Durante o curtíssimo tempo de tramitação do Projeto de Lei da “reforma” trabalhista, algumas pessoas tentaram explicar que aquela iniciativa legislativa não era de fato uma reforma no seu sentido próprio de melhoria do objeto reformado.
Uma reforma pressupõe identificação de problemas, avaliação das causas e formulação de proposições com projeções de resultados que sejam eficientes para a solução desses problemas, partindo de estudos, pesquisas e análises; e a “reforma” trabalhista não atendia nenhum desses pressupostos, não passando, pois, de mera explicitação de poder de um setor muito específico da sociedade, um poder que, inclusive, se lhe apresentou de forma quase ilimitada no contexto da lógica antidemocrática instaurada.
Buscaram demonstrar que o que se pretendia fazer na “reforma” era unicamente integrar à legislação fórmulas de interesse exclusivo do grande capital para aumentar a exploração do trabalho e possibilitar a ampliação das margens de lucro; que a “reforma”, enfim, se destinava a impor retrocessos jurídicos e sociais, ou seja, a retirar direitos dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros, criando, ao mesmo tempo, fórmulas com o fim de fragilizar a atuação coletiva da classe trabalhadora, além de mecanismos processuais para obstar o acesso à Justiça do Trabalho.
Essas pessoas, no entanto, foram tachadas de antiquadas ou de estarem defendendo interesses particulares, como, por exemplo, no caso das Centrais Sindicais, que estariam preocupadas apenas com a preservação do imposto sindical.
Os defensores da “reforma”, para atrair a aprovação dos próprios trabalhadores, difundiram a ideia de que estavam eliminando o desconto abusivo desse imposto nos salários, que serviria unicamente à manutenção dos privilégios das cúpulas sindicais.
Além disso, disseminaram a compreensão de que a “reforma” trazia modernas modalidades de contratação para a ampliação dos empregos, sendo que tudo isso se faria sem a retirada de direitos. Bem ao contrário, a “reforma” viria para melhorar a condição social e econômica dos trabalhadores, preservando todas as garantias constitucionais.
Esse discurso em prol da “reforma”, que ganhou difusão na grande mídia, prevaleceu e o movimento de resistência – que não foi tão pequeno como às vezes se relata – acabou não sendo suficiente para impedir a aprovação da Lei nº 13.467/17, mas vale registrar que muitos daqueles que foram a favor da aprovação dessa lei, reproduzindo o discurso de que todos os direitos dos trabalhadores seriam assegurados, não chegaram a ler o até então Projeto de Lei da “reforma”.
Pois bem, publicada a lei, adveio o momento inevitável da sua leitura e, obviamente, da extração do sentido de seus mais de 200 dispositivos.
Cumprindo o seu papel institucional, os profissionais do Direito – professores, doutrinadores, advogados, juízes e procuradores – começaram, por intermédio da publicação de textos, proferimento de palestras, participação em congressos e debates, a expor suas impressões sobre o conteúdo da Lei nº 13.467/17 e o que se tem visto é uma enorme multiplicidade de posicionamentos.
Na 2ª Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho, organizada pela Anamatra, realizada nos dias 9 e 10 de outubro em Brasília, o que se fez não foi nada além disso. O que se viu durante a Jornada foi um intenso e concentrado debate sobre os dispositivos da Lei nº 13.467/17, e a aprovação de Enunciados que, no geral, integrando a nova lei ao conjunto normativo, fixaram compreensões em conformidade exatamente com os objetivos atribuídos (pelos seus defensores) à nova lei: melhorar as condições sociais dos trabalhadores; não retirar direitos; ampliar empregos; favorecer as negociações coletivas e preservar as garantias constitucionais.
