O trabalho tem importância
indiscutível para o homem, como garantia de sua
sobrevivência. O salário é elemento indispensável à
realização desse fim e corresponde ao objetivo nuclear
do contrato individual de emprego.
Traduzindo bem a importância das parcelas salariais,
Maurício Godinho Delgado , afirma que elas "(...)
têm se constituído em tema central das lutas
trabalhistas nos últimos dois séculos, magnetizando
parte expressiva do potencial de articulação e
organização dos trabalhadores no contexto
empregatício". (Curso de direito do trabalho. - 3
ed. - São Paulo: Ltr, 2004, p. 763)
O salário, latu sensu, possui natureza
essencialmente alimentar, tanto em relação à pessoa do
obreiro como aos seus dependentes. Por isso, tem
recebido particular tratamento do ramo especializado do
Direito, que busca mecanismos para preservar-lhe a
função. Foi erigido em seu entorno um sistema de
salvaguarda destinado a assegurar sua integridade e
intangibilidade, considerando seus aspectos imediato
(preservação da dignidade humana, com a satisfação de
necessidades essenciais) e mediato (indutor social e
econômico).
Na avaliação de José Augusto Rodrigues Pinto, "o
sistema é tão compacto que, embora vise, em última
análise, à proteção do empregado, em sua condição de
economicamente fraco, chega a proteger o salário
contra atos imprevidentes do próprio empregado".
(Curso de direito do trabalho 4 ed. - São Paulo : LTr,
2000, pág. 289)
Esclarecendo sobre a imprevidência
do empregado, aquele ilustre membro da Academia
Nacional de Direito do Trabalho (Op. Cit., págs.
294/295) sintetiza oportuna lição de Orlando Gomes e
Élson Gottschalk, para quem esse evento
"(...) se manifesta nos gastos excedentes da
previsão orçamentária que o valor do salário permite,
geralmente representados pela aquisição de supérfluos
ou o exagero com as despesas de lazer. (...) Em suma,
a proteção se faz sentir sobre o salário quando as
formas contratuais levem o empregado a despojar-se,
pura e simplesmente, em favor de outrem, do crédito
salarial, frustrando-lhe a função alimentar e
evidenciando a imprevidência de seu beneficiário".
O direito positivo brasileiro, entretanto,
desconsiderou a dogmática protetiva, quando foi
alterada a época destinada à quitação da remuneração
de férias. O Decreto-Lei nº. 1.535/77 modificou todo o
respectivo capítulo da CLT, tendo introduzido um
cronograma de pagamento diferenciado, que rompeu com a
periodicidade assentada pela própria Consolidação: o
trintídio (art. 459, caput). É justamente essa
inovação que tem rendido sérias conseqüências à vida
financeira e social do empregado, que não tem sido
abordadas pela doutrina juslaboralista.
A vivência de vários anos como operador do Direito
Material do Trabalho, realizando exame presencial das
relações de emprego, diálogo com os atores sociais
envolvidos e observação de diversas variáveis
consolidou no autor uma visão mais pragmática sobre a
aplicação do feixe de normas protetivas.
Tais modestas credenciais acredita-se que possam
autorizar a audácia deste breve estudo, na busca de se
materializar o feedback preconizado pelo artigo 3º,
alinea c, da Convenção nº 81 da Organização
Internacional do Trabalho (OIT), dispositivo esse que
visa propiciar o aprimoramento da legislação nacional
de cada país signatário daquele pacto.
O inconformismo em questão está direcionado para os
efeitos da combinação entre as disposições dos artigos
145 e 142 do estatuto laboral. Resulta das mesmas que
as verbas destinadas ao sustento da célula familiar
devem ser antecipadas ao empregado até dois dias antes
do período de fruição das férias.
Com tal insensatez pretendeu o legislador ordinário
que o empregado promovesse um inimaginável exercício de
ginástica em seu orçamento doméstico e lançasse mão de
um numerário já comprometido com despesas essenciais
para também patrocinar atividades de lazer no descanso
anual.
Não bastasse isso, lhe impôs um prolongado jejum
financeiro, de pelo menos dois meses, até o próximo
aporte de recursos. Segundo o cronograma legal, findo o
período de férias o próximo pagamento somente será
devido após o término do mês trabalhado seguinte.
Onze anos depois essa situação veio a ser apenas
minorada, com a promulgação da nova Carta Política.
Mais sensível à situação, o constituinte originário
criou um plus para o poder aquisitivo do empregado.
Visou proporcionar-lhe disponibilidade financeira para
o atendimento das despesas acarretadas pelo necessário
afastamento do trabalho. Em compensação, foi mantido o
critério de adiantamento da parte da remuneração
voltada ao atendimento das despesas alimentícias.
