Guilherme Guimarães Feliciano*
Paulo Douglas de Almeida Moraes**
Salve, caro leitor!
Queremos discutir as principais nuances da polêmica instaurada pelo Exm.º Presidente da República – mais uma – quando, em uma de suas incursões pelas redes sociais da vida, anunciou que “revogaria” noventa por cento das normas regulamentadores de saúde e segurança do trabalho. Como assim?
Você já deve saber que o Presidente se referia às famosas “NRs” (Normas Regulamentadoras) do extinto Ministério do Trabalho, que hoje já se aproximam da quarta dezena (são atualmente trinta e seis), tratando dos mais diversos aspectos do meio ambiente do trabalho: inspeção prévia, embargos e interdições, Serviços Especializados em Engenharia de Segurança e em Medicina do Trabalho (SESMT), Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (CIPA), Programas de Controle Médico de Saúde Ocupacional (PCMSO), Edificações, Programas de Prevenção de Riscos Ambientais (PPRA), equipamentos de proteção individual (EPIs), segurança em instalações e serviços em eletricidade, máquinas e equipamentos, caldeiras e vasos de pressão, fornos, atividades e operações insalubres e perigosas, ergonomia, explosivos, líquidos combustíveis e inflamáveis, meio ambiente de trabalho na indústria da construção, trabalho a céu aberto, segurança e saúde ocupacional na mineração, proteção contra incêndios, condições sanitárias e de conforto nos locais de trabalho, resíduos industriais, sinalização de segurança, segurança e saúde no trabalho portuário e no trabalho aquaviário, segurança e saúde no trabalho na agricultura, pecuária silvicultura, exploração florestal e aquicultura, segurança e saúde no trabalho em estabelecimentos de saúde, segurança e saúde no trabalho em espaços confinados, meio ambiente de trabalho na indústria da construção e reparação naval,- trabalho em altura , segurança e saúde no trabalho em empresas de abate e processamento de carnes e derivados, e por aí vai. O extenso rol temático já permite ao leitor intuir as consequências de uma revogação massiva desse plexo normativo...
Mas, afinal, o que há de concreto nessa traumática afirmação, à vista das movimentações que já se percebem nos respectivos setores? E, sendo certa a pretensão verbalizada, o que ela poderia significar para o dia-a-dia dos trabalhadores brasileiros?
Vamos a isto.
- O ímpeto liberal e o meio ambiente do trabalho
Como vimos, o Governo Federal não faz segredos quanto às suas pretensões em relação às normas regulamentadoras de segurança e saúde no trabalho. No dia seguinte à declaração de Jair Bolsonaro, em 14/5/2019, coube ao Ministério da Economia – que, vimos noutra coluna, herdou inexplicavelmente as funções de regrar segurança e saúde do trabalho no Brasil (e é “inexplicável”, insista-se, ante a contradição intrínseca entre os interesses ali convergidos) – corroborar a pretensão presidencial, informando que todas as normas regulamentadoras serão revistas, a começar pela Norma Regulamentadora n. 12 (uma das mais curiais, porque estabelece requisitos mínimos para a prevenção de acidentes e doenças do trabalho nas fases de projeto e de utilização de máquinas e equipamentos em geral, e que já havia sido objeto de ataques em outros contextos – veja-se, p.ex., o teor do PDC 1408/2013)
Salta aos olhos a absoluta falta de senso de oportunidade quanto ao festejado “anúncio”, a pouco mais dois meses de um dos maiores acidentes do trabalho da história do Brasil, se não o maior)
Ou seja: enquanto algumas viúvas e órfãos de Brumadinho seguem tentando encontrar e sepultar seus maridos e pais mortos pelo rompimento das barragens da mineradora Vale, o establishment apressa-se em divulgar que desprotegerá ainda mais os trabalhadores brasileiros.
Pois bem. A despeito das influências eleitorais e ideológicas que movem o Governo, busca-se, no presente texto, fazer uma reflexão sintética sobre algumas das balizas jurídicas que devem ser observadas no procedimento revisional de normas regulamentadores de segurança e saúde dos trabalhadores, assim como referir os dados e informações que devem, sob o aspecto fático, nortear esse mesmo processo revisional. Isto, é claro, se o Minstério da Economia decidir agir com técnica. Não com pulsões (ou sob pressões).
