1. Introdução
Em 17 de fevereiro de 2006, foi publicada no Diário Oficial da União a Lei 11.280, com vacatio legis de 90 dias, que alterou diversos artigos do CPC e, dentre suas modificações, estabeleceu que "o juiz pronunciará, de ofício, a prescrição" (nova redação atribuída ao `PAR` 5º do art. 219).
O legislador, aqui, rompeu com uma tradição do direito brasileiro, segundo a qual a prescrição, por refletir, via de regra, interesse patrimonial privado do devedor, dependeria, para seu reconhecimento, de provocação deste, cujo limite de realização coincidiria com a tramitação ordinária do processo, vale dizer, não se permitiria mais sua alegação somente quando já estivesse o feito a tramitar em instância de superposição (Código Civil, art. 193; TST, Súmula 153).
A inovação nestes moldes operada determina pois ao magistrado que, por sua iniciativa exclusiva, em detectando a ocorrência de hipótese de incidência de lapso prescricional, desde logo a proclame, decidindo assim o processo com exame do mérito (CPC, art. 269, inciso IV), ou seja, proferindo sentença apta à formação de coisa julgada formal e material. E esta atividade poderá o juiz realizá-la inclusive em sede liminar, indeferindo, de plano, a petição inicial apresentada pelo demandante (CPC, art. 295, inciso IV) (2).
Nosso objetivo será averiguar se o preceito em questão pode ser considerado parte integrante do processo do trabalho brasileiro, mercê da aplicação supletiva autorizada pelo artigo 769 da CLT.
2. O princípio protetor e o processo do trabalho
Como assinala o professor argentino Mario E. Ackerman, ninguém a rigor questiona que, se existe um princípio informador do direito do trabalho, este é o princípio protetor ou princípio de proteção (3),o qual ademais consubstancia, segundo a difundida e consagrada doutrina de Américo Plá Rodriguez, o critério fundamental orientador deste ramo do ordenamento jurídico (4), ou ainda, para nos valermos agora da lição da docente portuguesa Maria do Rosário Palma Ramalho, o seu paradigma tradicional (5).
O princípio de proteção tem por escopo primordial equilibrar a relação empregado/empregador, cuja essência e desenvolvimento é marcadamente permeada pela preponderância deste sobre aquele. Funciona destarte como o contrapeso formal, institucional, da prevalência econômica.
Sem a construção teórica e a aplicação prática do princípio de proteção, o direito do trabalho representaria não mais que uma simples quimera. Seria uma carta de intenções bela e solene, mas rigorosamente nada além.
De outro lado, na exata medida em que o direito do trabalho tem por seu instrumento de viabilização o processo judicial que lhe é correlativo, o princípio de proteção a este igualmente se agrega. Como assinala Isis de Almeida, "um direito processual tem, necessariamente, de acompanhar o sentido, a índole do direito material ao qual se vincula". (6) Sérgio Pinto Martins, a seu turno, chega mesmo a acentuar ser este o verdadeiro princípio do processo do trabalho. (7) Por fim, para o doutrinador peruano Mario Pasco, o princípio protetor poderia inclusive ser reputado mais pertinente ao direito processual do que ao direito material, já que no primeiro sua incidência se daria de maneira mais freqüente. (8)
De sorte que qualquer aplicação ou interpretação das normas processuais trabalhistas, sejam estas típicas ou atípicas (oriundas de integração supletiva de preceitos do processo comum), não poderá prescindir de um prévio e pleno enquadramento na moldura do princípio de proteção. Esta será a premissa primeira de sua eficácia, o passo necessário no caminho de sua eventual utilização.
3. A prescrição e o processo do trabalho
A realidade das Cortes laborais tem sobejamente demonstrado que quem se utiliza do processo do trabalho é o empregado. Ele é o demandante por excelência. Esta circunstância é uma conseqüência direta do estado de sujeição fática que lhe é imanente, quando do transcorrer do contrato individual de trabalho.
Trata-se assim de uma constatação ínsita ao próprio caráter da relação de direito material e, por isto mesmo, de aferição universal.
