A embriaguez ao volante,
sabidamente, é uma das principais causas de acidentes
e mortes no trânsito brasileiro. O álcool e as demais
substâncias de efeitos embriagantes atuam diretamente
sobre o sistema nervoso central, diminuindo
sensivelmente a capacidade de reação diante das
adversidades surgidas durante as viagens.
Diante deste cenário, o legislador pátrio, ao
elaborar a lei nº 9.503, de 21 de setembro de 1997
(CTB), reservou recrudescido tratamento àquele que é
surpreendido dirigindo veículo automotor sob efeito de
álcool ou de substância entorpecente, tóxica ou de
efeitos análogos, tipificando a sua conduta como
infração administrativa e, tendo gerado perigo de
dano, também como crime de trânsito.
Assim é que, ab initio, é preciso distinguir: 1) se
o motorista é surpreendido dirigindo veículo
automotor, na via pública, sob efeito de álcool ou de
qualquer substância entorpecente ou que determine
dependência física ou psíquica, mas o fazia de maneira
regular, sua conduta subsume-se apenas e tão somente
na infração administrativa tipificada no art. 165 do
Código de Trânsito Brasileiro (CTB); 2) de outro norte,
se sob a influência de álcool ou substância de efeitos
análogos, conduzia o automotor de forma a expor a
dano potencial a incolumidade de outrem, v.g., de
maneira anormal , sua conduta, além de caracterizar
infração administrativa, também constitui o crime de
embriaguez ao volante tipificado no art. 306 do
CTB.
Da mesma forma, também na seara da prova do estado de
ebriedade do motorista o legislador reservou
procedimentos diversos.
Tratando-se de conduta que se amolda ao crime de
embriaguez ao volante (art. 306 do CTB), a prova da
ebriedade deverá seguir os procedimentos determinados
no Título VII do Código de Processo Penal (CPP),
notadamente em seu Capítulo II, que versa sobre o
exame de corpo de delito e as perícias em geral, vez
tratar-se de delicta facti permanentis. Aliás, expresso
o art. 291 do CTB ao prescrever que aos crimes
previstos naquele Codex se aplicam as normas gerais do
Código Penal e do Código de Processo Penal, se este
Capítulo não dispuser de modo diverso...(grifo nosso).
Nada diz o Capítulo XIX do CTB sobre a prova da
embriaguez ao volante; portanto, aplicáveis à espécie
as regras gerais preconizadas no CPP.
Veja-se então que, sendo o motorista surpreendido
dirigindo anormalmente veículo automotor na via
pública, sob efeito de álcool ou de outra substância
de efeitos análogos, deverá ser encaminhado para
submissão ao indispensável exame pericial
comprobatório do seu estado de ebriedade, nos termos
do art. 158 do CPP, e, somente diante do
desaparecimento dos vestígios do seu irresponsável
estado, v.g., em razão da demora no atendimento,
restará a possibilidade do suprimento daquele exame
pela prova testemunhal, consoante previsto no art. 167
do Estatuto Processual Penal.
Neste ponto, desde logo, é importante salientar que
o motorista não está obrigado a ceder sangue ou soprar
no bafômetro ; contudo, neste caso, os peritos
realizarão o exame clínico.
Questão controvertida é a prova da ebriedade do
condutor quando sua conduta caracteriza apenas a
infração administrativa de trânsito, descrita no art.
165 do CTB. Este é o objeto do presente ensaio.
A redação original do art. 277 do CTB, que se insere
no Capítulo XVII do Código de Trânsito Brasileiro ?