O Direito é dinâmico. Nem poderia ser diferente, se colima regular relações sociais que são dinâmicas por natureza. Nesse sentido, de um modo geral, a revisão e o aperfeiçoamento do arcabouço normativo é inerente ao processo de oxigenação do ordenamento jurídico. Nada contra as revisões responsáveis, portanto. Mas – insistamos – tem de haver critérios. Vejamos.
- Processo revisional de normas regulamentadoras: contexto fático relevante
Voltemos ao Direito. Dinâmico como é, tampouco pode ser bem compreendido – ou bem executado (nas lidas legislativas e hermenêuticas) – se não se compreende que a sua “matéria-prima” confunde-se com o seu criador e com a sua criatura: a pessoa humana é a fonte material de todo o Direito (em dimensão ôntica), assim como é o objeto e a própria razão de ser do Direito (em dimensão relacional), como também é, por fim, o destinatário último dos seus “produtos” (em dimensão ética). Despir-se desse conceito – muito mais que uma “convicção”, mesmo porque convicções têm servido para fins duvidosos – é alhear-se do que é o Direito e, por fim, dissociar-se dele. Como questiona TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JR. a certa altura de sua insuperável “Introdução ao Estudo do Direito”, as leis antissemitas de Nuremberg (1935) decerto foram... leis. Formalmente, sim, foram leis. Terão sido Direito?
Parece haver exagero, mas não há. Mesmíssima sensibilidade deve nos tocar quando estamos tratando de normas de saúde e segurança do trabalho. Isto porque, afinal, na outra “ponta” da norma, para além e depois de seu artífice “neutro”, estará a pessoa humana, na sua inteireza biológica, psíquica e emocional, absolutamente vulnerável aos riscos que o meio ambiente do trabalho vier a lhe criar.
Nessa precisa linha, com louváveis precisão e sensibilidade, manifestaram-se a respeito das “pretensões” do Governo, logo depois do surpreendente anúncio, a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) e a Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT). O texto merece reprodução:
“As entidades abaixo subscritas, representativas dos membros do Ministério Público do Trabalho e da Magistratura do Trabalho de todo o Brasil, tendo em vista as declarações proferidas em redes sociais, no último dia 13 de maio de 2019, pelo Exmo. Senhor Presidente da República Jair Bolsonaro, de que o governo promoverá redução de 90% nas Normas Regulamentadoras (NRs) de segurança e saúde no trabalho vigentes no país, vêm a público externar o seguinte:
“1. Decorridos menos de quatro meses do rompimento da barragem do Córrego do Feijão, em Brumadinho – MG, estimado o maior acidente de trabalho da história brasileira, dando causa à morte de mais de 300 (trezentos) trabalhadores, constitui retrocesso inadmissível qualquer esforço de revogação das normas de prevenção de acidentes e adoecimentos no trabalho, a bem da redução dos custos de produção.
“2. O Brasil figura no cenário internacional como o 4º país do mundo em números de acidentes de trabalho. Segundo dados do Observatório Digital de Saúde e Segurança do Trabalho do Ministério Público do Trabalho, entre 2012 e 2018 ocorreram no país cerca de 4.738.886 acidentes de trabalhos notificados – sendo 17.315 com óbito -, o que corresponde à média de um acidente de trabalho a cada 49 segundos. Isto significou, entre 2012 e 2018, 370.174.000 dias de afastamento previdenciário, impondo à Previdência Social custos na ordem de R$ 83 bilhões de reais em benefícios acidentários.
“3. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), os acidentes e doenças de trabalho resultam na perda anual de 4% do Produto Interno Bruto, percentual que, no Brasil, corresponde a R$ 264 bilhões, considerando o PIB de 2017. Logo, propor o enxugamento dos custos previdenciários – como o Governo tem proposto ao Congresso Nacional, a reboque da PEC n.6/2019 – e ao mesmo tempo sugerir relaxamento das normas de saúde e segurança do trabalho significa, ao cabo e fim, entoar um discurso essencialmente incoerente, potencialmente inconsequente e economicamente perigoso.