Com efeito: na Espanha, Carmen Sáez Lara registra que, em regra, "el trabajador es el demandante y el empresario el demandado". (9) No Uruguai, anota Juan Raso Delgue que quem promove a pretensão "en la práctica procesal es siempre la parte trabajadora". (10) No Peru, verificação deste jaez é feita por Luis Vinatea Recoba (11), o mesmo se dando na Venezuela, conforme esclarece a doutrina de Eric Lorenzo Pérez Sarmiento. (12)
Significa isto dizer que, no âmbito do processo laboral, a decretação da prescrição virá sempre em prol do empregador. Será uma vantagem diretamente vinculada à parte mais forte do conflito de interesses submetido à apreciação do órgão jurisdicional.
Logo, parece claro que seu reconhecimento de ofício pelo magistrado irá colidir, de forma impostergável, com o princípio de proteção.
A conclusão acima ainda mais se realça quando se analisa a natureza da figura em questão, dentro da realidade da relação laboral de índole subordinada.
O trabalhador, porque dependente, para seu sustento próprio e familiar, do emprego e do salário que deste dimana, não ousa colocá-lo em risco. Mesmo que tenha ou pense ter direitos violados pelo seu empregador, não os reclama judicialmente, pois isto poderia ameaçar a manutenção de sua fonte de renda primordial e, quase sempre, exclusiva.
De sorte que o fluxo do tempo volta-se inexoravelmente contra ele: a exigibilidade de seus haveres, a materialização prática dos benefícios que a lei lhe confere, é gradativamente consumida com o passar dos anos.
Daí resulta que, como bem registra Oscar Ermida Uriarte, a fixação de prazos prescricionais exíguos é uma forma indireta, encoberta ou atípica, mas muito eficaz, de redução de direitos do trabalhador. (13) Por conseguinte, o juiz do trabalho que declará-la de ofício, estará colaborando para a debilitação do direito material, pela via do processo. O processo do trabalho, neste diapasão, ao invés de servir como instrumento de efetivação do direito do trabalho, funcionará como mecanismo estimulador de seu enfraquecimento.
Pelo exposto acima, transborda a conclusão de que o `PAR` 5º do art. 219 do CPC, em sua novel redação, não se compatibiliza com os ditames do art. 769 da CLT.
É que a incompatibilidade em questão não se configura somente através da colisão de normas explicitamente contraditórias: ela também se perfaz pela dissonância de sistemas, (14) pela dissensão de perspectivas, pela divergência de objetivos. Por isto mesmo que, no Código de Processo do Trabalho Português, dispõe o inciso 3 de seu artigo 1º que "as normas subsidiárias não se aplicam quando forem incompatíveis com a índole do processo regulado neste título" (destacamos). (15)
4. Conclusão
O alargamento das fronteiras da Justiça do Trabalho, resultante de recente reforma constitucional, trouxe desdobramentos positivos e negativos.
Dentre os primeiros, pode ser citada a solução de uma antiga quizila, concernente às ações de indenização por acidente de trabalho, quando nelas figure como demandado o empregador.
Dentre os últimos, incluímos a imprecisão do termo relação de trabalho, cuja interpretação abrangente poderá eventualmente levar não somente a uma indevida sobrecarga da justiça obreira, mas também a um efeito que será bem pior do que este: a perda de sua identidade.
A invasão de lides de cunho civil, relativas a prestadores de serviços autônomos, onde não se vislumbre a priori um estado de dependência econômica de uma parte em relação à outra, caso ocorra, tenderá a mitigar, no cotidiano dos pretórios laborais, a aplicação do princípio de proteção. E esta relativização poderá sim, sem maiores dificuldades, ser indevida e inconscientemente transportada para os conflitos entre empregados e empregadores, cujo exame e solução consubstanciam a missão histórica da Justiça do Trabalho, a razão fundamental de sua criação e existência.
As medidas reformadoras trazidas para o bojo do CPC - a despeito do inegável intuito de aprimoramento que as informa, o qual aponta para a consecução da tão almejada efetividade do processo - foram concebidas e delineadas para contendas de natureza civil. É portanto natural que elas nem sempre se amoldem ao perfil do processo do trabalho, cabendo pois aos operadores deste apartar as hipóteses de incompatibilidade das genuínas hipóteses de integração. Que indiscutivelmente são muitas, mas não são todas.