No entanto, os integrantes da 2ª Jornada, sobretudo juízes e procuradores, foram acusados de estarem se recusando a aplicar a “reforma” ou, até, de estarem cometendo ato atentatório ao Estado Democrático de Direito. Algumas entidades chegaram a explicitar que fariam reclamações ao CNJ sobre juízes que não quisessem aplicar a lei, afirmando-se que “nenhum setor pode atuar à margem da lei”[i].
Alguns foram além, muito além, aliás, e iniciaram uma campanha para acabar com a Justiça do Trabalho, e isto porque, aos seus olhares, os juízes do trabalho estariam “boicotando” a “reforma”.
Esses ataques à magistratura e as ameaças à Justiça do Trabalho não são nada além do que a reprodução da mesma estratégia já utilizada para impulsionar o advento e a aprovação da lei da “reforma” trabalhista, estratégia esta representada pela chantagem de ameaçar com a exposição de possíveis casos de corrupção, aludidos na Lava Jato, envolvendo integrantes do governo e da classe política[ii]; o que, por certo, não isenta de culpa os atuais governantes, vez que somente galgaram o poder em razão da promessa feita quanto à realização das “reformas” trabalhista e previdenciária.
O histórico da aprovação da lei da “reforma” trabalhista não deixa dúvida das ameaças realizadas e do modus operandi para a sua aprovação, que, inclusive, se assemelha ao fisiologismo escancarado que tem marcado as votações no Congresso acerca das denúncias envolvendo o Presidente da República, o que só reforça o argumento em torno da ilegitimidade do processo legislativo referente à lei em questão.
Aliás, se havia alguma dúvida quanto a quais objetivos serve o atual governo, essa dúvida restou completamente dissipada com a edição da Portaria 1.129, de 20 de outubro de 2017, que, da noite para o dia, em uma canetada, pretendeu eliminar o conceito de trabalho em condições análogas às de escravo e inviabilizar a fiscalização estatal a respeito[iii].
Fato é que as ameaças feitas a juízes do trabalho e a procuradores do trabalho, às quais, inadvertidamente, muitas pessoas chegam a aderir ou a assimilar, são meramente o passo seguinte do mesmo expediente.
Mas, por serem tão despudoradamente explícitas, possuem, ao menos, o benefício de revelarem todo o processo e, sobretudo, qual era o real propósito da “reforma”, qual seja: retirar direitos e aniquilar as garantias constitucionais trabalhistas.
Ora, o que se fez nos Enunciados da 2ª Jornada (que sequer foram lidos por muitos de seus críticos) não foi um ato contra legem; o que se fez foi interpretar os termos da Lei nº 13.467/17 em conformidade com as demais leis do país, os princípios e regras constitucionais e daquelas constantes de Declarações e Tratados internacionais, atendendo, inclusive, os fundamentos da Lei nº 13.467/17 de, repita-se, não retirar direitos, ampliar empregos e preservar as garantias constitucionais.
Se a lei era destinada a esses objetivos e se é precisamente isso o que estão fazendo, na quase totalidade, os entendimentos jurídicos sobre a lei, refletidos na 2ª Jornada da Anamatra, todo esse alarde midiático contra os juízes e a Justiça do Trabalho, não teria a menor razão de ser.
Então, ao se oporem de forma tão veemente contra a atuação dos juízes, que, cumprindo o seu dever funcional, se comprometem com a aplicação do Direito, aqueles que assim se manifestam só conseguem deixar claro que:
1) a lei da “reforma” trabalhista foi uma lei feita por encomenda de um setor especifico da sociedade, que considera, por consequência, que a lei da “reforma” lhe pertence e deseja que tal lei seja posta acima de todas as demais, incluindo a própria Constituição Federal e os Tratados Internacionais;
2) o setor que conseguiu, de forma antidemocrática aprovar uma lei para chamar de sua, considera, por esse mesmo motivo, ser dono absoluto do poder, tanto que se sente completamente à vontade para exigir publicamente o descumprimento da Constituição, quanto ao exercício do poder jurisdicional (o poder de dizer o Direito), que foi constitucionalmente conferido aos magistrados;
3) se almeja com essa lei destruir direitos trabalhistas, aniquilar as possibilidades de organização, de resistência e de reivindicação da classe trabalhadora e dificultar ao máximo o acesso à Justiça do Trabalho.
