Para analisar a eficácia horizontal
dos direitos fundamentais, é fundamental tecer breves
linhas sobre as perspectivas subjetiva e objetiva
desses direitos.
Cada direito fundamental traz em si uma perspectiva
subjetiva e outra objetiva. Subjetiva, porque pertence
a cada indivíduo a titularidade do direito fundamental
em jogo e a prerrogativa de exercê-lo, ou não.
Objetiva, porque
a norma de direito fundamental, independentemente da possibilidade de sua subjetivação, sempre contém uma valoração. Nesse sentido, os direitos fundamentais valem juridicamente também do ponto de vista da comunidade, como valores ou fins. (SARLET, In MARINONI, 2004, p.168)
Se a sociedade confere juridicamente
a certo direito o status de fundamental é porque este
reflete valores que ela alçou como imprescindíveis à
existência digna do indivíduo naquele momento
histórico. A norma fundamental, por si só, emana
valores, considerados estes em sua dimensão objetiva,
eis que refletem um modelo de conduta a ser seguido
por todos os membros da comunidade.
Em referência a Sarlet, João dos Passos Martins Neto
(2003, p.96) acentua, sobre a dimensão objetiva da
norma, que:
[...] as normas atributivas de direitos fundamentais são aptas a determinar a produção de `efeitos jurídicos autônomos, para além da perspectiva subjetiva`, tais como condicionar a interpretação do direito infraconstitucional, repercutir nas relações jurídicas privadas e impor o dever de proteção e promoção por parte dos poderes públicos, entre outros.
A distinção feita tem aplicações
práticas, mormente no que tange à chamada "eficácia
irradiante da norma" (Expressão utilizada por Luiz
Guilherme Marinoni), pois os valores objetivamente
produzidos pela norma de direito fundamental
repercutem no comportamento da comunidade e, por
conseqüência, alastram-se por todo o ordenamento
jurídico. Este, por sua vez, toma os valores como
paradigma de conduta e referencial para a compreensão
do lícito e do ilícito, do ético e do inaceitável.
Como acentua Ingo Wolfgang, fala-se a respeito da
eficácia irradiante dos direitos fundamentais "no
sentido de que esses, na sua condição de direito
objetivo, fornecem impulsos e diretrizes para a
aplicação e interpretação do direito
infraconstitucional." Complementa Marinoni que "tal
eficácia irradiante é que faz surgir a tese da
interpretação de acordo com os direitos fundamentais."
(MARINONI, 2004, p.233)
Saliente-se que a dimensão subjetiva não advém da
objetiva. Pelo contrário, elas são independentes, ao
mesmo passo que complementares. Da conjugação de ambas
nasce o código ético da sociedade, atrelado ao
exercício do direito de ação que cada indivíduo
titulariza.
O breve apontamento é necessário para se adentrar no
estudo da eficácia horizontal dos direitos humanos
(também chamada "eficácia privada" ou "eficácia em
relação a terceiros"), porquanto estes guardam estreita
ligação com a eficácia irradiante da norma e suas
perspectivas subjetiva e objetiva. O valor (dimensão
objetiva) emanado da norma de direito fundamental
repercute na vida social e política da comunidade,
travando relações de verticalidade (entre o Estado e
particulares) e de horizontalidade (entre
particulares). (MARINONI, 2004, p.166-175)
Existindo desproporcionalidade de forças ou poder
nas relações travadas entre duas partes - seja Estado
versus indivíduo, seja uma empresa privada de grande
poderio econômico versus o particular, seja entre duas
pessoas com poderes sociais diferentes -, diz-se que a
eficácia dos direitos fundamentais manifesta-se de
forma vertical, uma vez que não há igualdade de
condições nos pólos jurídicos.
No que tange a estes últimos, esclarece Marinoni,
citando Ingo Wolfgang Sarlet que:
[...] a existência de algum detentor de poder privado num dos pólos da relação jurídico-privada poderá, isto sim, justificar uma maior intervenção e controle no âmbito do exercício do dever de proteção imposto ao Estado; em outras palavras, uma maior intensidade na vinculação destes sujeitos privados, bem como uma maior necessidade de proteção do particular mais frágil.
Ao contrário, figurando nos pólos da
relação partes com idênticas condições de pactuação,
tem-se a eficácia horizontal dos direitos
fundamentais.
A questão da eficácia horizontal ou vertical produz
efeito prático nos campos fático e jurídico, qual seja,
o de se saber a quem são oponíveis os direitos
fundamentais do indivíduo.
Sobre esse tema, há campo bastante fértil para
discussão. Tanto assim que três correntes despontam
sobre a eficácia horizontal dos direitos fundamentais.
(SARMENTO in MORAES, 2006)
A primeira corrente nega a oponibilidade de direitos
fundamentais entre sujeitos privados, apenas
reconhecendo-a nas relações firmadas com os Poderes
Públicos.
