TERCEIRIZAÇÃO:
Forma de gestão de trabalho ou meio de acomodação da produção capitalista?
“Para o patrão, comprar a mão-de-obra no mercado mais barato significava comprá-la pela taxa mais baixa de unidade de produção, isto é, comprar a mão-de-obra mais barata da mais alta produtividade.” (Hobsbawm, Eric J. – Os Trabalhadores: Estudo sobre a História do Operariado,2000, p. 399)
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A década de 1970 e a terceirização: breve evolução histórica
A história demonstra que as relações de trabalho acabam por adaptar-se às exigências dos ciclos econômicos, ainda que tal situação implique precarização e comprometimento das conquistas sociais.
Embora a prestação de serviços por terceiros não seja uma prática inovadora do mundo atual, existindo registros históricos que remontam ao século XVIII, notadamente na atividade têxtil – façonismo[1] -, o formato que apresenta na atualidade aprimorou-se a partir da derrocada do Estado de bem-estar social.
Nesse contexto, a terceirização surgiu como resposta às necessidades da economia de mercado e da reacomodação da produção capitalista, sobretudo a partir da década de 1970.
Retrocedendo ainda mais algumas décadas na história, durante a Segunda Guerra Mundial despontaram os primeiros sinais da terceirização no mundo contemporâneo: as grandes potências, concentrando esforços e capital na produção da indústria armamentista, passaram a transfererir para terceiros as atividades acessórias.
Mas como um fenômeno de descentralização da atividade produtiva, sobretudo no setor de serviços, em larga escala e com expressivos reflexos nas relações sócio-econômicas, a terceirização incrementou-se apenas na década dos 70, a partir do impacto que a crise do petróleo gerou na economia, no setor produtivo e nas receitas fiscais do Estado de bem-estar social.
Iniciou-se, como reação a essa crise, um novo ciclo econômico. Nessa conjuntura, para atender ao modo “criativo” do capitalismo reinventar-se, as relações de trabalho tiveram que se adequar, já que o nível de emprego estava comprometido e os trabalhadores em absoluta vulnerabilidade.
A política econômica liberal adotada pelos Estados nesse período, notadamente na era Tacher-Reagan, promoveu precarização das relações de trabalho, por meio da desregulamentação dos direitos conquistados nas décadas anteriores (no período do pós-guerra), investidas severas contra os movimentos coletivos e hostilização da atuação dos sindicatos.
Novas formas de gestão da produção e do trabalho surgiram, sendo substituído o modelo fordista (produção em massa e fluxo contínuo, com a concentração de trabalhadores no mesmo local, para controle do ritmo e da qualidade da produção), pela idéia de subcontratação de mão-de-obra, introduzindo o modelo enxuto da indústria (toyotismo).
No Brasil, a abertura da economia ao comércio internacional, na era Collor, e as privatizações impulsionaram o processo de terceirização iniciado nas décadas anteriores.
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Princípios
Aqueles que pensam a terceirização como fórmula ideal e inevitável para o desenvolvimento econômico, fundamentam sua tese no princípio da livre iniciativa (art. 170 da CRFB).
Ocorre, porém, que referido princípio deve ser analisado à luz do contexto em que foi inserido e com o objetivo de concretizar os fins sociais a que se destina, nos moldes propostos no próprio artigo 170 da Carta Cidadã.
Nessa toada, a livre iniciativa, da forma como foi inserida no texto constitucional, não está a serviço exclusivamente do capital, mas deve valorizar o trabalho humano e garantir a existência digna do homem.
Como bem ponderado pelo professor Eros Grau, em sua obra A ordem econômica na Constituição de 1988, “a livre iniciativa é assegurada quando expressada de forma socialmente valiosa.”
Trata-se de um sistema de “freios e contrapesos” das relações sociais, de maneira que a livre iniciativa jamais sirva de pretexto para o aviltamento do valor social do trabalho, da existência digna do homem e dos direitos humanos (artigos 1º, 3º, 4º, 6º, 7º e 170 da CRFB).
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A terceirização e a precarização das relações de trabalho
Por mais criativos que sejam os argumentos em favor da terceirização, não se pode negar que o modelo atualmente praticado vem promovendo considerável precarização das relações de trabalho, ao permitir o surgimento, dentro de uma mesma empresa, de dois segmentos de trabalhadores: os empregados diretos, que contam com o manto de proteção do empregador, e os “terceirizados”, que ficam à mercê das empresas contratadas, estas nem sempre idôneas.
Enquanto o Direito do Trabalho representou avanço das relações sociais, humanizando-as, por outro lado, a terceirização, ampla e sem critério, implica degradação do nível de relacionamento entre empregado e empregador, isolando os trabalhadores em suas lutas, desestruturando as categorias e enfraquecendo o movimento sindical.