Percebendo quase simultaneamente o terço
constitucional e a remuneração de dois períodos (mês de
férias e seu antecessor), muitos assalariados têm a
falsa impressão de ter dobrado sua capacidade
financeira.
Cria-se, então, um campo fértil para que se manifeste
o fenômeno da imprevidência do
empregado, já definido pelo abalizado
magistério de Orlando Gomes apud Rodrigues Pinto (Op
cit. págs. 294/295). O obreiro passa a realizar gastos
excessivos que comprometem demasiadamente o valor do
numerário auferido. Deixa de reservar parte dos
recursos para que pudesse prover o próprio sustento e
o dos seus durante os sessenta dias de abstinência
monetária que terá de enfrentar.
Essa dificuldade para gerenciar o orçamento
doméstico, com adequação do valor das despesas ao das
receitas, é comum a muitos brasileiros. Corroboram com
tal constatação os elevados índices de inadimplência
registrados pelos serviços de proteção ao crédito,
amplamente divulgados pela mídia. Fatores como compras
mal planejadas, falta do hábito de poupar, baixo poder
aquisitivo e inacessibilidade a serviços bancários de
custódia de dinheiro contribuem para agravar esse
quadro.
Se o salário, percebido na regularidade habitual,
por vezes já não é suficiente para enfrentar todo o
mês, o transtorno é maior ainda quando sua
periodicidade é alterada, pelas mencionadas razões.
O empregado se coloca em situação financeira
vulnerável e, quando os recursos das férias minguarem,
necessitará buscar caminhos para assegurar sua
sobrevivência. O endividamento é um deles e tem sérios
reflexos. Pode desestruturar o núcleo familiar e a vida
social do cidadão.
Uma alternativa não descartável é que o obreiro
volitivamente passe a ofertar sua força de trabalho ao
empregador, suprimindo o período de descanso restante.
Esse precoce retorno ao labor configura uma conversão
em pecúnia que exorbita o permissivo legal (CLT, art.
143). Sepulta o sentido do ócio remunerado, que é
medida de higiene física e mental altamente necessária
à preservação da saúde pública.
Convém frisar que não se trata de tentar transformar
as férias no instituto da licença remunerada. Esta se
distingue inteiramente daquela, ao menos pela ausência
da gratificação especial e de prévio aviso, que
constituem garantias para o usufruto de um afastamento
planejado. A licença remunerada, inclusive, amplia a
desigualdade contratual laboral, pois é ato potestativo
do tomador de serviços, que pode dar ensejo à perda do
direito ao descanso anual (CLT, art. 133, II). Eis uma
enorme fenda aberta pelo legislador e que constitui
ameaça permanente a este último instituto.
Enfrentar a questão central suscitada neste ensaio é
tarefa que não se vincula, necessariamente, ao
demorado processo legislativo. Não raro leva-se anos
para legitimar as aspirações da sociedade. Por vezes,
conforme aqui se verificou, são desconsiderados fatos
sociais e princípios jurídicos nos quais a norma
protetiva teria que se inspirar.
A negociação coletiva, relevante geratriz de fontes
do Direito do Trabalho, surge como alternativa para
alçar o empregado a uma condição mais benéfica, em
perfeita harmonia com o ordenamento constitucional
(CF, art. 7º, caput, parte final).
O pagamento antecipado de parcelas como o terço
constitucional, o abono pecuniário e o adiantamento da
gratificação natalina (direito rarissimamente exercido)
é plenamente justificado, para que estejam disponíveis
a tempo de custear as férias. Por serem verbas
estabelecidas em patamares mínimos, a via do ajuste
coletivo - ou até mesmo individual - permite sua
majoração, o que seria medida bastante salutar, pois
efetivamente ampliaria o poder aquisitivo do empregado
e, por conseguinte suas possibilidades de lazer.
Quanto ao salário referente ao período em que
ocorrem as férias, é imprescindível, pelas diversas
razões antes elencadas, sua desvinculação da referida
remuneração extra, de modo que, sendo percebido na
época habitual (CLT, art. 459, caput), possa ser
destinado aos compromissos cíclicos que são necessários
à manutenção do núcleo familiar, resguardando o
obreiro de sua própria imprevidência.
Trata-se de medida que se integra à rede de proteção
do salário, para proporcionar mais sossego à vida do
empregado e, por extensão, melhor equilibro às mais
diversas relações sociais e econômicas que se
estabelecem na comunidade a partir dos frutos
auferidos no liame empregatício.
(*) Auditor-fiscal do Trabalho, bacharel em
Direito e pós-graduando em Processo Civil
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