Há tecnologias que, tão rápido como se instalam, desaparecem. Assim foi com o Orkut, o aparelho de fax e até o telex. Nunca tive, nem aprendi a usar nenhum deles e fico extremamente feliz que tenham trilhado o sereno caminho dos dinossauros. Com o Twitter nutro incompatibilidade semelhante: não possuo, não sei usar e se for extinto não me fará qualquer falta. Mas sei que o Twitter tem uma tal de nuvem indicativa das expressões mais comentadas. “Reforma trabalhista” vem sendo uma dessas.
Até dá a impressão de ser algo novo, mas é como o feijão de sexta-feira, vem requentado de longe. Nossa CLT foi publicada em 1º de maio de 1943 e não é exagero dizer que, no dia seguinte, já devem ter se iniciado maquinações reformistas. Faz parte do jogo, quase sempre “pegado”, entre capital e trabalho.
“Reforma” costuma dar impressão de ser algo bom, mas precisamos ser sinceros em nossas definições. Pelo menos desde os anos 1990, “reforma trabalhista” é expressão de falsa neutralidade para qualquer projeto político que envolva retirada de direitos trabalhistas. Simples, mas é isso. Especialmente envolvem diminuição de salários, ampliação de jornadas e toda sorte de restrição de benefícios e condições de serviço saudáveis. Nos últimos anos, teve os upgrades da ampliação de terceirização de serviços e facilitação da substituição do trabalho-emprego por contratos de atividade (prestadores de serviços, cooperativados, estagiários etc.).
Está na hora de amplamente reformar o mundo nacional do trabalho?
Ronald Dworkin, um dos mais festejados filósofos do Direito do final do século XX e início do presente, dizia que a história das nações passa por seus “momentos constitucionais”. São formados não apenas pelas facilmente identificáveis promulgações das Cartas Políticas, mas também pelas (raras) ocasiões em que a comunidade é chamada para debater e redefinir suas mais importantes opções de convivência. Reformas trabalhistas, com grandes alterações no modo de organização do mercado laboral, já foram experimentadas globo afora. Nasceram a partir de grandes pactos nacionais, especialmente com governos de coalizão, com consenso, harmonia e acomodação de forças. A partir dessa excepcional legitimidade, e com ampla participação dos diversos setores envolvidos, puderam ser redefinidas organizações básicas da economia, da legislação social e da convivência entre capital e trabalho.
Não é preciso ter doutorado em Ciência Política para saber que estamos anos-luz de um governo de consenso nacional. Sem qualquer juízo valorativo, é fácil captar a fragilidade de um governo federal que bamboleia em pulverizada sustentação parlamentar, executa projeto controvertido e não debatido. Além disso, a reforma trabalhista foi gestada e apresentada sem nem mesmo consulta a organizações históricas de trabalhadores, à academia ou à magistratura e Ministério Público do Trabalho. E não se diga que o pitoresco e pronto apoio do presidente do Tribunal Superior do Trabalho seja indicativo de alguma virtude. Tão rápido como o ministro empenhou admiração ao projeto, seus colegas e organizações associativas de juízes, procuradores e fiscais do trabalho se prontificaram a esclarecer “ele não fala por nós”.
Fica complicado — para falar o mínimo — afirmar que esse atual cenário fragilizado possa ser adequado fazer algo tão dramático e duradouro na vida de um país.
Além de oportunidade/legitimidade, a reforma trabalhista deve ser julgada a partir da análise de momento. Que atire a primeira chave de roda quem nunca deixou de jantar fora para pagar o carnê do carro. Todos já vivemos algo assim em nossas vidas: para fazer frente a importantes demandas de orçamento doméstico, optamos por cortar despesas que julgamos menos urgentes.
Na vida nacional também há momentos em que todos (ou número considerável de pessoas) são chamados a enfrentar maior esforço, sempre ao benefício da coletividade. Por maior que seja a necessidade, é claro que ninguém gosta muito de cortar na própria carne, mas aceitamos — mais ou menos contrariados — porque conhecemos e esperamos o bem maior.