Das medidas Administrativas, dispunha que todo
condutor que se envolvesse em acidente de trânsito ou
fosse alvo de fiscalização, sob suspeita de haver
excedido os limites previstos no artigo anterior ,
deveria ser submetido aos testes de alcoolemia e
outros, in verbis: será submetido a testes de
alcoolemia, exames clínicos, perícia, ou outro exame
que por meios técnicos ou científicos, em aparelhos
homologados pelo CONTRAN. (grifo nosso)
O Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN) editou
então a Resolução nº 81, de 19 de novembro de 1998,
especificando os referidos exames: 1) teste em
aparelho de ar alveolar (bafômetro); 2) exame clínico
com laudo conclusivo firmado pelo médico examinador da
Polícia Judiciária; e 3) exames realizados por
laboratórios especializados indicados pelo órgão de
trânsito competente ou pela Polícia Judiciária.
Saliente-se ainda que, no caso da embriaguez
alcoólica, o art. 165 do CTB tipificava apenas a
conduta daquele que dirigisse com nível superior a 6
decigramas de álcool por litro de sangue . Como atestar
o desrespeito a tal índice através do exame clínico?
Na prática, desprezava-se para aplicação da
penalidade, no caso de laudo conclusivo do perito
examinador, a informação acerca da precisa quantidade
de álcool por litro de sangue do examinado.
Veio então a Lei nº 11.275, de 7 de fevereiro de
2006, e deu nova redação aos artigos 165, 277 e 302 do
CTB.
Corrigindo a imperfeição da redação original do art.
165, prescreveu a nova lei que é infração de trânsito
Dirigir sob influência de álcool ou de qualquer
substância entorpecente ou que determine dependência
física ou psíquica.
No art. 302 do CTB, acrescentou o inciso V no seu
parágrafo único, transformando a embriaguez ao volante
em causa de aumento de pena do crime de homicídio
culposo no trânsito e, conseqüentemente, também no de
lesão corporal culposa no trânsito. Fez assim cessar a
dissidência doutrinária que havia sobre a embriaguez ao
volante ser ou não absorvida pelos referidos
delitos.
Já no art. 277 do CTB, transformou o parágrafo único
em primeiro e inseriu o `PAR` 2º, determinando, in verbis:
no caso de recusa do condutor à realização dos testes,
exames e da perícia previstos no caput deste artigo, a
infração poderá ser caracterizada mediante a obtenção
de outras provas em direito admitidas pelo agente de
trânsito acerca dos notórios sinais de embriaguez,
excitação ou torpor, resultantes do consumo de álcool
ou entorpecentes, apresentados pelo condutor.
Severas críticas foram formuladas em
desfavor do `PAR` 2º do art. 277 do CTB, apregoando-o de
inconstitucional por violação ao princípio da ampla
defesa e taxando-o de instrumento de obtenção de prova
ilícita. Na verdade, data máxima vênia, tais
ponderações não revelam o melhor entendimento.
Primeiramente, é imprescindível relembrar a
dicotomia descrita no início deste trabalho: a
embriaguez ao volante tanto pode caracterizar crime de
trânsito quanto pode, apenas e tão somente,
estreitar-se na esfera da infração administrativa.
No âmbito penal, a prova do estado de ebriedade,
como já visto, deve seguir os exatos ditames do Código
de Processo Penal. Já na seara administrativa, os do
art. 277 do Código de Trânsito Brasileiro.
Veja-se que o caput e `PAR` 1º do art. 277 do CTB
estabelecem que o condutor surpreendido sob suspeita
de dirigir sob efeito de álcool ou de substância
entorpecente, tóxica ou de efeitos análogos será
submetido aos testes respectivos.
Todavia, como corolário do princípio da ampla
defesa, é cediço que o condutor não é obrigado a soprar
no bafômetro e tão pouco ceder sangue para o exame
laboratorial.
Restaria a sua submissão ao exame clínico perante o
perito médico-examinador. E se o motorista se recusar
a deslocar até o hospital ou outro local para a
realização do exame? Poderia ele ser conduzido
coercitivamente para tal ato, inclusive com o emprego
da força necessária? Caso negativo, deveria então ser
liberado para prosseguir viagem, colocando em risco a
segurança viária e a vida das pessoas no trânsito?