Quando uma empresa, sem qualquer especialidade, promove indistintamente a intermediação de mão-de-obra, com finalidade apenas e tão somente de fornecer ao cliente trabalhadores dos mais diversos segmentos, a relação de trabalho resta comprometida.
O terceirizado, além de receber salário inferior ao do empregado direto, não se identifica com qualquer categoria profissional, seja do tomador de serviços, seja de seu empregador, que sequer tem um ramo de especialidade, fornecendo mão-de-obra nos mais diversos segmentos de atividade.
Como resolver a questão da representação sindical dos trabalhadores terceirizados, uma vez que, além da empregadora não ter especialidade alguma, já que sua atividade é fornecer mão-de-obra, a cada dia prestam serviços numa tomadora diferente e, portanto, também não têm identificação com o segmento econômico da empresa-cliente?
Sindicato é unidade, convergência de interesses; e a organização no local de trabalho é elemento fundamental para o movimento sindical e para o fortalecimento das negociações coletivas. E isso definitivamente não ocorre na terceirização.
Aliás, essa é a lógica desse fenômeno que vem conquistando espaço nas mais diversas estruturas produtivas do mundo capitalista. Incentivadas pelos consultores econômicos e administrativos, as empresas pulverizam a produção e os serviços para vários “fornecedores”, de maneira a incrementar a competitividade entre as terceirizadas, diminuir os custos da contratação e, ao mesmo tempo, tornar mais vulneráveis as ações coletivas dos trabalhadores, ao passo que a opção por esse modelo “milagroso” gera fragmentação e pulverização das categorias. Essa é a terceirização predatória identificada pelo DIEESE (1993).
Em 1993, o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC registrou num histórico documento alguns dos mais nefastos efeitos da terceirização, no setor industrial:
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Fragilização da ação sindical, com a fragmentação da categoria;
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Redução dos postos de trabalho;
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Deterioração das condições de trabalho: redução salarial e de benefícios; aumento da jornada de trabalho; discriminação dos terceirizados; COMPROMETIMENTO DO NÍVEL DE SEGURANÇA E SAÚDE DA FORÇA DE TRABALHO TERCEIRIZADA.
Da análise dos reflexos nocivos da terceirização, identificados acima, outra não pode ser a conclusão senão a de que, nesse “jogo”, perdem o empregado, a categoria organizada, as conquistas via negociação coletiva e, numa análise mais ampla, o próprio Direito do Trabalho.
Isso sem falar nos reflexos nocivos que gera à sociedade, pois a empresa que se beneficia dos serviços terceirizados é a primeira a negar sua responsabilidade não apenas em relação aos trabalhadores, mas também perante seus próprios clientes, quando os serviços prestados causam prejuízos a estes consumidores finais.
Por todas essas razões, as propostas que objetivem a legalização da terceirização, partindo da premissa do “fato consumado”, merecem um olhar cuidadoso, voltado à preservação das conquistas asseguradas pelo Texto Constitucional, à melhoria das condições sociais do trabalhador e à promoção da existência digna do homem.
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Projeto de Lei
O Projeto de Lei 4330/2010 institucionaliza a prática da terceirização no Brasil de todas as atividades da empresa, permitindo, com isso, a existência de empresas sem empregados.
Em resumo, são estes os pontos abordados no projeto:
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A liberação da terceirização para qualquer atividade econômica;
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A institucionalização da terceirização na atividade fim;
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A subcontratação pela empresa prestadora de serviços da atividade terceirizada (art. 2º, parágrafo 3º);
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Sucessivas contratações do mesmo trabalhador, por diferentes empresas terceirizadas, na prestação de serviços à tomadora (Art. 6º. São permitidas sucessivas contratações do trabalhador por diferentes empresas prestadoras de serviços a terceiros, que prestem serviços à mesma contratante de forma consecutiva);
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A responsabilidade subsidiária da empresa contratante quanto às condições de segurança e higiene no ambiente de trabalho; (Art. 9ºÉ responsabilidade subsidiária da contratante garantir as condições de segurança, higiene e salubridade dos trabalhadores, enquanto estes estiverem a seu serviço e em suas dependências, ou em local por ela designado).
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A responsabilização subsidiária pelo inadimplemento das obrigações previdenciárias por parte da empresa terceirizada, em relação aos seus empregados (PL).
