A Lei 13.467/2017 inseriu no texto da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, o artigo 10-A, com a seguinte redação:
Art. 10-A O sócio retirante responde subsidiariamente pelas obrigações trabalhistas da sociedade relativas ao período em que figurou como sócio, somente em ações ajuizadas até dois anos depois de averbada a modificação do contrato, observada a seguinte ordem de preferência:
I - a empresa devedora;
II - os sócios atuais; e
III - os sócios retirantes.
Parágrafo único. O sócio retirante responderá solidariamente com os demais quando ficar comprovada fraude na alteração societária decorrente da modificação do contrato.
Nesse artigo, tudo a um só tempo, a reforma reconhece responsabilidade subsidiária do ex-sócio, determina que essa responsabilidade se limite às obrigações relativas ao período em que o retirante se manteve no quadro societário, fixa prazo para essa responsabilidade ser efetivada (até dois anos depois da retirada), cria ordem de preferência e prevê responsabilidade solidária no caso de comprovação de alteração societária fraudulenta, em cujo caso não estabelece limite temporal nem vincula a responsabilidade às obrigações do período antecedente à alteração da sociedade. Diz-se que tudo se fez no escopo de estabelecer segurança jurídica.
O disposto no novel artigo imposto pela lei reformadora, longe de ensejar segurança jurídica, oferece larga margem de incerteza quanto aos interesses dos sócios retirantes, assim dos sócios remanescentes e, principalmente, quanto aos interesses dos trabalhadores, sendo que, em relação a esses últimos, em verdade, não se compatibiliza com a ordem constitucional vigente.
Com efeito, os direitos dos trabalhadores, porque inseridos no Título II, da Constituição Federal, que trata “dos direitos e garantias fundamentais”, são reconhecidos pela Carta Magna como inerentes à pessoa humana e essenciais à vida digna. Em suma, são direitos que o Estado tem o dever de proteger, de tal modo que mesmo leis regularmente editadas não podem prevalecer quando os fere ou frustram a efetividade deles.
Entre os direitos declarados fundamentais (Título I, Capítulo II, artigo 7º, inciso XXIX) a Constituição Federal inclui “ação, quanto aos créditos resultantes das relações de trabalho, com prazo prescricional de cinco anos para os trabalhadores urbanos e rurais, até o limite de dois anos após a extinção do contrato de trabalho”. Certo, pois, que o trabalhador tem o prazo de cinco anos enquanto vigente a relação de direito material e de até mais dois anos depois da cessação do contrato de trabalho para propor ação mirando obter a satisfação de créditos havidos na constância ou por causa da extinção do vínculo. Nenhum outro prazo pode haver que impeça a regular fluência daquele que a Lei Maior estabeleceu: cinco anos até o limite de mais dois depois de cessado o vínculo.
Vejamos uma hipótese para melhor perceber o conflito que a nova lei inaugurou. Imaginemos um contrato de trabalho com vigência de 1º de janeiro de 2010 até 1º de janeiro de 2020. Imaginemos que alteração do contrato social da empresa empregadora registrou em 1º de janeiro de 2017 a saída do até então sócio majoritário. Ao longo dos dez anos a empresa não concedeu férias ao seu empregado, não lhe pagava o 13º salário e sempre se omitiu quanto aos recolhimentos fundiários. No dia 02 de janeiro de 2020 o trabalhador vai à Justiça e obtém, adiante, decisão favorável às suas pretensões. Poderá, portanto, haver créditos exigíveis desde 02 de janeiro de 2015, mas a se atender o disposto no artigo 10-A da CLT, o empregado, já munido de título judicial de constituição do seu crédito, não poderia perseguir a satisfação por responsabilidade subsidiária daquele sócio que se retirou em 2017. Imaginemos agora – para acentuar a injustiça da situação – que o sócio retirante foi exatamente quem mais se beneficiou do trabalho prestado.
Decerto que se pode dizer que o trabalhador poderia ajuizar a ação antes e observar o prazo fixado para a responsabilidade do sócio retirante.
Primeiro, há o aspecto de ordem prática. Não há nas leis nenhuma previsão de que deva a sociedade informar aos seus empregados alterações que ocorram no contrato social, por isso, na imensa maioria das vezes – quase na unanimidade das vezes – o trabalhador não fica sabendo da saída de algum sócio. E se o trabalhador não fica sabendo não se pode dizer que contra ele corre o prazo de reclamação.
Inolvidável, além disso, que mesmo que venha a tomar conhecimento de alteração do contrato social da empresa empregadora, o trabalhador, na imensa maioria das vezes – quase na unanimidade das vezes – tem a sua iniciativa para o ajuizamento de ação sempre contida pelo receio da perda do emprego. E é exatamente por isso que a Constituição Federal lhe assegura prazo de até dois anos depois da cessação do vínculo para demandar em Juízo.
A lei parece dar e tomar. Expressa o reconhecimento da responsabilidade subsidiária, mas impõe prazo que o trabalhador não sabe que existe e que se deflagra a partir de fato que o trabalhador desconhece. Ao contrário de proteger direito fundamental a fixação de prazo para a responsabilidade do sócio retirante ameaça sua satisfação, por isso que se revela incompatível com os dogmas do Direito do Trabalho (princípio da proteção, do risco do patrão na atividade econômica etc.).