“4. As normas regulamentadoras do extinto Ministério do Trabalho cumprem, no campo laboral, a função constitucional de tutela da pessoa humana, no marco dos arts. 4º, II, e 5º, caput, CF, e também do meio ambiente equilibrado, na esteira dos arts. 225 e 200, VIII, CF, como já destacado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento (STF) da ADI 4066/DF. Daí porque a flexibilização da legislação ambiental trabalhista – necessariamente precaucional e preventiva , aliada à tarifação do dano moral introduzida nas relações de trabalho (art. 223-G da CLT), banaliza a vida humana e a instrumentaliza para a produção de baixíssimo custo, além de representar injustificável restrição na independência técnica de magistrados e membros do Ministério Público que, sob o pálio do Estado Democrático de Direito, devem ter mínimo respaldo para agir preventiva e repressivamente de acordo com a gravidade e a circunstância de cada caso concreto, a salvo de tarifações ou desregulamentações não dialogadas com a sociedade civil organizada.
“Brasília/DF, 14 de maio de 2019.
“Ângelo Fabiano Farias da Costa
“Presidente da ANPT
“Guilherme Guimarães Feliciano
“Presidente da Anamatra”
Vê-se, pois, diante dos dados notificados, que convivemos com a média de um acidente de trabalho a cada 49 segundos. Dentre estes, 17.315 (dezessete mil, trezentos e quinze) acidentes resultaram em óbito, configurando uma morte decorrente de acidente de trabalho a cada 3 horas, 43m e 42s. Vê-se, ainda, o quão falaciosos são os argumentos de redução dos custos de produção como justificativa para a redução do arcabouço normativo de proteção da saúde e da segurança do trabalhador: as externalidades econômicas negativas, em função de acidentes de trabalho e doenças ocupacionais que não foram oportunamente impedidos, giram na monta de R$ 83.126.000,00 com pagamento de benefícios acidentários. A Organização Internacional do Trabalho estima que acidentes e doenças de trabalho consomem cerca de 4% do Produto Interno Bruto de cada país anualmente, o que significa, no Brasil, algo em torno de 272.000.000.000 (duzentos e setenta e dois bilhões de reais), considerando o PIB de 2018 (cerca de 6,8 trilhões). Se a empresa não paga, o Estado paga. Isso sinaliza para um ciclo econômico virtuoso?
As NRs, a propósito, têm tudo a ver com isto. Entre 2012 a 2018, cerca de 15% dos acidentes de trabalho no Brasil decorreram do manuseio inadequado de máquinas e equipamentos (logo, com provável inobservância das normas de prevenção da NR 12). Acidentes dessa natureza conduzem a amputações 15 vezes mais frequentes e têm o triplo de letalidade que a média geral. E começaríamos por flexibilizar exatamente a NR 15?
Os dados, por si só, são de eloquência ensurdecedora. Qualquer movimento reducionista envolvendo a temática da prevenção de acidentes do trabalho tende a produzir resultados humanitários e econômicos catastróficos para o Brasil e para os brasileiros. Pagaremos para ver?
- As “regras de ouro” para a elaboração e revisão de normas de segurança e saúde do trabalhador: tripartismo e não-retrocesso
As normas ambientais laborais são, por excelência, normas-garantia de direitos humanos, o que se descobre com a singela leitura do artigo 3º da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948: “todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”. Ainda mais enfático, o artigo 23º, I da DUDH enuncia que “toda a pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do trabalho, a condições equitativas e satisfatórias de trabalho”.
Em outro flanco, a Convenção 155 da Organização Internacional do Trabalho – que é fonte formal universal de direitos humanos, trata da saúde e da segurança dos trabalhadores e foi ratificada pelo Brasil em 29/09/1994 – estabelece, em seu artigo 4º, I, que “todo Membro deverá, em consulta às organizações mais representativas de empregadores e de trabalhadores, e levando em conta as condições e a prática nacionais, formular, pôr em prática e reexaminar periodicamente uma política nacional coerente em matéria de segurança e saúde dos trabalhadores e o meio ambiente de trabalho” (g.n.).