Neste ponto vale lembrar as lições do Procurador de
Estado Paulista Prof. Delton Croce Júnior ao comentar
o exame de embriaguez em face da original redação do
art. 277 do CTB :
A recusa do indivíduo em submeter-se ao exame clínico pericial a que não está obrigado e para cuja feitura não permite sequer a lei condução coercitiva, sendo, nessa hipótese, inaplicável o art. 201 do Código de Processo Penal, será a negativa consignada em documento próprio e o exame clínico somatopsíquico ou o laboratorial suprido, consoante o art. 167 do mesmo Código, por prova testemunhal coerente, idônea, à qual a jurisprudência tem reconhecido validade para comprovar, ante a publicidade escandalosa da contravenção, o estado de embriaguez do agente.
Justamente para solucionar a
questão, foi que o legislador pátrio estabeleceu, no
novo `PAR` 2º do art. 277 do CTB, que, no caso de recusa do
motorista em submeter-se aos testes, exames e perícias
previstos, o agente de trânsito poderá se valer de
outros meios de prova em direito admitidos para a
comprovação dos notórios sinais de embriaguez,
excitação ou torpor, resultantes do consumo de álcool
ou entorpecentes, apresentados pelo condutor.
O CONTRAN, regulamentando tal dispositivo legal,
editou a Resolução nº 206, de 20 de outubro de 2006,
disciplinando o procedimento dos agentes de trânsito
diante de tal situação, inclusive estabelecendo
detalhado relatório a ser preenchido e assinado pelo
agente e por testemunhas. Não há que se falar em
violação ao princípio da ampla defesa. Não há prova
ilícita.
No caso, diante de uma gravíssima infração
administrativa de trânsito, que causa sério e iminente
risco à segurança viária, não poderia ficar o Poder
Público despido de qualquer medida capaz de superar a
negativa do condutor de se submeter aos testes em
questão. Enfatize-se, é uma escolha livre do
motorista. É ele quem decide: se quiser se submeter
aos testes, o fará; caso negativo, a sua recusa é
suprida por outros meios de prova em direito
admitidos. A recusa não constitui confissão e seu
estado deve restar comprovado por outros instrumentos
probatórios.
Não pode a torpeza do motorista, que sabidamente
dirige sob influência de álcool ou outra substância de
efeitos análogos, militar a seu favor em desprezo do
interesse público da segurança do trânsito. Seria
muito simples: me recuso aos testes e nenhuma medida
administrativa pode ser adotada em meu desfavor.
Salutares os ensinamentos do eminente Prof. Alexandre
de Moraes :
Os direitos e garantias individuais e coletivos consagrados no art. 5º da Constituição Federal não podem ser utilizados como um verdadeiro escudo protetivo da prática de atividades ilícitas, nem tampouco como argumento para afastamento ou diminuição da responsabilidade civil ou penal por atos criminosos, sob pena de total consagração ao desrespeito a um verdadeiro Estado de Direito.
Novamente ressalte-se que não se
está aqui tratando do caso do cometimento de crime de
trânsito de embriaguez ao volante, circunstância em
que o exame pericial é obrigatório e que o condutor,
indubitavelmente, poderá, se for o caso, ser conduzido
coercitivamente para o exame pericial, ainda que não
obrigado a soprar no bafômetro ou ceder sangue para
exame laboratorial. É o caso de, apenas e tão somente,
infração de trânsito.
O interesse público, consubstanciado no direito
coletivo ao trânsito em condições seguras, não pode
sucumbir em face da negativa do motorista. Como bem
salienta a Douta Professora Maria Sylvia Zanella Di
Pietro os interesses públicos têm supremacia sobre os
individuais .
Ademais, a constatação da embriaguez não é deixada
ao puro deleite do agente de trânsito; ao contrário,
dar-se-á através dos meios de prova em direito
admitidos e, notadamente, nos termos a Resolução nº
206/06 do CONTRAN.
