Por Ricardo Calcini e Leandro Bocchi de Moraes
Recentemente foi veiculada reportagem na Folha de S.Paulo[1] com o título: "Justiça do Trabalho ignora o STF, e ministros veem afronta à corte", segundo a qual, pela ótica dos ministros do Supremo Tribunal Federal, as decisões proferidas na esfera trabalhista estariam em desconformidade com o atual entendimento sedimentado pela Corte Suprema.
Dito isso, nos últimos tempos diversos foram os casos decididos pelo Pretório Excelso envolvendo a Justiça do Trabalho. Aliás, as temáticas abordadas sempre foram polêmicas, tanto que o assunto foi indicado por você, leitor(a), para o artigo da semana na coluna Prática Trabalhista, da revista eletrônica Consultor Jurídico [2], razão pela qual agradecemos o contato.
De um lado, têm-se os casos em que são discutidos na Justiça do Trabalho os direitos trabalhistas da clássica e típica relação de emprego, prevista nos artigos 2º [3] e 3º [4] da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Lado outro, o STF tem decidido e validado outras formas de organização de trabalho, que não seja especificamente um vínculo empregatício.
Com efeito, segundo o Ranking de Assuntos mais Recorrentes na Justiça do Trabalho, até julho de 2023 [5] o pleito de liame da relação empregatícia aparece na 16ª posição. Já pela pesquisa do Painel Mapa de Empresas, o número crescente de micro e pequenas empresas pode indicar um maior volume de contratações de trabalhadores como pessoas jurídicas [6].
Frise-se, por oportuno que a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) já se pronunciou sobre o assunto no sentido de que a jurisprudência da Corte Superior não é ignorada, contudo, é preciso que todos estejamos atentos para as práticas de fraudes [7].
Do ponto de vista normativo, o artigo 114 da Constituição [8], o qual sofreu alterações com o advento da Emenda Constitucional 45, de 2004, dispõe sobre a competência material da Justiça do Trabalho, sendo importante destacar que a Lei Maior faz referência à relação de trabalho ("lato sensu"), e não à relação de emprego ("strictu sensu") nos moldes da CLT.
Sobre a relação de trabalho e as suas dimensões, oportunos são os ensinamentos do professor Homero Batista [9]:
"Não é fácil precisar o conceito de relação de trabalho. A vertente reducionista tende a associar a relação de trabalho com simples contrato de trabalho, de tal forma que a competência trabalhista não teria sofrido alteração alguma com a EC 45/2004: embora sujeitos empregado/empregador tenham sido suprimidos do contexto, a manutenção de referência à relação de trabalho permite concluir que, nesse particular, a competência seguiu intacta. Se ampliação houve, ela terá decorrido de outros incisos do art. 114 da CF/1988, como as ações de fiscalização do trabalho e dos litígios sindicais.
(...). Entre a tese de que nada mudou em 2004 e a de que tudo mudou em 2004, aos poucos foi sedimentado o entendimento de que, de fato, a competência capaz de orbitar em torno da realidade da relação de trabalho possui dimensão maiores do que as fórmulas antigas de delimitação subjetiva da Justiça do Trabalho. Fica pavimentado o caminho para a calibragem de diversas outras matérias pertinentes ao segmento trabalhista, mesmo que desprovidas das figuras do empregado e do empregador, tais como os já mencionados exemplos do trabalho portuário, dos conflitos de greve, das cobranças de fontes de custeio sindical, ações ajuizadas pelo Ministério Público do Trabalho e, naquilo que decorrer das autuações dos Auditores Fiscais do Trabalho, pela própria União e assim sucessivamente".
Nesse diapasão, verifica-se da leitura do texto constitucional, ao tratar da competência material da Justiça do Trabalho, que o legislador não restringiu a diretriz normativa à relação de emprego, e, justamente por isso, é preciso ter cautela ao rejeitar ou mesmo limitar a sua jurisdição.
Entrementes, decisões proferidas pelo STF têm cassado ou derrubado os julgamentos da Justiça do Trabalho, a exemplo do que ocorre nos casos envolvendo a terceirização de serviços e a contratação de profissionais liberais por meio pessoas jurídicas, dentre outras modalidades.
Contudo, impende destacar que, diferente do que ocorre na Justiça do Trabalho, em que todo o contexto fático e a realidade vivenciada entre as partes são provas analisadas e sopesadas pelo magistrado para que seja prolatada a decisão judicial, é sabido ser vedado o reexame de fatos e de provas pela Suprema Corte.
Sob esta perspectiva, não se pode confundir o fato de ser plausível o reconhecimento de outras formas lícitas de trabalho e organização de produção diversas da relação de empego, em detrimento da redução da competência da Justiça do Trabalho para julgar os pedidos de vínculos empregatícios por fraudes na contratação. Aliás, diversos são os casos em que se verificam fraudes envolvendo terceirização de serviços e contratação através de pessoas jurídicas, mais conhecida pejotização.
Nesse desiderato, em um caso concreto julgado pela 7ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST), houve o reconhecimento do vínculo de emprego de uma trabalhadora terceirizada, por se entender que se tratava de uma terceirização fraudulenta, possibilitando, portanto, o reconhecimento do vínculo, sem desrespeitar os precedentes da Suprema Corte [10].
Em seu voto, o ministro ponderou[11]:
"O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida nº RE-958.252, fixou a tese de que: 'É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante' (Tema 725 da Tabela de Repercussão Geral).
Todavia, vigora no direito do trabalho o princípio da primazia da realidade, segundo o qual deve-se aferir as condições em que efetivamente o trabalho ocorreu, a fim de se determinar sua natureza jurídica. E é justamente da análise do contrato-realidade que se irá extrair se houve (ou não) fraude na relação mantida entre empresa prestadora de serviços e o tomador de seus serviços, a revelar eventual distinção entre o precedente vinculante e o caso concreto".
É certo que na Justiça do Trabalho, para além da aplicação efetiva da legislação constitucional, infraconstitucional, tratados e demais convênios internacionais, é imprescindível a busca da própria verdade real, esculpido no princípio da primazia da realidade.
Nesse prumo, num outro caso concreto, um representante comercial, que foi obrigado a constituir uma empresa para atuar como pessoa jurídica, teve o vínculo de emprego reconhecido na Justiça do Trabalho, vez que a suas atividades e atribuições em nada mudaram após a sua demissão, ficando caracterizada a fraude através do instituto da pejotização [12].
Bem por isso, é preciso ter sempre cuidado ao dizer que a Justiça do Trabalho não respeita a jurisprudência e os precedentes do Supremo Tribunal Federal, afinal, para proferir as suas decisões, necessária se faz a análise do caso concreto. Tanto isso é verdade que se, ao final, caso se entenda pela inexistência de fraude, afasta-se a pretendida subordinação jurídica para legitimar a contratação de trabalho através da pejotização [13].
Em arremate, em conformidade com a atual jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, indubitavelmente tem nascido um novo olhar sobre o Direito do Trabalho, de modo a afastar o clássico enquadramento celetista. Acontece que incumbe à Justiça do Trabalho a palavra final para se analisar eventuais fraudes existentes nas contratações, assim como avaliar o próprio pedido de reconhecimento do vínculo de emprego, não sendo crível o esvaziamento de sua competência material e de sua função social.
Ricardo CalciniLeandro Bocchi De Moraes