Por esse texto normativo, identificamos já o primeiro e mais importante requisito de validade das normas que tratam de segurança de saúde dos trabalhadores: a produção e revisão tripartite. Noutras palavras, o Estado-Membro deve formular e reexaminar periodicamente as normas protetivas ambientais laborais, mas sempre mediante consulta aos sindicatos profissionais e patronais pertinentes. Isto nada mais é que a concreção, em seara trabalhista, do princípio jurídico-ambiental da participação democrática, pelo qual, nos termos da Declaração do Rio de Janeiro de 1992 (princípio n. 10),
“[a] melhor maneira de tratar questões ambientais e assegurar a participação, no nível apropriado, de todos os cidadãos interessados. No nível nacional, cada indivíduo deve ter acesso adequado a informações relativas ao meio ambiente de que disponham as autoridades públicas, inclusive informações sobre materiais e atividades perigosas em suas comunidades, bem como a oportunidade de participar de processos de tomada de decisões. Os Estados devem facilitar e estimular a conscientização e a participação pública, colocando a informação à disposição de todos.”
E, para mais,
“Deve ser propiciado acesso efetivo a procedimentos judiciais e administrativos, inclusive no que diz respeito à compensação e reparação de danos.”
Pois bem. Exatamente por isto, ainda no ano de 1996, o extinto Ministério do Trabalho, por sua Secretaria de Saúde e Segurança no Trabalho, editou a Portaria n. 393, de 09.04.1996, emblematicamente alcunhada, à altura, como “NR-0”: exatamente porque – a despeito de cronologicamente já existirem dezenas de NRs naquele momento – se firmava, com a Portaria n. 393/1996, a compreensão de que, lógica e juridicamente, não poderia haver novas NRs, ou se revisar as antigas, sem os respectivos procedimentos de participação e consulta. Estatuía-se, a partir de então, uma nova sistemática para a edição e a revisão das NRs, que necessariamente passariam por uma comissão tripartite (Governo, trabalhadores, empregadores), anunciando um “rompimento com o modelo autoritário”, na expressão bazofiada há vinte e três anos.
Mais recentemente, em 2002, ainda em cumprimento ao princípio de produção e revisão tripartite de normas de segurança e saúde do trabalhador, o extinto Ministério do Trabalho instituiu, por meio da Portaria n. 11, de 17/5/2002 (depois reformulada pelo Portaria MTE n. 59/2008), a Comissão Tripartite Paritária Permanente (CTPP).
É certo que Portaria MTE n. 11/2002 tem estatura de norma administrativa regulamentar, sem a legitimidade própria dos diplomas votados pelo Parlamento. É certo, ainda, que o nosso modelo de participação labor-ambiental ainda não é o ideal. Falhamos, p. ex., em integrar a esses relevantíssimos diálogos tripartites, com representatividade bastante, categorias historicamente não-organizadas que, todavia, interagem diuturnamente em contextos de agudos riscos labor-ambientais (assim, p. ex., setores informais como o dos catadores/recicladores, coletivos de subcontratados, representações de pequenas empresas etc.).
Nada obstante, essa singela portaria não pode ser repelida, nem abolida à canetada - com o consequente menoscabo ao princípio jurídico-ambiental que a fundamenta -, sem ensejar grave quadro de inconvencionalidade, por distanciamento dos padrões estabelecidos pelo artigo 4º, I da Convenção n. 155 da OIT.
Na mesma alheta, mas agora no plano constitucional, o direito fundamental à saúde vem estampado no artigo 196 da Constituição Federal, no sentido de que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. E, especificamente quanto à garantia de um meio ambiente ecologicamente equilibrado, o artigo 225, § 1º, V, da Constituição incumbe aos Poderes Públicos o dever de “controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente”.
É de toda evidência que os trabalhadores, brasileiros ou estrangeiros residentes no Brasil como são, gozam do direito individual e social à saúde e à segurança (art. 5º, caput, c.c. arts. 6º, caput, e art. 196 da CF), assim como detêm o direito de viver e se ativar em meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado (art. 225, § 1º, V, da CF). Mais relevante, porém, nesse encalço, é o direito inserto no inciso XXII do artigo 7º da Constituição, pelo quanto dialoga com os preceitos constitucionais já referidos, mas com um destinatário especial: o trabalhador. “In verbis”:
“Art. 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: [...] XXII - redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança; [...]”.