Pois se em época de “vacas gordas” já é difícil operar sacrifícios, imagine durante crise econômica grave, como a que enfrentamos? Informes recentes dão conta que a economia nacional encolheu pelo segundo ano consecutivo, caindo 3,6% em 2016 e gerando retração de 7,2% do PIB no biênio. Está confirmado que vivemos a pior recessão desde 1930.
Para quem se alimenta a partir do salário e, portanto, mais sofre com desemprego e redução de renda, é complicado explicar que deva ser exatamente o mais prejudicado com amputações do que lhe sustenta. Se não há explicação que minimamente convença, o risco de cisão nos laços sociais são perigosamente grandes e revoluções violentas costumam ser algo que devemos evitar.
O discurso destrutivo é fácil, sedutor e cada vez mais se entranha no imaginário. Delírios e fantasias todos temos, mas o problema está quando eles passam a confundir a realidade. Foi Sigmund Freud quem escarafunchou cabeças, estudou sério e sistematizou as repetições de comportamentos de seus pacientes. Com a humildade dos mestres, mais tarde, ele resolveu rever o conceito amplo de fantasia. Isso porque, nas primeiras análises, a pegada era mais sexual. Em 1897, o mestre de Viena passou a chamar de “fantasia” toda a vida imaginária, os meios pelos quais vemos nossas próprias origens. Passou então a denominar “fantasia originária”.
Reforma trabalhista tem tudo a ver com fantasias e fetiches. Principalmente nos motivos afirmados — com maiores ou menores volumes de voz — para rever o modo pelo qual organizamos nosso mundo do trabalho nas últimas décadas. Três grandes justificativas são extraídas:
1º) A legislação trabalhista é velha;
2º) A lei é protecionista e, portanto, gera desemprego e atravanca crescimento econômico;
3º) Tudo isso gera excesso de processos judiciais.
Eis o primeiro mantra: “o Direito do Trabalho Brasileiro é ultrapassado e precisamos modernizá-lo”. Que modernizar costuma ser bacana, não há dúvidas. Que a CLT tem mais de 70 anos, calendário nenhum nega. Mas daí passar à conclusão de que precisa esculhambar tudo são outros mil e quinhentos.
Momento das revelações: a CLT de 1943 não existe mais. Dos 510 artigos de Direito Individual do Trabalho, apenas 75 mantiveram-se originais. Isso significa miseráveis 15% da Consolidação e correspondem, essencialmente, a dispositivos conceituais e de baixa efetividade prática.
E a caducidade da velha senhora não ocorreu apenas pelas cirurgias substitutivas. Sim, ela foi trocada por moças mais jovens. Primeiro, a partir dos anos 70, quando surgiram diversas leis, principalmente para regular novas formas de contratação: rurais, farmacêuticos, jornalistas, etc. Segundo, e já no final dos anos 80, com a Constituição. Nossa Carta Política é modelo internacional pela importância que dá ao Direito do Trabalho e diversos temas são lá diretamente tratados. E falo de itens básicos e práticos, como valor de horas extras, direito a férias e salário mínimo.
Por fim, a atualização constante do Direito do Trabalho não ocorre apenas com modificações legislativas. Direito é muito mais que lei e nem sistema operacional da Apple tem upgrades mais constantes que o mundo do trabalho. Vivemos em sociedade que se pauta pelo trabalho humano e não nos cansamos de nos reinventar. Com a dificuldade de acompanhamento legislativo para regular tantas alterações, a jurisprudência precisa oferecer respostas contemporâneas. São mais mil (sim, eu disse mil!) verbetes sumulares, em temas de direito material e processual do trabalho. Aí entram súmulas, orientações jurisprudenciais, precedentes normativos etc. E, diga-se de passagem, o milhar vem apenas pelo TST e STF, porque cada tribunal regional do trabalho também empilha suas dezenas de súmulas.
Então, amigos, dizer que a lei trabalhista é velha é que é piada. E das velhas.
A segunda fantasia — e que, na minha opinião, alcança o status de fetiche — vem com a afirmação de que a proteção da legislação trabalhista gera desemprego e impede o crescimento. Líder empresarial famoso recentemente disse que “precisamos modernizar para reduzir custos e alavancar a produção”.
