*Reportagem publicada no Anuário da Justiça BrasilÂ
2024, lançado no Supremo Tribunal Federal. A versão impressa está à venda na Livraria ConJur (clique
Mundo do trabalho Justiça do Trabalho busca se adaptar a novas realidades para além da CLT
*Reportagem publicada no Anuário da Justiça Brasil 2024, lançado no Supremo Tribunal Federal. A versão impressa está à venda na Livraria ConJur (). Acesse a versão digital pelo site do Anuário da Justiça (anuario.conjur.com.br).
Com acúmulo de reveses no Supremo Tribunal Federal, como a cassação de decisões que reconhecem vínculo de emprego, ministros do Tribunal Superior do Trabalho passaram a defender que o tribunal veja com outros olhos as demandas que envolvam relações laborais diversas da CLT. O foco é preservar a competência constitucional da Justiça do Trabalho para apreciar todos os conflitos decorrentes das relações de trabalho, sob o risco de ser sentenciada a arbitrar apenas verbas rescisórias.
A queda de braço com o STF foi personificada na controvérsia envolvendo a existência ou não do vínculo de emprego entre motoristas e entregadores de plataformas digitais, como Uber e Ifood. O TST, contudo, já vem perdendo essa batalha há algum tempo - com direito a recados e críticas dos ministros do Supremo em seus votos.
Levantamentos feitos pelo núcleo de estudos "O Trabalho Além do Direito do Trabalho", da Faculdade de Direito da USP, em parceria com a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), mostram que, em um universo de cerca de 1.500 decisões proferidas pelo STF em sede de matérias trabalhistas nos últimos cinco anos, aproximadamente 75% reverteram decisões da Justiça do Trabalho. Os casos envolvem não só motoristas de aplicativo, mas diversas outras categorias cuja característica de autônomo, defendida por empresas, não foi reconhecida pela JT, que enxergou fraudes em todos eles.
Ao cassar as decisões, ministros do STF se amparam no conceito constitucional da livre iniciativa e acusam a Justiça do Trabalho de descumprir deliberadamente a jurisprudência do Supremo ao reconhecer vínculos de emprego em contratos alternativos de trabalho, a despeito de precedentes firmados pela corte nos últimos anos que validaram a terceirização (ADPF 324 e Tema 725) e a "pejotização" (RCL 47.843).
Parte da Justiça do Trabalho, por sua vez, sustenta que a legalidade em si dessas novas formas de contratação não é objeto dos litígios e, na apreciação dos casos concretos, as fraudes são caracterizadas diante da identificação dos princípios que configuram uma relação de emprego, como pessoalidade, não eventualidade ou habitualidade, onerosidade e subordinação.
"Tais precedentes vêm sendo invocados para levar ao STF discussões de reconhecimento de vínculo de emprego das mais diversas categorias, como advogados, médicos, trabalhadores por aplicativos, representantes comerciais, etc. Todas essas categorias - à exceção dos trabalhadores por aplicativos - possuem legislações próprias, com regras que devem ser observadas para sua contratação, seja como profissional autônomo, seja como empregado, e nenhuma destas leis foi objeto de análise de constitucionalidade nos referidos precedentes", defendeu Kátia Arruda, ao Anuário da Justiça Brasil. A ministra já votou no sentido de reconhecer a relação de emprego na atuação de trabalhadores por aplicativo, por exemplo.
Para Douglas Rodrigues, porém, é hora de o TST agir de forma pragmática, haja vista histórico de enxugamento da competência da Justiça do Trabalho desde a promulgação da Constituição de 1988. "Nós precisamos superar essas fronteiras do Direito do Trabalho, abraçar sem receio o Código de Defesa do Consumidor, o Código Civil, leis específicas ( ) É preciso nos despir desse preconceito, dessa pré-compreensão que está levando o STF a cassar tantas decisões que, ao fim, podem nos levar ao cenário de esvaziamento absoluto que, no extremo, não mais justifique a existência dessa instituição", sustentou o ministro, durante seminário na Faculdade de Direito da USP, em março.
Ives Gandra Filho é mais crítico. "Os excessos de protecionismo da JT e do TST, bem como a indisciplina judiciária deste ramo especializado da Justiça, têm sido responsáveis pela redução paulatina da competência da Justiça do Trabalho pelo STF, a ponto de termos regredido 35 anos em matéria de competência. Parece mais uma vez ter lugar a Terceira Lei de Newton: a toda ação corresponde uma reação em sentido contrário e de igual intensidade", avaliou ao Anuário da Justiça.