Não é só isso. O dispositivo inserido pela lei reformadora da CLT estabelece uma ordem de preferência, segundo a qual o sócio retirante somente arcará com responsabilidade depois de esgotadas as possibilidades de adimplemento pela empresa e pelos atuais sócios! A lei não diz, mas se pode intuir que os sócios mais recentes excluam os mais antigos, hipótese que não se pode desprezar já que não raras são as alterações de entrada e saída de sócios em datas muito próximas umas das outras em sucessivas alterações de contratos sociais. Essa escala de preferências implica reconhecer que entre atuais e antigos sócios pode haver debate, o que ensejaria maior retardamento na satisfação do crédito em desfavor do princípio da duração razoável do processo, configurando obstáculo à efetivação de direito fundamental da pessoa humana.
A desconsideração da personalidade jurídica (artigo 50, do Código Civil) é um fenômeno com tintas semelhantes ao da despersonalização do empregador (artigos 2º, 10 e 448, da CLT), mas são coisas distintas. Não é o Direito do Trabalho que se alimenta no Direito Civil, mas o contrário. A despersonalização da figura do empregador é efeito jurídico que decorre da relação de emprego, já a desconsideração da personalidade jurídica resulta de ato judicial que ordena a afetação do patrimônio dos sócios para quitar as obrigações da sociedade. A despersonalização do empregador é fato que ocorre desde quando celebrado o contrato de trabalho. A desconsideração da personalidade jurídica é ato que poderá ocorrer a depender de circunstâncias que se revelem em cada processo. Essa distinção importa porque, na imensa maioria das vezes – quase na unanimidade das vezes – em que se discute responsabilidade dos sócios retirantes são casos em que a sociedade e subsequentes integrantes do quadro societário não adimpliram com as obrigações oriundas do contrato de trabalho e não apresentaram condições de adimplir. Não é, todavia, hipótese perfeitamente adequada à previsão do artigo 10-A em comento, e não é porque esse dispositivo determina ordem de preferência, o que exige formalização de incidente, implicando novo contraditório entre credor e sócio indicado ou até contraditório entre os próprios sócios atuais e antigos na busca da definição do responsável.
Na seara trabalhista a noção de despersonalização da figura do empregador é, sem duvida, mais ampla, de maneira a assegurar a efetivação dos direitos sociais fundamentais trabalhistas também pelo patrimônio dos sócios independentemente de ocorrência de fraudes e independente de ordem de preferência. Foi ou é sócio responde. E os que foram ou que são sócios que se entendam ou se desentendam em ações de regresso.
Voltemos ao exemplo hipotético acima narrado para considerar a (in)segurança dos sócios e ex-sócios. Relação de trabalho que vigeu de 1º de janeiro de 2010 até 1º de janeiro de 2020, tendo havido alteração do contrato social em 1º de janeiro de 2017 quando se desligou da sociedade o antigo sócio majoritário. No cenário descortinado pela lei reformadora o sócio retirante estaria absolvido de qualquer responsabilidade já que a ação do empregado foi proposta em janeiro de 2020, mais de dois anos da sua saída da sociedade. Os sócios atuais argumentam haverem sido vítimas de ardil praticado pelo retirante. Não haverá sossego para o sócio retirante, que poderá vir a responder por obrigações até posteriores à sua saída (a lei não vincula sua responsabilidade às obrigações oriundas do período que compôs o quadro societário) e não haverá sossego para os sócios subsequentes que poderão responder por atos lícitos e/ou ilícitos praticados pelo anterior sócio. Note-se ainda que, embora ponderável o argumento de que os parágrafos são sempre pertinentes ao “caput” dos dispositivos legais, a redação do § único sugere o contrário. A cabeça do artigo cuida de responsabilidade subsidiária, enquanto que o § único cuida de responsabilidade solidária e diz que esta ocorre em caso de comprovação de fraude sem referir tempo de afastamento do sócio da sociedade. O que parece ser algo favorável ao trabalhador, em verdade, não é. A lei exige comprovação da fraude atribuindo, por conseguinte, ao trabalhador, enquanto interessado no reconhecimento da responsabilidade solidária, o dever de fazer prova de algo desconhecido, algo de que talvez nem mesmo desconfiasse e até não desconfie nunca e de algo que, em razão de sua condição de completo alheamento da condução dos negócios da empresa, não possa, sequer, fazer segura denúncia, menos ainda devida demonstração com apresentação de balanços e orçamentos, provisões e planejamentos, contratos com fornecedores e compromissos com a clientela, além da própria condição pessoal de cada sócio.
E se, em caso de fraude (conluio entre antigos e novos sócios) resulta responsabilidade solidária, imaginemos que a denúncia do ardil ocorra por iniciativa do sócio remanescente, adquirente ou novo integrante da sociedade. O debate consumiria uma eternidade incompatível com a necessidade de efetivação do direito, tudo para ainda se saber se a responsabilidade seria unitária, subsidiária ou solidária. Antes, porém, haveria a necessidade de declinar ou, ao menos, resolver a questão da competência material, pois parece não caber ao Juiz do Trabalho concluir pela ocorrência de fraude em alteração de contrato de sociedade comercial.
A inovação está completando três anos de vigência. Não trouxe nada de positivo.
Agenor Calazans da Silva Filho
Juiz Titular da 25ª Vara do Trabalho de Salvador