Apenas o Estado sujeita-se à observância das
garantias fundamentais. O rigor desta corrente,
entretanto, ameniza-se ao admitir como sujeito à
vinculação dos direitos fundamentais também o
particular em exercício de atividade típica do Estado,
bem como aqueles que têm suas atividades fomentadas
pelo Estado mediante subsídios e benefícios.
A segunda corrente defende a aplicabilidade mediata
ou indireta dos direitos essenciais e suscita a
impossibilidade de sua oponibilidade entre
particulares, ao argumento de que um choque de valores
entre os indivíduos seria inevitável, posto que
detentores da mesma força jurígena para fazer valer
seus direitos. Nesta linha, direitos essenciais da
pessoa poderiam ser renunciados por meio de acordos
negociais privados, na melhor aplicação do princípio da
autonomia da vontade. Nesta esteira, apenas vigorariam
direitos fundamentais entre particulares na hipótese
de expressa previsão de norma ordinária de direito
privado.
Por fim, a terceira e majoritária corrente prega a
possibilidade de oponibilidade ampla dos direitos
fundamentais não só com relação ao Estado, mas também
entre os particulares, adotando a chamada "eficácia
imediata (ou direta) dos direitos essenciais". A
característica que mais se destaca nesta corrente é a
ausência de intermediação das regras de direito privado
na interpretação das diretrizes constitucionais, que
são imediatamente aplicadas, nos moldes do que dispõe
o `PAR` 1º do art. 5º da CR/88.
Na visão de Vieira de Andrade, a expressão mediata
carece de melhor técnica legislativa, eis que
se confunde com eficácia indireta, quando o que se quer afirmar é um imperativo de adaptação e harmonização dos preceitos relativos aos direitos fundamentais na sua aplicação à esfera de relações entre indivíduos iguais, tendo em conta a autonomia privada, na medida em que é (também) constitucionalmente reconhecida. (ANDRADE In MARINONI, 2004, p.173)
Assim, não se está a desprezar o
princípio da autonomia da vontade, constitucionalmente
reconhecido, mas sim a considerar que em hipótese de
afronta aos princípios constitucionais fundamentais
será necessária a aplicação do princípio da
razoabilidade, na tentativa de afastar a aparente
tensão de valores.
Em se tratando de hipótese de valores aparentemente
conflitantes, recorre-se à teoria da ponderação de
interesses, em que somente a análise do caso específico
poderá dizer qual direito deverá prevalecer sobre
outro, sem que isso ocasione a sua anulação. Nestes
casos, a norma não perde sua eficácia, mas tão-somente
dá lugar a outro direito que, naquele caso concreto,
elegeu um bem da vida como mais valioso.
Em suma, o que é o direito senão uma aplicação
contínua do princípio da ponderação de valores?
Ademais, a terceira corrente, defensora da
oponibilidade dos direitos fundamentais de forma
horizontal - ou seja, entre os particulares - é a que
mais se afina com o espírito democrático do Estado de
Direito, no qual não só o Poder Público submete-se às
normas que ele próprio criou, mas também os
particulares entre si.
A eficácia dos direitos fundamentais entre sujeitos
privados é a prevista no ordenamento pátrio, em que se
garante ao indivíduo o pleno exercício de suas
garantias fundamentais, com a ressalva de não serem
exercidos com abuso de direito.
Dispõe o art. 187 do Código Civil de 2002:
"Também comete ato ilícito o titular de um direito
que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites
impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé
ou pelos bons costumes."
Nota-se claramente pela leitura do dispositivo em
comento que, se os direitos, de uma forma geral, são
oponíveis entre os particulares, o que se dirá dos
direitos fundamentais, dotados de força jurígena
constitucional ainda maior? Porém, não é porque aos
indivíduos são assegurados direitos que estes podem
ser exercidos de forma ilimitada e irresponsável. Ao
contrário, o limite do exercício do direito de um
termina onde o do outro começa. Nesse espectro,
manifestam-se a boa-fé objetiva e os bons costumes.
Preservam-se, assim, a transparência das relações
jurídicas e a lealdade com a contraparte, impondo-se
ainda os deveres de colaboração e proteção dos
recíprocos interesses, traduzidos esses últimos na
consideração aos interesses do parceiro contratual,
limitando-se o indivíduo que se sinta lesado a exigir
apenas o que lhe é de direito, deixando de lado a
mentalidade esperta de levar vantagem em tudo.
O exercício do direito fundamental entre pessoas
iguais deve ser moral, sincero, de forma que ninguém
seja violado em sua dignidade humana. Mas, caso isso
ocorra, o lesado encontrará certamente remédios
jurídicos que lhe socorram, pois os direitos
fundamentais são oponíveis não só em relação ao
Estado, mas perante todos. Afinal de contas, a lei vale
para todos e por todos deve ser cumprida.