalhadores (pessoas físicas) trazidos à competência da Justiça do Trabalho pela EC 45/04: representantes comerciais, corretores de seguros (versus seguradoras), empreiteiros (desde que sejam operários ou artífices, já não importando a restrição que parte da doutrina fazia ao valor da empreitada), trabalhadores autônomos em geral, parceiros ou arrendatários rurais, diaristas domésticos, estagiários e os trabalhadores eventuais, que serão abordados em tópico à parte; além dos chapas, para os intérpretes que não os incluíam na competência anterior, na categoria de trabalhadores avulsos.
Trataremos a seguir das questões envolvendo as instituições sem fins lucrativos, o trabalho eventual, o trabalho doméstico, os profissionais liberais e a relação de trabalho de natureza estatutária ou administrativa; abordaremos ainda as principais modalidades de prestação de serviço não incluídas na nova competência material da Justiça do Trabalho.
5. Instituições sem fins lucrativos
As instituições de beneficência, associações recreativas e quaisquer outras instituições sem fins lucrativos, pelo simples fato de não perseguirem lucro não deixam de ocupar uma posição ativa na economia, distinta daquela ocupada pelo consumidor, que é sempre passiva (nada produz, apenas consome).
Na lúcida análise de Délio Maranhão , a atividade econômica traduz-se na produção de bens ou serviços para a satisfação das necessidades humanas, não supondo, necessariamente, a idéia de lucro.
Um clube recreativo, uma instituição beneficente ou religiosa não exploram lucro, mas nem por isso deixam de produzir serviços à comunidade, satisfazendo necessidades humanas relativas a lazer, assistência social, médica, educacional - ou mesmo espiritual.
Sempre que utilizarem o trabalho de pessoa física como fator de produção sem o preenchimento dos requisitos da relação empregatícia (art. 3º da CLT), tais instituições serão sujeito da relação de trabalho - exceto se o ânimo do prestador dos serviços for puramente benevolente (v. item 5).
Em referência especificamente às instituições religiosas deve-se recorrer, na caracterização da relação de trabalho, ao mesmo critério adotado no tocante à relação de emprego. Prevalece na jurisprudência o seguinte entendiment tratando-se de atividade de natureza religiosa, a relação trabalhista forma-se apenas entre a entidade religiosa e pessoa física que não pertença à congregação por meio de votos.
6. Trabalho eventual
É intrínseca à idéia de relação - seja no âmbito afetivo, comercial e também no jurídico -, sua duração ou continuidade no tempo. Soa no mínimo estranho cogitar de relação de trabalho quando a execução do serviço contratado é instantânea, e atende necessidade acidental do tomador.
Talvez por isso a tendência inicial do intérprete seja excluir do conceito da relação trabalhista a prestação eventual de serviços.
Uma reflexão mais acurada, contudo, faz concluir que a ilação do parágrafo anterior é que desafina do Direito do Trabalho, e uma nota peculiar acentua tal dissonância: a freqüente subordinação do trabalhador eventual ao tomador dos serviços . Tal elemento fático-jurídico talvez faça do eventual a figura de trabalhador sem vínculo de emprego que mais se aproxime do conceito de empregado. Como excluir, portanto, da nova competência material da Justiça do Trabalho o trabalhador que mais estava a merecer sua proteção?
Eis a nossa leitura: diversamente do que ocorre na relação de emprego, não importa, na caracterização da relação de trabalho, que os serviços prestados atendam a uma necessidade normal do tomador. O que define a relação de trabalho é a inserção dos serviços prestados (por pessoa física) no ciclo produtivo do tomador - e essa contribuição pode ser indireta. O fundamental é que o proveito econômico mais relevante siga na mesma direção do serviço prestado, beneficiando o seu tomador, e que o desequilíbrio econômico na relação o favoreça - o contrário do que ocorre na relação de consumo.
Imagine-se um encanador, eletricista ou técnico de ar-condicionado que prestem serviços ocasionais a uma empresa (por exemplo, um supermercado ou firma de consultoria). O conserto do encanamento, da fiação elétrica ou do sistema de ar-condicionado atende a uma necessidade fortuita da empresa. O trabalho é eventual, e por isso a relação de emprego não se forma (v. art. 3º da CLT). Ocorre que, mesmo não se incorporando diretamente ao ciclo produtivo normal do tomador, aqueles serviços têm inegável destinação produtiva, beneficiando, ainda que de forma indireta ou mediata, a dinâmica do empreendimento econômico. Com o encanamento dos banheiros, a rede elétrica e o sistema de ar-condicionado funcionando, a empresa produz mais. Por outro lado, com aqueles equipamentos danificados ou fora de uso a produtividade da empresa inevitavelmente irá decair - talvez seja mesmo interrompida.
Do que se conclui que, na teia do empreendimento econômico, o trabalho eventual é fator de produção, ainda que indireto.
Convém aqui ventilar novamente a controvérsia acerca do consumidor profissional, abordada superficialmente no item 2. Como relatamos, José
Geraldo Brito Filomeno é adepto da teoria finalista do conceito de consumidor, e por isso critica o critério do Código brasileiro ao "colocar a pessoa jurídica como também consumidora de produtos e serviços", no que, adverte o jurista, "discrepa da própria filosofia consumerista", considerando que "o consumidor, geralmente vulnerável como pessoa física, defronta-se com o poder econômico dos fornecedores em geral, o que não ocorre com estes que, bem ou mal, grandes ou pequenos, detêm maior informação e meios de defender-se uns dos outros quando houver impasses e conflitos de interesses" .
Citado por Filomeno, José Reinaldo de Lima Lopes pondera que o enfoque do Código, abrangendo a pessoa jurídica no conceito de consumidor, pode pôr a perder "um elemento essencial, que no fundo é o que justifica a existência da própria relação de consum a subordinação econômica do consumidor" .
Não obstante, ante a literalidade do caput do art. 2º do CDC, Lima Lopes propõe que uma pessoa jurídica somente seja consumidora em relação a outra pessoa jurídica, e desde que haja entre ambas um desequilíbrio econômico que favoreça a fornecedora - no que é endossado por Filomeno. Tal concepção, no âmbito da tutela legal do consumidor, harmoniza-se com a nossa perspectiva na esfera trabalhista, ambas confluindo em observância aos princípios da unidade, proporcionalidade e razoabilidade da interpretação constitucional - lembrando que a defesa do consumidor é preceito constitucional, da mesma forma que a competência atribuída à Justiça do Trabalho.
E então formulamos aquela que talvez seja, atrás da premissa fundamental, a conclusão mais importante deste estud o serviço prestado por pessoa física a pessoa jurídica jamais configurará relação de consumo, tipificando sempre relação de trabalho - ainda que atenda necessidade acidental do tomador (relação de trabalho eventual).
Essa conclusão se estende, logicamente, às instituições sem fins lucrativos (v. item 5). Abrange ainda os profissionais liberais/tomadores - desde que os serviços prestados pela pessoa física beneficiem sua atividade produtiva -, as sociedades de fato e todos os que explorem atividade produtiva no mercado informal.
Excetuamos de tal conclusão o trabalho doméstico, objeto do tópico seguinte.