Assim é que, diante da fundada
suspeita de que o condutor dirige sob efeito de álcool
ou outra substância de efeitos análogos, o agente de
trânsito deverá convidá-lo a se submeter aos exames e
perícias preconizados no art. 277 do CTB e na
Resolução nº 206/06 do CONTRAN. Diante da recusa do
motorista, que, ao nosso ver, em face de mera infração
administrativa de trânsito não poderá ser conduzido
coercitivamente para realização do exame clínico
perante o médico da Polícia Judiciária , deverá então
o agente se valer de outros meios de prova em direito
admitidos para a comprovação do seu estado de
ebriedade, dentre os quais destaca-se a prova
testemunhal.
O ideal é que o agente de trânsito se valha de
pessoas idôneas e desinteressadas para a produção da
prova testemunhal. Contudo, diante de eventual
impossibilidade, nada obsta que o estado de ?influência
de álcool? seja por ele mesmo aferido, diante dos
notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor,
resultantes do consumo de álcool ou entorpecentes,
apresentados pelo condutor, a serem perenizados no
relatório específico .
Acerca da prova testemunhal na constatação do estado
de embriaguez, lapidares as lições do Prof. Genival
Veloso de França :
A caracterização de um estado de
embriaguez é sempre um critério clínico em que se
procura evidenciar a capacidade de autodeterminar-se
normalmente, revelada pelo agente ao tempo do evento
criminoso, competindo ao perito averiguar se as suas
condições somatoneuropsíquicas configuram as
especificações da lei. Ou um critério de avaliação
testemunhal:
?Sendo relativa, para cada indivíduo, a influência
do álcool, prevalece a prova testemunhal sobre o laudo
positivo de dosagem alcoólica. Impõe-se a solução, eis
que aquela informa com maior segurança sobre as
condições físicas do agente? (TACrim ? AC ? Juricrim ?
Relator Correia das Neves Franceschini, nº 2.008)?
(grifo nosso)
Cumpre destacar que a prova no
direito administrativo não se reveste das mesmas
exigências e formalidades da esfera penal e, ainda, que
milita, a favor da embriaguez regularmente aferida
pelo agente de trânsito, a presunção de veracidade
própria dos atos da Administração Pública, a qual
poderá ser afastada pelo condutor também através dos
meios de prova em direito admitidos.
Em conclusão, após constatar o estado de embriaguez
alcoólica ou de substância de efeito análogo, quer
através dos exames ou perícias determinados no art. 277
do CTB e Resolução nº 206/06 do CONTRAN, quer através
de outros meios de prova em direito admitidos, o
agente de trânsito deverá adotar as medidas
administrativas cabíveis na espécie, ou seja, a
retenção do veículo até a apresentação de condutor
habilitado e em boas condições físicas e psíquicas,
além da lavratura da respectiva autuação por infração
ao art. 165 do Código de Trânsito Brasileiro.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
JESUS, Damásio E. de. Crimes de Trânsito. 1ª Ed. São
Paulo: Saraiva, 1988.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 4ª Ed.
São Paulo: Atlas, 1998.
PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Direito
Administrativo. 12ª Ed. São Paulo: Atlas, 2000.
CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 12ª Ed. São
Paulo: Saraiva, 2005.
RIBEIRO, Geraldo de Faria Lemos Pinheiro e Dorival.
Código de Trânsito Brasileiro Interpretado. 2ª Ed. São
Paulo: Juarez de Oliveira, 2001.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal
Comentado. 4ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2005.
JÚNIOR, Delton Croce e Delton Croce. Manual de
Medicina Legal. 4ª Ed. São Paulo: Saraiva, 1998.
FRANÇA, Genival Veloso de. Medicina Legal. 6ª Ed. Rio
de Janeiro: Guanabara Koogan S.A., 2001.
________________________________
(*) 1º Tenente da Polícia Militar do Estado de
São Paulo, Instrutor de Legislação de Trânsito em
cursos da Polícia Militar Rodoviária e Professor da
Faculdade de Direito das Faculdades Integradas de
Ourinhos - FIO