Apelido é coisa séria no Brasil. Não tem país que dê mais importância para alcunhas que o nosso. E não só para pessoas, também acontecimentos: Golpe de 64 ou Redentora, Revolução Federalista ou Revolta da Degola, apelidamos fatos históricos conforme nossa interpretação de causas e, principalmente, das consequências.
A gente acompanha meio de longe manifestações pro e contra a PEC 55 (antiga PEC 241), mas alguns cognomes já aparecem: PEC do Fim do Mundo, PEC do Teto, PEC da Salvação, PEC da Maldade. Em alguns anos estará batido o martelo para o melhor apelido, mas por enquanto podemos pensar nas atuais causas das opções de nomes.
A medida, planejada pelo atual governo, limita o aumento das despesas federais à inflação apurada pelo IPCA. Os ministros do
Planejamento e Casal Civil – bem apoiados no Congresso – falam de agudo desequilíbrio fiscal, com efeito de déficit de até R$ 170 bilhões anuais. De fato, a dívida pública já alcança quase 80% do PIB e só a PEC para oferecer “Salvação” a tamanho descontrole.
Os movimentos sociais argumentam que o projeto privilegia pagamento de dívidas, achata salário mínimo e benefícios previdenciários, condena os serviços públicos ao sucateamento e pode extinguir saúde e educação pública da forma como as conhecemos hoje. Daí que carrega todos para o “Fim do Mundo”.
Amplas análises conjunturais são tarefas para políticos, economistas e palpiteiros de egos bem mais inflados. Mas podemos fazer pequena reflexão sobre os efeitos no "mundinho” da Justiça do Trabalho, caso a PEC (recorte-e-cole aqui sua alcunha preferida) seja aprovada.
O momento de referência de orçamento da Justiça do Trabalho é o pior da história. No começo do ano, tivemos demolidor corte na peça orçamentária. Um deputado “muy amigo” achou que cumpríamos bem demais nossas tarefas e, para estrangular e mandar repensar, decepou vários milhões de reais. Só não fechamos as portas, em razão de aporte emergencial no segundo semestre. Na forma como está a proposta, o orçamento “congelado” é o do começo do ano, sem nem mesmo a complementação que nos permitiu encerrar o ano respirando.
A restrição geral de despesas primárias usa chicotinho e roupa de vinil. A PEC 55 estabelece limitação de todos os gastos do Judiciário Trabalhista e impõe concorrência entre diversas rubricas do orçamento. Algo do tipo “quem corta mais”. Chegará um tempo em se que haverá de optar entre pagar a conta de luz ou os contratos dos terceirizados.
Todos sabemos do permanente crescimento de ajuizamentos de ações trabalhistas. Só em Porto Alegre, a cada ano há 5% a mais de processos e faz muito tempo que não vemos criação de varas e cargos de juízes. O congelamento orçamentário impede que estrutura minimamente acompanhe demanda. Ou seja, os processos ficarão mais longos, capengas e ineficazes.
Cumprir a Constituição devia ser coisa séria. O comprometimento geral dos direitos sociais previstos no art. 6º é difícil de ser cogitado, não só porque pagar tanto imposto, e ter menos retorno a cada ano, é duro de engolir, como em razão de afrontar objetivos fundamentais da República. Ocupamos um vergonhoso 75º lugar no ranking de desenvolvimento humano da ONU e a tendência é ir ladeira abaixo. Chegar em 2036 com dívida zerada e população miserável é – como disse Leandro Karnal – salvar o Titanic apenas para aportar em Nova Iorque com todos os passageiros mortos.
Esse mecanismo de compensação de gastos tem outras perversidades. Com a limitação geral de despesas, e para suportar demandas urgentes, gera-se opção de cortes em outros setores, como previdência pública. A Reforma Previdenciária que se aproxima (qual será o apelido?), com seus novos instrumentos precarizantes, gera tendência de agravamento para os funcionários públicos.
Especialmente preocupa essa monologia utilitarista. A Justiça do Trabalho é instrumento de civilização, cumpre função de distribuição de direitos fundamentais, injeta recursos na micro economia, segura a onda de conflitos entre capital e trabalho e restringe a marginalização. Nada disso é coisa para ser medida em planilhas de fluxo de caixa.
Mas se o economicismo financista é como o anel de Sauron do Senhor dos Aneis (my precious!), o corte de estrutura é ainda um baita erro. Em artigo recente, o juiz Daniel Nonohay e eu mostramos como a Justiça do Trabalho Brasileira dá lucro para todo o país (http://www.amatra4.org.br/publicacoes/artigos/1128-a-contabilidade-judicial-daquilo-que-o-dinheiro-nao-compra), mas aí vai um dado de paróquia: o orçamento do TRT do Rio Grande do Sul em 2015 foi de R$ 1,46 bilhão. Os valores pagos em condenações e acordos foi maior: R$ 1,77 bilhão. A isso somam-se R$ 297,7 milhões em arrecadações e outros muitos milhões em imposto de renda e contribuições previdenciárias sobre salários de funcionários e magistrados. Não há sentido – nem mesmo financeiro – em cortar estrutura de órgão que arrecada e enche os cofres da União.
Berthold Brecht, o dramaturgo alemão, já disse que há nada mais simplista e errado para fugir de uma discussão que dizer que algo é indeclinável, inexorável. Muita gente séria cita medidas substitutivas à PEC, a partir da ideia de preservar não apenas o navio, mas essencialmente os passageiros. Fala-se de restringir excessivas benesses ao capital financeiro, repensar renúncias fiscais, estabelecer teto para pagamento de juros, aumentar o número de faixas-alíquota de imposto de renda, combater efetivamente corrupção e sonegação de impostos, taxar dividendos remuneratórios de sócios de empresas, auditar a dívida pública. Enfim, há diversas alternativas à sedução simplista da guilhotina decepatória de quem já recebe tão pouco do Estado.
Em 30 anos, a PEC 55 terá seu apelido consolidado. Mas, é claro, para isso, teremos de estar por aqui. E respirando.
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