O novo parágrafo 5º do artigo 219 do CPC enquadra-se na primeira situação, pelo que deixá-lo de lado é medida que se impõe. Esta é, aliás, uma boa oportunidade para, em tal particular, resgatar e ratificar o DNA da Justiça e do processo do trabalho, invocando-se a regra contida no `PAR` 1º do art. 799 da CLT, para o efeito de concluir que a prescrição, a par de necessitar, para seu potencial conhecimento, de manifestação expressa da parte a quem aproveita, deverá ademais ser invocada já na contestação, sob pena de preclusão. (16) Colocando a questão em outros termos, a reflexão propiciadora do descarte da indigitada disposição legal, pode e deve igualmente servir de supedâneo para a revisão do entendimento jurisprudencial galvanizado na Súmula 153 do TST. E, com isto, reconduzir o processo laboral para o rumo que lhe é próprio, para o único itinerário que verdadeiramente lhe serve.
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1. Bacharel, Mestre e Doutor em
Direito pela USP. Juiz titular da 10ª Vara do Trabalho
de Campinas. Professor de direito do trabalho e de
direito processual do trabalho nos cursos de graduação
e pós - graduação da Pontifícia Universidade Católica
de Campinas.
2. A este respeito: WAMBIER, Luiz Rodrigues;
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel
Garcia. Breves comentários à nova sistemática
processual civil II: Leis 11.187/2005, 11.232/2005,
11.276/2006, 11.277/2006 e 11.280/2006. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 42.
3. Tratado de derecho del trabajo: teoria general del
derecho del trabajo. Obra de autoria coletiva,
coordenada por Diego Martin Tosca e dirigida por Mario
Eduardo Ackerman - 1ª edição - Santa Fé: Rubinzal -
Culzoni, 2005, p. 317.
4. Princípios de direito do trabalho. Tradução de
Wagner D. Giglio, 3ª edição atualizada. São Paulo: LTr,
2000, p. 83.
5. Direito do Trabalho. Parte I - dogmática geral.
Coimbra: Almedina, abril/2005, p. 48. A expressão está
destacada em itálico pela autora.
6. Manual de direito processual do trabalho. 9ª
edição, atual. e ampl., São Paulo: LTr, 1998, volume
01, p. 19.
7. Direito processual do trabalho: doutrina e
prática forense; modelos de petições, recursos,
sentenças e outros. 24 edição, São Paulo: Atlas, 2005,
p. 70.
8. Fundamentos do direito processual do trabalho.
Revisão técnica de Amauri Mascaro Nascimento e tradução
de Edilson Alkmim Cunha. São Paulo: LTr, 1997, p. 81.
9. La tutela judicial efectiva y el proceso laboral.
Madrid: Civitas Ediciones, SL, 2004, p. 37.
10. El principio protector en el proceso del
trabajo. In: Derecho procesal del trabajo, treinta
estudios. Montevideo: FCU, outubro de 2005, p. 57.
11. Análisis funcional de la ley procesal del
trabajo: condicionantes de la eficacia del proceso
laboral. In: Balance de la reforma laboral peruana.
Obra de autoria coletiva coordenada por Víctor Ferro
Delgado, Sociedad Peruana de Derecho del Trabajo y de
la Seguridad Social, Lima, setembro/2001, p. 299.
12. Comentários a la ley orgánica procesal del
trabajo, 2ª edição. Caracas: Vadell Hermanos Editores,
p. 23.
13. La flexibilidad laboral. Disponível em: http://www.escenario2.org.uy/numero3/uriarte.html
. Acesso realizado em 14/04/2006. O renomeado autor
uruguaio está a referir-se à Lei 16.906 de 1998, que
reduziu de dez para dois anos o lapso de prescrição na
vigência do contrato, e de dois anos para um após sua
extinção. Vale notar que, pouco mais tarde, fenômeno
bastante similar veio a ocorrer no Brasil, com o
advento da malfadada EC 28/2000, que simplesmente
destroçou o patrimônio jurídico de milhões de
trabalhadores rurais.
14. Neste sentido, dispõe o art. 63 da Lei de
procedimento laboral da província de Buenos Aires que
"Las normas del Código Procesal Civil y Comercial de
la Provincia de Buenos Aires se aplicarán
supletoriamente en cuanto concuerden con el sistema de
la presente ley (destacamos - In: Código procesal
civil y comercial de la província de Buenos Aires:
códigos universitários 2006. 3ª edição. Buenos Aires:
Abeledo-Perrot, 2006, p. 297 ).
15. In: Código de processo do trabalho. 2ª edição,
Coimbra: Almedina, 2005, p. 19.
16. Neste sentido, conquanto se reportando ao art.
300 do CPC, é o escólio de Sérgio Pinto Martins (op.
cit., p. 310).