Em momentos de crise temos de afirmar o óbvio. Direito do Trabalho e Justiça do Trabalho são instrumentos de civilização, atuam no equilíbrio das relações sociais e impedem que conflitos entre empregados e empregadores se resolvam em golpes de tacapes. Isso sem falar na importância que têm para manter o mercado equilibrado pela distribuição de renda e suprido por seres capazes de consumir o que fabricam. Afinal, enquanto não inventarem exportações para outros planetas, somos nós, humanos, quem temos de ter condições para comprar o que produzimos.
Com sinceridade, não canso de me espantar com um aparente contra-senso. De um lado, há os litros de tinta, saliva e toques de teclado gastos na defesa da restrição de atuação da Justiça do Trabalho e excesso de proteção. De outro, silêncio, tela preta e reduzidas notas de rodapé sobre medidas efetivas para fazer cumprir o Direito e reprimir os delinquentes.
A sugestão de que a proteção trabalhista possa barrar crescimento é algo que não para em pé. O custo do trabalho no Brasil já é tremendamente baixo, cerca de dez vezes menor que na Austrália. Por aqui, o salário mínimo/hora é de cerca de R$ 4, “competindo” com os EUA (R$ 23), Alemanha (R$ 25), Espanha (R$ 17) e Portugal (R$ 15). Para comparar com vizinhos, no Chile é R$ 6.
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) têm estudos que demonstram não existir correspondência entre baixa proteção trabalhista e geração de empregos. Ao contrário, é a tutela do trabalho que assegura melhor distribuição de renda e permite que a economia se mantenha aquecida.
Até a China parece estar se dando conta da importância da elevação do salário. Reportagem recente do Financial Times mostra que o país asiático vem sistematicamente aumentando valor de salários na indústria e que isso está resultando em ganhos de produtividade a ampliação do mercado interno.
Estudos semelhantes mostram que ampliação de jornada de trabalho — outra fantasia desenvolvimentista divorciada de qualquer ciência — é péssima para todo mundo. Além de reduzir postos de trabalho, faz crescer número de acidentes e ampliar faltas ao serviço. Tudo isso onera a sociedade, especialmente com pagamento de benefícios previdenciários. A Suécia é país que pode servir de bom exemplo: após reduzir sua jornada semanal de trabalho, desmentiu todo o terrorismo de economistas apressados e viu a produtividade crescer, acompanhada de redução de faltas e de doenças relacionas ao serviço. Nada mal.
A terceira, e última, fantasia tem a ver com o excesso de processos trabalhistas. A Justiça do Trabalho conta com cerca de 3 milhões de ações e o número realmente é assustador. Não há qualquer outro país que tenha montante pelo menos parecido.
Aqui, precisamos reduzir o zoom e ampliar o acesso à paisagem. Excesso de ações está longe de ser karma exclusivo das relações trabalhistas. Alcançando visão de todo o sistema nacional de justiça, percebemos que a Justiça do Trabalho e a Justiça Federal têm praticamente o mesmo percentual, entre o total de processos no país. Cada uma conta com cerca de 14%, mas lembremos que os Federais possuem estrutura menor e as demandas praticamente se dirigem a um único réu, a União.
A campeã mesmo, é a Justiça Estadual, com seus 70% de novos casos, envolvendo questões como Direito do Consumidor e punição da criminalidade. Se são essas as questões que realmente batem recordes mundiais de litígios, devemos pensar em não mais limitar a voracidade dos conglomerados monopolistas? Ou fechar os olhos para o crime? Melhor não dar ideia.
O que esses números mostram é que no Brasil pode haver escassez de quase tudo, menos de ações judiciais de todos os tipos. Sejamos sinceros: somos um país de descumpridores e a propensão é fazer de conta que leis não existem até que alguém de toga mande cumprir, sob pena de pesar no bolso. Há um modelo de “passar a mão na cabeça” de quem descumpre rotineiramente leis, contratos e sentenças. Essa concepção passa por ver com bizarra naturalidade operações jurídicas para esconder patrimônio, atrasar pagamentos e recorrer ao infinito. O cumprimento voluntário da obrigação parece ser o inusitado. Sistemas jurídicos muito mais eficazes fixam consequências graves a descumpridores e devedores, com possibilidade de interdição de acesso a vários instrumentos de cidadania e de sobrevivência das atividades empresariais.