O problema é que, embora considerem-se os donos do poder, não o são, ao menos enquanto o Estado de Direito prevalecer. Neste contexto, por maior influência midiática que tenham e não lhes negando o direito de expressão, os pretensos “donos do poder” acabam apenas se equiparando à figura grotesca do “dono da bola”, que tenta impor a todos as regras do jogo, alterando-as em seu benefício a cada instante, e que se, apesar de tudo disso, continua perdendo, pega a bola e vai embora, acabando com o jogo.
Só que quando o que está em jogo é a eficácia das instituições que foram criadas exatamente para impor limites ao livre exercício do poder econômico, como forma de preservar a vida humana, as idiossincrasias, os caprichos e os interesses egoístas dos “donos da bola” sucumbem às regras democraticamente concebidas, que devem ser obrigatoriamente respeitadas.
Que fique bem claro, a Lei nº 13.467/17 não tem dono. Não é uma lei superior às demais. Não faz letra morta da Constituição Federal e dos Tratados Internacionais relativos aos Direitos Humanos e aos Direitos Sociais. Não supera os princípios, conceitos e institutos jurídicos do Direito do Trabalho. Não tem o poder de transformar os juízes em autômatos, desprovidos de consciência e sentimentos, ou de impedir que os juízes cumpram a sua função.
Nenhum efeito jurídico se pode atribuir, portanto, à vontade do poder econômico de fazer valer o seu interesse de reduzir direitos por meio de uma lei, a qual, ademais, mesmo quando interpretada em sua literalidade mais restrita não condiz com esse objetivo.
Deve-se rechaçar com vigor as pressões feitas sobre os juízes, pois como diria o jurista uruguaio Eduardo Couture, no dia em que juízes tiverem medo nenhum cidadão pode dormir tranquilo, cumprindo consignar que muito pior seria a situação de os próprios juízes admitirem como legítima a chantagem de sofrerem consequências pessoais ou institucionais em razão do conteúdo de suas decisões. Parafraseando o professor Octavio Bueno Magano, que dizia que um jurista que é só jurista não é mais que “uma triste coisa”, nenhum juiz poderia conceber a possibilidade de ver abalada sua independência, admitindo como legítimas as ameaças dos poderes político e econômico de extinção do órgão jurisdicional em razão de seus posicionamentos, porque com isso abandonaria a sua condição de juiz e não seria nada mais do que “uma triste coisa”.
Enfim, os juízes, por dever funcional, continuarão aplicando o Direito e fundamentando juridicamente as suas decisões e os “donos da bola” que arrumem outro jogo para brincar, até porque, em respeito à sua própria fala, não poderão mais atuar à margem da lei, o que implica que deverão, enfim, respeitar a totalidade dos direitos trabalhistas e se submeter ao poder jurisdicional e à independência dos juízes, conforme constitucionalmente estabelecido.
São Paulo, 22 de outubro de 2017.
[i]. Clésio Andrade, Presidente da CNT – Confederação Nacional do Transporte.
[ii]. Vide, a propósito, o relato histórico dos fatos realizado em: SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. A quem interessa essa “reforma” trabalhista? In: http://www.jorgesoutomaior.com/blog/a-quem-interessa-essa-reforma-trabalhista.
[iii]. Vide em: https://g1.globo.com/economia/noticia/portaria-exclui-da-definicao-de-trabalho-escravo-quase-90-dos-processos-aponta-ministerio-publico.ghtml.
*Jorge Luiz Souto Maior é um jurista e professor livre docente de direito do trabalho brasileiro na USP, Brasil desde 2001. É juiz titular na 3ª Vara do Trabalho de Jundiaí desde 1998.