De uma coisa o governo Jair Bolsonaro jamais poderá ser acusado: a de não insistir - e muito! - no projeto de esvaziar a regulação trabalhista para supostamente combater o desemprego.
Essa é uma obsessão cultivada desde sempre pelo antes todo-poderoso ministro Paulo Guedes e pelo seu próprio chefe. Nunca é demais lembrar que, logo após ser eleito, Bolsonaro chegou a dizer que a legislação deveria "se aproximar da informalidade".
Na semana passada, sem muito alarde, o governo conseguiu aprovar na Câmara dos Deputados a Medida Provisória (MP) 1.099/22. O substitutivo elaborado pela fiel escudeira do presidente, Bia Kicis (PL-DF), e aprovado pelo plenário da casa criou o Programa Nacional de Prestação de Serviço Civil Voluntário. Para entrar em vigor, a matéria ainda precisa ser aprovada pelo Senado e, por fim, sancionada por Bolsonaro.
Em nota técnica, a Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (Anamatra) afirma que o programa "padece de graves vícios de inconstitucionalidade". Além disso, define a proposta do governo como "um verdadeiro contrato de servidão civil".
Basicamente, ela estabelece que jovens pobres e desempregados com mais de 50 anos poderão ser contratados por prefeituras país afora por até 22 horas semanais - sem vínculo empregatício, com bolsa de metade de um salário mínimo. Além disso, precisarão fazer cursos oferecidos por entidades do Sistema S.
O texto não explica exatamente que funções os virtuais escolhidos para o programa podem desempenhar. Na verdade, só diz o que não podem fazer: atividades insalubres ou perigosas e serviços prestados por servidores contratados por concurso. Caberá a cada município definir como e onde cada pessoa vai trabalhar.
Ideia recicladaA proposta de criar subcategorias de trabalhadores, privados de direitos básicos, já estava contida em outra MP, a 1.045. Aprovada pela Câmara em agosto do ano passado, ela acabou sendo rechaçada pelo Senado.
Na época, a MP 1.045 chegou a ser apelidada de "Nova Reforma Trabalhista". Inicialmente editada para permitir a redução de jornada e de salários devido à pandemia, a MP foi recheada de "jabutis" (medidas estranhas ao conteúdo original) com o objetivo de criar uma série de regimes paralelos ao previsto pela atual legislação.
Um dos programas previstos pela MP 1.045 foi inicialmente concebido com um nome de apelo militar, "alistamento civil voluntário", e desenhado para atrair a atenção da iniciativa privada. Na prática, o governo subsidiaria postos de trabalho baratos em empresas - ironicamente, uma fórmula sem sucesso testada na primeira gestão do ex-presidente Lula.
"Mera exploração"Agora, a ideia do governo Bolsonaro é dinamizar o mercado de trabalho não a partir do setor privado, mas do público. Segundo a Anamatra, o projeto de bancar bolsas sem vínculo empregatício para prefeituras de todo o país está repleto de irregularidades e não passa de "mera exploração de mão de obra irregular e ordinária".
O raciocínio é simples: ao ser obrigado a cumprir uma carga horária mínima de 22 horas semanais, o trabalhador estaria de fato subordinado ao poder público municipal - o que lhe garantiria, portanto, todos os direitos previstos em lei.
Além disso, segundo a política do seguro-desemprego, cursos de qualificação profissional devem ser ofertados sem a exigência de contrapartida em trabalho.
Apesar de o texto aprovado pela Câmara proibir que os eventuais beneficiários do programa sejam alocados em tarefas insalubres e serviços prestados por servidores contratados, não é difícil imaginar prefeituras em dificuldades orçamentárias desrespeitando essas orientações básicas.
Aliás, vai haver fiscalização? O texto remetido ao Senado é bastante lacônico quanto a responsabilidades. Em português claro, diz que compete ao Ministério do Trabalho e Previdência se virar como pode para monitorar o programa.
Se vingar, o mais provável é que o serviço civil voluntário vire uma espécie de salvo-conduto para prefeitos mal-intencionados. Além disso, também é de se esperar um aumento de ações na Justiça por parte de trabalhadores lesados pelo poder público.