Os terceirizados, pelo que se observa da leitura do projeto de lei, podem representar a massa total de trabalhadores da empresa tomadora de serviços, já que a lei, se aprovada, passará a ser o “salvo-conduto” para que hospitais não registrem os médicos e os enfermeiros, escolas ensinem sem professores, bancos não tenham quadro fixo de bancários, prestando serviços essenciais apenas por meio de terceirizados etc.
A proposta legislativa é também precarizante por formalizar uma categoria inferior de trabalhadores, que se distinguem dos empregados diretos não apenas por seus crachás e uniformes diferentes, mas pela mitigação de direitos, redução dos salários, desestruturação da representação sindical, fragilização da organização dos empregados no local de trabalho e, por conseguinte, individualização das lutas.
A propósito, a fragmentação e pulverização das categorias, uma das consequências nefastas da terceirização predatória, não deve ser uma preocupação exclusiva das entidades sindicais, mas deve ser pauta permanente de debate dos trabalhadores e da sociedade, eis que implica desequilíbrio das forças negociais e, numa análise mais ampla, comprometimento da própria qualidade da produção e dos serviços.
Outro ponto a merecer reflexão dos estudiosos do tema é a responsabilidade do tomador de serviços que, em consonância com os artigos 9º e 10 do projeto, é subsidiária, inclusive quanto às questões relacionadas à saúde e à segurança do trabalho.
Nesse aspecto, mais um grande retrocesso social se avizinha.
A propósito, o entendimento jurisprudencial sedimentado na Súmula 331 do C. Tribunal Superior do Trabalho é considerado como um “patamar mínimo civilizatório”, sendo que qualquer proposta legislativa tendente a tratar da terceirização deveria avançar, assegurando expressamente a responsabilidade solidária.
A Constituição da República, ao assegurar as conquistas sociais, não excluiu outros direitos que objetivem a melhoria das condições sociais dos trabalhadores (art. 7º, caput) e lhe garantam existência digna (art. 1º, III).
Inafastável a conclusão, desta forma, de que todos aqueles que venham a se beneficiar com os frutos dos serviços prestados pelo trabalhador devem ser solidariamente responsabilizados, nos mesmos moldes e segundo o mesmo raciocínio que serve de fundamento ao artigo 942 do Código Civil.
E nas hipóteses envolvendo a saúde e a integridade física do trabalhador, a nocividade do projeto é ainda mais alarmante. Isto porque, a jurisprudência de nossos Tribunais já avançou, acolhendo, em larga escala, a responsabilidade solidária do tomador de serviços, porquanto, diversamente da situação versada na Súmula 331, TST, nos acidentes de trabalho não há discussão acerca de títulos contratuais (de caráter eminentemente trabalhista), mas da violação ao direito fundamental à vida, à saúde e à integridade física.
5. Conclusão
Da análise da evolução das relações sociais, à luz dos diversos momentos da política econômica, não é difícil concluir que a terceirização sempre procurou adequar a força de trabalho, fonte de criação de riquezas no contexto do capitalismo, aos interesses do mercado e ao fomento da lucratividade das empresas.
Na prática, pelo que acompanhamos no cotidiano forense, tem potencializado a desigualdade social e fragilizado, de todas as formas, os trabalhadores que se veem nessa condição.
E o impacto que a terceirização predatória causará, se aprovado o PL 4330 nos moldes propostos, não ficará restrito ao campo da violação de direitos fundamentais e do retrocesso social.
Serão também sentidas no País, a médio prazo, as nefastas consequências econômicas desse processo, com a diminuição do poder aquisitivo de um sem número de trabalhadores terceirizados, o aumento dos acidentes de trabalho neste segmento e, por conseguinte, o incremento no número de benefícios previdenciários, sinalizando que o modelo sugerido não é e nunca será forma adequada de “modernização” das relações de trabalho.
GIRAUDEAU, Michel Olivier. Terceirização e Responsabilidade do Tomador de Serviços. Ed. LTr, 2010.
HOBSBAWM, Eric J. – Os Trabalhadores: Estudo sobre a História do Operariado,Paz e terra, 2000.
PALMEIRA SOBRINHO, Zéu. Terceirização e Reestruturação Produtiva. Ed. LTr, 2008.
SINDICATO DOS METALÚRGICOS DO ABC RUMO À UNIFICAÇÃO. Os trabalhadores e a terceirização. São Bernardo do Campo: SMABC, 1993.
[1] “A fação, originada do francês à façon, é a execução de um serviço sem que o prestador tenha a propriedade da matéria-prima. O façonismo é uma demonstração de que o modelo flexível resgata velhas formas de exploração e de instensificação da força de trabalho.” PALMEIRA SOBRINHO, Zéu. Terceirização e Reestruturação Produtiva. LTr, 2008, p. 79.