A previsão apocalíptica não é em vão e as derrotas não são impostas apenas pelo Supremo. Em fevereiro, a ministra Nancy Andrighi, do STJ, afastou a competência da Justiça do Trabalho para julgar ação que apontava fraude na relação autônoma e buscava o reconhecimento de vínculo de emprego. O juízo estadual suscitou conflito de competência por entender que a demanda deveria ser julgada pela JT, nos termos da EC 45/2004, mas a ministra decidiu que a Justiça comum é que deve validar ou não o negócio jurídico questionado para, só então, a autora pleitear os direitos trabalhistas previstos na CLT na Justiça do Trabalho (CC 202.726/SP).
"Do jeito que as coisas estão caminhando, a Justiça do Trabalho passaria a ser apenas aquela Justiça que simplesmente ditaria quais são as verbas a receber, mas quem diria se há ou não vínculo de emprego seria o juiz comum. Será como no Tribunal do Júri, em que quem define se o réu é ou não culpado é o júri e o juiz togado apenas faz a dosimetria da pena. É algo anômalo", criticou o professor de Direito e Processo do Trabalho da USP e juiz do Trabalho da 15ª Região (Campinas), Guilherme Guimarães Feliciano.
Para Karolen Gualda Beber, advogada especialista em Direito do Trabalho, do escritório Natal & Manssur Advogados, é preciso que a Justiça do Trabalho pense além da CLT para resolver conflitos atuais envolvendo trabalhadores hipersuficientes. "Em sua grande maioria, as decisões da Justiça do Trabalho refletem essa ideia de que a fraude é a regra de qualquer nova forma de negociação, e, com isso, não se analisa a fundo a validade do pactuado", analisa. "Seria essa a oportunidade de a Justiça analisar - se mediante uma nova realidade de trabalho ou formato de prestação de serviços - a viabilidade da aplicação das normas legais (que não apenas a legislação trabalhista), apurando-se, se aquele negócio firmado, naqueles moldes e mediante aquela negociação válida, foi cumprido pelas partes".
Ao Anuário da Justiça, a ministra Maria Cristina Peduzzi defendeu que haja reconfiguração da própria CLT, com a "elaboração de novas tipologias contratuais e regimes de proteção que sejam mais adequados à realidade do trabalho em plataformas digitais, por exemplo". "Enquanto algumas das novas relações de trabalho poderão ser enquadradas na CLT, outras exigirão da Justiça do Trabalho uma adaptação às novas circunstâncias, de modo a reconhecer a diversidade das formas de organização do trabalho".
Delaíde Arantes pondera que o debate em torno das novas relações de trabalho é mais complexo, diante da história escravocrata do Brasil. A ministra afirma ainda que a cassação de decisões da Justiça do Trabalho se dá em razão das posições pró-patrão da maioria dos ministros do STF. "A cassação de decisões da Justiça do Trabalho, o acolhimento amplo e indiscriminado de reclamações constitucionais, inclusive em matérias infraconstitucionais, é uma prática não compatível com a independência do Judiciário e sinaliza com a escolha de um dos ramos do pró-prio Judiciário para atacar."
Em fevereiro de 2024, o STF começou a julgar recurso extraordinário movido pela Uber (RE 1.446.336) a fim de pacificar o tema, que também é fruto de divergências entre as Turmas do TST. O Supremo reconheceu, por unanimidade, a repercussão geral na controvérsia e afetou o Tema 1.291 para definir se há ou não vínculo empregatício nos casos dos motoristas de aplicativo. "Não se pode olvidar que há decisões divergentes proferidas pelo judiciário brasileiro em relação à presente controvérsia, o que tem suscitado uma inegável insegurança jurídica. A disparidade de posicionamentos, ao invés de proporcionar segurança e orientação, agravam as incertezas e dificultam a construção de um arcabouço jurídico estável e capaz de oferecer diretrizes unívocas para as cidadãs e cidadãos brasileiros", justificou o ministro Edson Fachin, relator do recurso.
Paralelamente ao movimento no STF, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) apresentou ao Congresso Nacional o PL que regulamenta o trabalho de motorista por aplicativo (PLC 12/24). A proposta afasta o vínculo de emprego e os direitos de quem tem carteira assinada, como fé-rias e descanso semanal remunerado, e reconhece o caráter autônomo da profissão. No entanto, estabelece remuneração mínima para o trabalhador (R$ 32,10 por hora trabalhada); limita a jornada diária de trabalho em 12 horas; e fixa contribuição ao INSS de 7,5% para os trabalhadores e 20% para as plataformas. A regulamentação brasileira diverge do que se vê em outros países, onde o vínculo de emprego é reconhecido. Os trabalhadores de delivery não estão incluídos neste PL porque, segundo o governo, ainda não há consenso na negociação com a Ifood.
"Este novo relacionamento tecnológico não cria vínculo empregatício, mas um novo conceito divergente ao celetista. E isso é tão real que motoristas podem, a qualquer momento, informarem que não estarão prestando serviços do período que ele definir, como férias pessoais. Nada o proíbe, sendo proprietário ou arrendante do veículo ou meio de locomoção, de ter duas ou mais opções de plataformas registradas (o que é comum), ou realizar outros serviços ainda que particulares, o que os tornam novamente diferenciados das previsões de 1940 (CLT) e suas atualizações", sustenta o advogado empresarial Marcos Eduardo Piva, do Piva Advogados Associados.
Parte dos próprios motoristas protesta contra o projeto. Uma ala entende que o valor mínimo deve ser maior e outra se volta contra a obrigatoriedade de contribuição ao INSS. Para Paulo Lima, conhecido como Galo, liderança dos entregadores com cerca de 172 mil seguidores no X (ex-Twitter) e 220 mil no Instagram, há falta de consciência de classe entre os trabalhadores. "Essa ideia de que o trabalhador não quer CLT não é mentira. Os entregadores, de fato, têm problema com a CLT, com o sindicalismo e com os direitos trabalhistas", disse em entrevista ao podcast O Velho Ronald Rios FM. Galo também critica o projeto, mas por não reconhecer o vínculo de emprego. "Eu fiquei surpreso porque o Lula e o Luiz Marinho [ministro do Trabalho] são duas carteiras de trabalho ambulantes ( ). A gente tem que tirar da cabeça que isso é uma coisa que está acontecendo apenas com os trabalhadores de aplicativo. Se a carteira de trabalho deixar de existir para o entregador, também vai deixar de existir para o enfermeiro, para todo mundo".
Para Corrêa da Veiga, vice-presidente do TST, a definição do tema no STF deve pacificar a controvérsia, que também tem dividido juízes do Trabalho na primeira instância. "É natural que, inexistindo ainda uma posição vinculante, tenham surgido alguns julgados de magistrados trabalhistas seguindo tal linha (afastando a competência da Justiça do Trabalho). Por ora, ainda se trata de situação isolada. A questão se resolverá com o julgamento pelo STF."
Já a juíza Valdete Souto Severo, do TRT-4 (RS), acredita que eventual decisão do STF pelo não reconhecimento de vínculo de emprego terá efeito inverso e aumentará a litigiosidade. "A segurança jurídica de quem vive do trabalho está justamente na legislação social trabalhista. Quando a gente trata de uma relação de trabalho, de uma perspectiva que desprotege - e esse é o caso - estou colocando essa pessoa em uma situação de desamparo que não vai se acomodar. A litigiosidade cresce porque essas pessoas vão continuar querendo discutir seus direitos."
O número de processos distribuídos no TST segue caindo desde 2020. Em 2021, recebeu 342.824 ações; no ano seguinte, 307.147 e, em 2023, 302.522. O total de julgados aumentou 11% no ano passado e o acervo caiu 7,8% no mesmo período. Na contramão, o tempo médio de tramitação vem subindo nos últimos anos (498 dias em 2021; 512 dias em 2022 e, no ano passado, 627).
Em março de 2024, o Conselho Superior da Justiça do Trabalho regulamentou a reclamação pré-processual, modalidade em que as partes poderão buscar a solução por meio de conciliação sem a abertura de um processo formal e constituição de advogado. A criação do CSJT, inclusive, foi formalizada pela Lei 14.824/24. O conselho foi criado em 2005, mas era amparado apenas por resolução administrativa - também passou de 11 para 12 integrantes.
Em abril, o advogado Antônio Fabrício de Matos Gonçalves, ex-presidente da OAB-MG, foi indicado pelo presidente Lula para a vaga de ministro na corte aberta com a aposentadoria de Emmanoel Pereira.