Trata-se da norma–princípio identificada por SEBASTIÃO GERALDO DE OLIVEIRA como princípio do risco mínimo regressivo; e que, bem sabemos, nada mais é que a manifestação, no campo do Direito Ambiental do Trabalho, do princípio da melhoria contínua, enunciado por diversos jusambientalistas e assim positivado, inclusive, no item 6.1 do Anexo 13-A da NR-15 (para os contextos de exposição ocupacional ao benzeno).
Resulta desse princípio constitucional que o direito primacial dos trabalhadores urbanos e rurais não é o de serem “pagos” pelos riscos a que se sujeitam; antes, é o direito à redução dos riscos inerentes ao trabalho. E, como se trata de norma-princípio, esse vetor tanto deve informar a atividade estatal judicante como, antes dela, a própria atividade estatal legiferante e regulamentadora. Daí que, por lógica e essência, será tendencialmente inconstitucional qualquer revisão das normas de saúde, higiene e segurança do trabalho que, em violação literal ao inciso XXII do art. 7º da Constituição, promova a elevação dos riscos laborais.
Veja-se, por outro lado, que a parte final do caput do art. 7º da Constituição positiva, no Brasil, o princípio da norma mais favorável. Com efeito, ali está dito prevalecerem, sempre, as fontes formais do Direito do Trabalho que mais elevarem a condição social dos trabalhadores. A rigor, pode-se mesmo ir além: o Tribunal Superior do Trabalho, forte nessa compreensão, tem derivado deste preceito até mesmo o princípio da vedação ao retrocesso social. Leia-se:
“AGRAVO DE INSTRUMENTO. PRESCRIÇÃO. PRONÚNCIA DE OFÍCIO. Ante a aparente violação do art. 769 da CLT, nos termos exigidos no art. 896 da CLT, dá-se provimento ao agravo de instrumento para determinar o processamento do recurso de revista. RECURSO DE REVISTA. PRESCRIÇÃO. PRONÚNCIA DE OFÍCIO. INCOMPATIBILIDADE COM OS PRINCÍPIOS APLICÁVEIS NA JUSTIÇA DO TRABALHO. A Corte Regional confirmou decisão que, de ofício, declarou prescrita a pretensão do autor, com supedâneo no art. 219, § 5º, do CPC. Todavia, tal dispositivo não se compatibiliza com os princípios que regem o Direito do Trabalho, notadamente o da proteção (art. 8º da CLT), que busca reequilibrar a disparidade de forças entre empregado e empregador. Essa nova regra pode ser bem recebida em outras searas, mas não se pode olvidar que o art. 7º da Constituição revela-se como uma centelha de proteção ao trabalhador a deflagrar um programa ascendente, sempre ascendente, de afirmação dos direitos fundamentais. Quando o caput do mencionado preceito constitucional enuncia que irá detalhar o conteúdo indisponível de uma relação de emprego e de pronto põe a salvo "outros direitos que visem à melhoria de sua condição social", atende a um postulado imanente aos direitos fundamentais: a proibição de retrocesso. Precedentes da SBDI-1 e de todas as Turmas desta Corte. Recurso de revista conhecido e provido.”
(TST, RR 174-81.2011.5.01.0030, 6ª T., rel. Min. AUGUSTO CÉSAR LEITE DE CARVALHO, j. 25/3/2015, DEJT 04/05/2015 – g.n.).
Com efeito, a contínua evolução do Direito Internacional dos Direitos Humanos levou à maturidade do pensamento jurídico em matéria de direitos e garantias fundamentais, com o reconhecimento de que, mesmo quando se tratar de normas que resguardem direitos sociais (“lato” e “stricto sensu”), é defeso ao legislador atuar para simplesmente revogá-las ou anulá-las, ante os limites que o princípio da vedação ao retrocesso social impõe ao poder de conformação legislativa do Parlamento (ou, ectopicamente, do Poder Executivo).
