Informalidade crescente impõe ampliar o arcabouço de proteção jurídicaEmpreendedorismo, novas formas de contratação, aplicativos, automação, tecnologia, modernidade. O mundo do trabalho na era contemporânea procura ser apreendido e sistematizado a partir de diversas expressões, as quais, para muito além de conceitos, demandam um olhar crítico. Pensar o futuro do trabalho transcende responder à questão sobre se um(a) trabalhador(a) vinculado(a) a plataformas digitais deve ser considerado(a) empregado(a) ou não.
É sustentável defender que as normas trabalhistas em vigor são inadequadas às novas formas de trabalho? Para equacionar a questão, há excesso de pressa e impropriedade jurídica de quem pretende lançar o diagnóstico do anacronismo. Enfrentá-la demanda compreender a autonomia do direito do trabalho como uma ordem de princípios, e não apenas de regras, e encará-la ciente da carga valorativa que carrega conectada aos primados da pessoa humana e da cidadania, com uma proteção endereçada ao trabalho como valor social e não apenas às situações específicas de um contrato de emprego.
Direito ao trabalho e o direito do trabalho, compreendidos a partir de um eixo sistêmico e coerente de uma ordem de princípios, são a única versão compatível com a perspectiva do constitucionalismo democrático de direito, que trata os direitos sociais de conteúdo trabalhista no título dos direitos fundamentais.
Ao contrário de uma lógica de regras, a temática do trabalho humano possui clara feição constitucional, numa perspectiva de princípios, e é essa matriz normativa que deve orientar eventual legislação específica dedicada ao denominado "trabalho 4.0".
E por que falar em marco regulatório quando temos uma Constituição cidadã que trata de forma ampla sobre esse mundo do trabalho? Para se evitar toda a gama de insegurança jurídica que se consolida quando, a cada nova emergência laborai, pretende-se construir marcos regula tórios com nível inferior de proteção. Trata-se de movimento que ganha corpo, na defesa de que são novas formas de contratação do trabalho humano, impulsionado por segmentos econômicos diversos. Em razão disso, reiniciam-se disputas que deveríam estar superadas desde o advento da Constituição de 1988 sobre a presença ou não de requisitos para do contrato de emprego, como pressuposto de proteção jurídica. A proteção constitucional deve atuar para além do emprego.
Novos tempos e novas formas de contratação recolocam velhos temas do mundo do trabalho, traduzidos nas lutas em razão da remuneração insuficiente e do excesso de disponibilidade para o trabalho. São movimentos exploratórios, com comprovação empírica, que se renovam e indicam, cada vez mais, a pertinência da proteção constitucional que se constrói em favor de todos os trabalhadores e trabalhadoras, e não apenas dos empregados.
Como valorizar identidades trabalhistas diversas? Se a resposta não parece simples, ela comporta um ponto de partida hermenêutico claro: a autoaplicabilidade da Constituição, especialmente no tema dos direitos fundamentais, o que inclui os trabalhistas, contribuindo para dar tratamento ao desafio de se diminuir as assimetrias que o próprio sistema de proteção regulado promove.
A proliferação de relações de trabalho mais amplas que as clássicas relações de emprego decorre das mutações em curso no modo de produção capitalista. Levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revela que 41,1% da população ocupada no Brasil (38,4 milhões de pessoas) está no mercado informal, o que inclui, por exemplo, os trabalhadores de aplicativos. Na mesma linha, dados da Pesquisa Nacional de Empregados e Desempregados (Pnad) Contínua Trimestral revelaram aumento de 137,60% no número de motoristas que trabalham por conta própria, entre janeiro e março deste ano, o que representa um incremento de 666 mil novos motoristas.
E é nesse quadro crescente de informalidade que se encontra o grande desafio imposto à doutrina direito do trabalho: ampliar o arcabouço de proteção jurídica, tendo como eixo o primado da constituição democrática. Não há anacronismo diante de velhos temas.
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E por que falar em marco regulatório quando temos uma Constituição cidadã que trata de forma ampla sobre esse mundo do trabalho? Para se evitar toda a gama de insegurança jurídica que se consolida quando, a cada nova emergência laborai, pretende-se construir marcos regulatórios com nível inferior de proteção.
Noemia Porto
Doutora em direito, Estado e Constituição pela UnB, é juíza do Trabalho na 1ª Região (DF e TO) e presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra)