Estas palavras vão para meus colegas, todos, do Poder Judiciário brasileiro, de ontem, de hoje e quiçá de amanhã. Os que me conhecem sabem, e eu o confesso, que não sou, por natureza, paciente; mas, mesmo assim, me contive e permaneci tranquilamente calada nesses dois ou três últimos meses, desde que se começou a falar sobre os "anos de chumbo" da ditadura militar de 1964 com grande insistência, para tentar por a claro o que representou ela, de verdade, para os que a viveram e pagaram até com a vida sua fidelidade aos ideais democráticos.
É que se haviam passado 50 anos! Daí pessoas de todos os cantos do país, provocadas ou espontaneamente virem a público dar seus testemunhos, tentando não só fornecer dados e lembrar ocorrências mas, sobretudo, permitir que toda aquela história se escrevesse com exatidão. E, como era de se esperar, órgãos diversos promoveram encontros, sessões, palestras, chamando atenção para o testemunho muitas vezes até aqui incógnito de muita gente.
Um vazio ficou, porém. Em incompreensível silêncio, nenhuma palavra, vinda de dentro ou de fora, mencionou, sequer, o Poder Judiciário brasileiro, ou falou de que maneira foi ele atingido ou não pela ditadura militar, como instituição, ou na pessoa de seus membros. Mas estranha ainda se nos afigura tal omissão, logo agora quando está ele por assim dizer "na boca do povo" face à publicidade que lhe vem sendo emprestada pela mídia ante os momentosos processos e as magnas questões jurídico-políticas que lhe estão ocupando a cúpula, na pessoa do Supremo Tribunal Federal.
É de se perguntar: por quê?
De fato, quais as razões pelas quais ninguém se referiu aos membros ilustres da Magistratura cassados, privados de seus direitos políticos e de seus cargos sem sequer uma explicação?
Sem ter condição, no momento de me lançar a uma pesquisa global, menciono aqui, apenas e com enorme respeito, os nomes de Hermes Lima, Victor Nunes Leal e Evandro Lins e Silva, os três do Supremo, o de Aguiar Dias, do Federal de Recursos, o de Osny Duarte Pereira do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e o de Pery Bevilacqua do Superior Tribunal Militar. Mas há outros, também, atingidos de diversas formas. E o povo brasileiro tem o direito de saber tudo que se passou no seio da Magistratura e por que Magistrados foram afastados dos Tribunais que compunham, sem qualquer acusação formal, sem processo, sem nada. E de saber também que suas garantias constitucionais de vitaliciedade e inamovibilidade lhes foram retiradas pela ditadura, bem como seu poder de conceder habeas corpus, embora se tratasse de institutos já então velhos de 700 anos, posto que herdados da velha Albion dos tempos da Magna Carta.
E mais – que se mexeu na composição dos Tribunais, sobretudo os do Trabalho para neles se incluírem mais membros extra-carreira, nomeados diretamente pelo Presidente da República (!) a seu único alvitre, sem indicação alguma, para reduzir a influência nas decisões, dos togados de carreira, estes, sim, filtrados legitimamente por concursos e outras exigências.
E mais – que se alterou a legislação trabalhista por atos institucionais e complementares para impedir 1) a fixação livre, pelas Cortes, dos aumentos salariais, nos dissídios coletivos; 2) a condenação à paga de adicionais de periculosidade e de insalubridade a partir da admissão ou dentro do prazo prescricional, independente da data do laudo pericial que no processo, constatasse o fato gerador daqueles adicionais; 3) a paga de tais valores no caso de sentenças transitadas em julgado antes da "alteração legislativa", com flagrante desrespeito à coisa julgada.
E mais – que se declararam insusceptíveis de apreciação pelo judiciário os atos praticados com base na "legislação" institucional.
E mais – que o arrocho salarial decorrente da não fixação de aumentos pelos Tribunais do Trabalho "explica" grande parte do "milagre brasileiro" à custa do empobrecimento popular, o que não impediu, no entanto, que a ditadura legasse à democracia uma inflação anual de 200%.
Por que, então, o silêncio? Quem tem vergonha de pertencer ao mesmo Poder Judiciário de então? Não, por certo, nós, os que lutamos pela sua grandeza. Pessoalmente, dou testemunho de que minha luta custou-me responder a um processo forjado internamente por César Pires Chaves, que em 64 presidia o TRT da 1ª Região. Citada por oficial de Justiça, embora Magistrada (onde andava o alegado respeito à hierarquia?) para me defender, aos 7 dias do nascimento de minha filha Clara, vi a dignidade do Tribunal manifestar-se pelo voto de 7 dos seus 9 membros, que mandaram arquivar o feito, vencidos – evidentemente – o presidente Pires Chaves e o representante classista dos empregadores, Ferreira da Costa.
Além disto, o fato inédito da tentativa de ter um Juiz sido proposto à cassação por seu próprio Tribunal, "amarguei" a rejeição por quatro vezes de meu nome à promoção para o Tribunal, apesar de três vezes indicada em primeiro lugar nas listas de merecimento enviadas à Presidência da República. Fui promovida apenas quando da quinta lista, já em fevereiro de 1988, antes da Constituição, promulgada em outubro daquele ano. E já tivera que obter via habeas corpus preventivo meu passaporte para sair do país, isto antes que "suprimissem" tal figura legal.
Este é o meu caso. Mas é um caso apenas. Muitos outros existem. Que falem todos! Que os arquivos se abram! Que as Associações de Magistrados se manifestem! É isto que nos dará o respeito da nação, dizer o que fizemos, e a que viemos. Não é aparecer na televisão... salve!