Tal evolução conta com vasto respaldo em normas internacionais, valendo citar, dentre todas, a do art. 26 do Pacto de San José da Costa Rica, que é direito vigente no ordenamento jurídico brasileiro:
“Artigo 26 - Desenvolvimento progressivo
Os Estados-partes comprometem-se a adotar as providências, tanto no âmbito interno, como mediante cooperação internacional, especialmente econômica e técnica, a fim de conseguir PROGRESSIVAMENTE a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires, na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios apropriados” (g.n.).
No mesmo sentido, cite-se o art. 2º, 1, do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais:
“Cada Estado Parte do presente Pacto compromete-se a adotar medidas, tanto por esforço próprio como pela assistência e cooperação internacionais, principalmente nos planos econômico e técnico, até o máximo de seus recursos disponíveis, que visem a assegurar, PROGRESSIVAMENTE, por todos os meios apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em particular, a adoção de medidas legislativas” (destaques acrescidos).” (g.n.)
É o que se identifica, ademais, na melhor doutrina, com J. J. GOMES CANOTILHO, para quem
“o princípio da proibição do retrocesso social pode formular-se assim: o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efetivado através de medidas legislativas deve considerar-se constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas que, sem a criação de esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam na prática em uma anulação, revogação ou aniquilação pura e simples desse núcleo essencial. A liberdade do legislador tem como limite o núcleo essencial já realizado”[i].
O princípio da vedação ao retrocesso social deriva, logica e axiologicamente, do princípio (e do conceito mesmo) do Estado Democrático e Social de Direito, do princípio da dignidade humana, do princípio da máxima eficácia e efetividade das normas definidoras dos direitos fundamentais, do princípio da confiança e da própria noção do mínimo essência. Nessa linha, veja-se também, com Luís Roberto BARROSO, nos antigos escritos:
“por este princípio, que não é expresso, mas decorre do sistema jurídico-constitucional, entende-se que se uma lei, ao regulamentar um mandamento constitucional, instituir determinado direito, ele se incorpora ao patrimônio jurídico da cidadania e não pode ser arbitrariamente suprimido. Nessa ordem de ideias, uma lei posterior não pode extinguir um direito ou garantia, especialmente os de cunho social, sob pena de promover um retrocesso, abolindo um direito fundado na Constituição. O que se veda é o ataque à efetividade da norma, que foi alcançado a partir de sua regulamentação. Assim, por exemplo, se o legislador infraconstitucional deu concretude a uma norma programática ou tornou viável o exercício de um direito que dependia de sua intermediação, não poderá simplesmente revogar o ato legislativo, fazendo a situação voltar ao estado de omissão legislativa anterior”[ii] (g.n.).
Oxalá siga pensando assim, “si et quando” a questão chegar à apreciação do Excelso Pretório – que, aliás, também já se posicionou sobre a presença e a aplicabilidade do princípio da vedação ao retrocesso social no ordenamento jurídico brasileiro, em diversos arestos. “In verbis”:
“CRIANÇA DE ATÉ CINCO ANOS DE IDADE - ATENDIMENTO EM CRECHE E EM PRÉ-ESCOLA - SENTENÇA QUE OBRIGA O MUNICÍPIO DE SÃO PAULO A MATRICULAR CRIANÇAS EM UNIDADES DE ENSINO INFANTIL PRÓXIMAS DE SUA RESIDÊNCIA OU DO ENDEREÇO DE TRABALHO DE SEUS RESPONSÁVEIS LEGAIS, SOB PENA DE MULTA DIÁRIA POR CRIANÇA NÃO ATENDIDA - LEGITIMIDADE JURÍDICA DA UTILIZAÇÃO DAS “ASTREINTES” CONTRA O PODER PÚBLICO - DOUTRINA - JURISPRUDÊNCIA - OBRIGAÇÃO ESTATAL DE RESPEITAR OS DIREITOS DAS CRIANÇAS - EDUCAÇÃO INFANTIL - DIREITO ASSEGURADO PELO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 208, IV, NA REDAÇÃO DADA PELA