Enfim, há um problema cultural e matar o paciente não parece ser a melhor forma de acabar com a doença.
Aqui, também entra uma sub-fantasia, a da “indústria da reclamatória trabalhista”. Todos já ouvimos isso de gente mal-intencionada ou pessimamente informada. Parece partir da suposição de regra em lides inventadas, aventuras jurídicas e teses improváveis. Ninguém mais que juízes se revoltam com abusos no direito de litigar e — sim — há excessos, com pedidos (sejamos elegantes) pitorescos. Pode ser resultado do excesso de competição entre advogados, da necessidade de aumentar a “lucratividade do processo” ou da quase ausência de mecanismos de punição por exorbitâncias. Mas está longe de ser regra. Dados do Conselho Superior da Justiça do Trabalho mostram que mais de 46% das ações trabalhistas são para cobrar verbas rescisórias. Não tratam de construções temerárias, mas de simples parcelas salariais de quem trabalhou o mês, ganhou um contracheque em branco e a dica de “vai procurar os teus direitos”.
A terceirização e a irresponsabilidade administrativa do próprio Estado são grandes culpados do excesso de processos. Pesquisa da Associação dos Magistrados Brasileiros mostrou que dos 10 maiores devedores (envolvendo todos os setores do Judiciário), 6 fazem parte do Poder Público e 2 são empresas de terceirização de serviços.
Outro estudo, restrito a processos trabalhistas, mostra o mal que a terceirização produz. A Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 4ª Região produziu documento de análise do uso predatório do Judiciário e identificou que dos 6 maiores devedores da Justiça do Trabalho do Rio Grande do Sul, 4 são empresas terceirizadas. E são essas que, em média, pagam salários 24% inferiores, produzem o dobro da rotatividade e promovem 80% dos acidentes de trabalho. Lamentavelmente, o que há de projetos legislativos sobre terceirização no Congresso Nacional — pasmem — é de ampliação da prática.
Todo esse discurso fantasioso a respeito da necessidade de reforma trabalhista é fácil e sedutor. Não apenas porque envolve fetiches, mas em razão de vender ideia de terra arrasada, de que o Direito do Trabalho é o instrumento do mal e que a ausência de regras básicas possa fazer com que a convivência passe, em um passe de mágica, a ser mais simples e tranquila. Para temas complexos não há soluções simples. Thomas Piketty, um dos mais importantes economistas da atualidade, defende no bestseller O Capital no Século XXI que a única chance de salvar o capitalismo é combater a concentração de renda e melhor distribuir de forma mais inteligente os recursos econômicos. O problema não são a CLT e a Justiça do Trabalho, mas temas muito mais difíceis e necessários para enfrentamento: carga tributária, falta de política industrial, deficiência de infraestrutura e histórico de desonerações inconsequentes e sem contrapartidas.
Freud também tratou de uma fantasia interessante, a pulsão de morte (todestrieb). No Brasil, com sua fortíssima má distribuição de renda, o salário produz 55% da riqueza e achatá-lo é pisar nas chances de crescimento de toda uma nação. Por mais fantasioso que seja, matar os problemas do mercado de trabalho não é matar o trabalhador.
Direito do Trabalho é instrumento de civilização, garantidor de equilíbrio das relações sociais e assegurador do mercado de consumo. Podemos pensar em alternativas menos demolidoras e bem mais efetivas.
Se não temos consenso nacional para sangrar o trabalho, outros mundos são possíveis e não estão distantes de chegar. Pensar seriamente em educação e formação, investir em tecnologia e inovação, combater a sonegação e a corrupção, desonerar a produção e a folha de salários. Tudo isso é alternativa possível
* Presidente da Amatra 4 (RS)