EC Nº 53/2006) - COMPREENSÃO GLOBAL DO DIREITO CONSTITUCIONAL À EDUCAÇÃO - DEVER JURÍDICO CUJA EXECUÇÃO SE IMPÕE AO PODER PÚBLICO, NOTADAMENTE AO MUNICÍPIO (CF, ART. 211, § 2º) - LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DA INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM CASO DE OMISSÃO ESTATAL NA IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS PREVISTAS NA CONSTITUIÇÃO - INOCORRÊNCIA DE TRANSGRESSÃO AO POSTULADO DA SEPARAÇÃO DE PODERES - PROTEÇÃO JUDICIAL DE DIREITOS SOCIAIS, ESCASSEZ DE RECURSOS E A QUESTÃO DAS “ESCOLHAS TRÁGICAS” - RESERVA DO POSSÍVEL, MÍNIMO EXISTENCIAL, DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E VEDAÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL - PRETENDIDA EXONERAÇÃO DO ENCARGO CONSTITUCIONAL POR EFEITO DE SUPERVENIÊNCIA DE NOVA REALIDADE FÁTICA - QUESTÃO QUE SEQUER FOI SUSCITADA NAS RAZÕES DE RECURSO EXTRAORDINÁRIO -PRINCÍPIO “JURA NOVIT CURIA” - INVOCAÇÃO EM SEDE DE APELO EXTREMO - IMPOSSIBILIDADE - RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. POLÍTICAS PÚBLICAS, OMISSÃO ESTATAL INJUSTIFICÁVEL E INTERVENÇÃO CONCRETIZADORA DO PODER JUDICIÁRIO EM TEMA DE EDUCAÇÃO INFANTIL: POSSIBILIDADE CONSTITUCIONAL. (...) DESCUMPRIMENTO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DEFINIDAS EM SEDE CONSTITUCIONAL: HIPÓTESE LEGITIMADORA DE INTERVENÇÃO JURISDICIONAL. – (...). A CONTROVÉRSIA PERTINENTE À “RESERVA DO POSSÍVEL” E A INTANGIBILIDADE DO MÍNIMO EXISTENCIAL: A QUESTÃO DAS “ESCOLHAS TRÁGICAS”. – (...) A PROIBIÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL COMO OBSTÁCULO CONSTITUCIONAL À FRUSTRAÇÃO E AO INADIMPLEMENTO, PELO PODER PÚBLICO, DE DIREITOS PRESTACIONAIS. - O princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive. - A cláusula que veda o retrocesso em matéria de direitos a prestações positivas do Estado (como o direito à educação, o direito à saúde ou o direito à segurança pública, v.g.) traduz, no processo de efetivação desses direitos fundamentais individuais ou coletivos, obstáculo a que os níveis de concretização de tais prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado. Doutrina. Em conseqüência desse princípio, o Estado, após haver reconhecido os direitos prestacionais, assume o dever não só de torná-los efetivos, mas, também, se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitucional, a preservá-los, abstendo-se de frustrar - mediante supressão total ou parcial - os direitos sociais já concretizados. LEGITIMIDADE JURÍDICA DA IMPOSIÇÃO, AO PODER PÚBLICO, DAS “ASTREINTES”. – (...)” (ARE 639337 AgR, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 23/08/2011, DJe-177 DIVULG 14-09-2011 PUBLIC 15-09-2011 EMENT VOL-02587-01 PP-00125 0 - g.n.)
Evidentemente que os precedentes do STF geralmente se referem a direitos sociais “lato sensu” (i.e., aqueles do art. 6º da Constituição, como no caso acima). Mesma “ratio”, porém, há de se aplicar à regulação da saúde e segurança do trabalho, até mesmo porque, em seara jurídico-ambiental, fala-se já da vedação do retrocesso ambiental...
Daí porque, em síntese, pode-se afirmar categoricamente que qualquer revisão “in pejus” das normas de segurança e saúde dos trabalhadores - ou mesmo a sua redução irresponsável - consubstanciará violação ao princípio do risco mínimo regressivo (art. 7º, XXII, CRFB), ao princípio da participação democrática e ao princípio da vedação ao retrocesso social (e ambiental), arriscando-se, em sede de controles difuso e concentrado, a discussões de (in)constitucionalidade e de (in)convencionalidade.
- Considerações finais
Pelo que se sabe, o labor revisional das normas regulamentadoras encontra-se em curso e “a pleno vapor”, o que levanta apreensões quantom a eventual açodamento no debate e na sua consumação. Nada obstante, até o presente momento, tem-se observado – ao menos formalmente – para o procedimento de produção/revisão tripartite.
A formalidade, porém, não basta. O cuidado de revisar as NRs somente mediante consulta aos sindicatos laborais e patronais, por si só, não possui o condão de garantir que não haja graves retrocessos (e, portanto, que não se agridam os limites dados pelo art. 7º, XII, da Constituição, ou as contenções próprias do princípio da vedação ao retrocesso social).
Nesse passo, é imperioso que o Estado brasileiro, assim como as agremiações sindicais laborais e patronais e toda a sociedade civil estejam cientes da responsabilidade que pesa sobre seus ombros, quando se cuida de disciplinar a higiene, a saúde e a segurança do trabalho. Não estão em causa meras estatísticas. Estão em causa vidas humanas. Nenhuma competitividade se justifica às custas da integridade psicossomática alheia.
Ao revés, interessa aproveitar a sinergia criada em torno da revisão em curso e avançar, por exemplo, para a elaboração de normas regulamentadores em setores ainda não regulamentados nessa área, como o de transporte de cargas - cujas peculiaridades há muito reclamam um tratamento específico para garantir a segurança, a higiene e o conforto aos milhões de motoristas profissionais brasileiros -, o da biotecnologia e o da nanotecnologia. Interessa também reestruturar e fortalecer o papel da Fundação Jorge Duprat e Figueiredo – FUNDACENTRO, instituição fundamental para garantir que as métricas utilizadas nas Normas Regulamentadoras sejam dotadas de cientificidade.
Daí entendermos possível e amplamente desejável que a proteção laboral seja aperfeiçoada nesse processo revisional (ainda que todos os indícios políticos ao derredor da iniciativa apontem em diversa direção). Caso não seja esse o resultado final, restarão os mecanismos e meios jurídicos para frear e neutralizar os prejuízos potenciais provocados por ímpetos liberais que desbordem da ética social e do bom Direito. Esse seria um cenário que, se concretizado, aprofundaria sensivelmente o vexame nacional nas estatísticas mundiais sobre acidentes do trabalho e doenças ocupacionais. O que, por si mesmo, é risível: como dito há pouco, vexames nacionais não são nada quando comparados com as tragédias humanas por detrás dos números da sinistralidade nacional. Aí, sim, entreabrem-se os cadafalsos dos fundos dos nossos poços.
De outra sorte, se falas como a que motivou a coluna deste mês não são fortemente desencorajadas, acabam abandonando o reino da retórica e invadindo os estratos da realidade. Essa é uma boa discussão: tivemos, da parte da sociedade civil organizada, repulsa suficiente?
O grande poeta Vitor Hugo escreveu certa vez:
“Quant à flatter la foule, ô mon esprit, non pas! Ah! le peuple est en haut, mais la foule est en bas.”
...ou, em bom (e livre) vernáculo: “Quanto a lisonjear a multidão, espírito meu, não posso! O povo está no alto, mas a multidão está no fosso”...
Esse é um bom caminho, afinal, para escapar das fossas. Ser mais povo e menos multidão.
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Gostou da coluna desta semana, amigo leitor?
A propósito, preciso aqui registrar agradecimento textual e público aos procuradores do Trabalho HELDER AMORIM e MARCELO SOUTO MAIOR, que minutaram a primeira versão da nota pública da ANAMATRA/ANPT e cujos dados estão ali muito bem aproveitados (veja, acima, o item n. 2).
E vamos em frente! Fale comigo no e-mail abaixo. Você é o réu do seu juízo.
GUILHERME GUIMARÃES FELICIANO, juiz titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté, é professor associado II do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Doutor em Direito Penal pela USP e em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Livre-docente em Direito do Trabalho pela USP. Foi presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA) na gestão 2017-2019. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo. .
*Juiz Titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté. Professor Associado II do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Doutor em Direito Penal pela Universidade de São Paulo e em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Ex-Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – ANAMATRA.
**Procurador do Trabalho da 24ª Região. Ex-Juiz do Trabalho da 15ª Região. Ex-Auditor Fiscal do Trabalho. Ex-Presidente do Instituto de Pesquisas e Estudos Aplicados da Magistratura e do Ministério Público do Trabalho – IPEATRA.