Após um ano do início da pandemia no Brasil algumas questões importantes que surgiram em razão das mudanças causadas pela Covid-19 nas relações de trabalho continuam sem regulamentação e seguem gerando dúvidas, insegurança e muito debate. Dentre muitos outros temas controvertidos que padecem de legislação específica, se destacam o home office, a Covid-19 como doença ocupacional e vacinação dos empregados.
Dados divulgados pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), em 17 de março de 2021, demonstram que a Instituição recebeu mais de 40 mil denúncias relacionadas à Covid-19 entre março de 2020 e março de 20211. E um dos temas de maior controvérsia se relaciona ao pagamento das horas extras para os empregados em home office.
Na cartilha educativa "Teletrabalho - o trabalho de onde você estiver", o TST conceitua o home office como uma espécie da modalidade de teletrabalho2. Logo, apesar de opiniões contrárias, fato é que sendo o home office um termo específico para conceituar o teletrabalho realizado em casa, a ele se aplicando os artigos celetários sobre a matéria.
Por força do artigo 62, inciso III, da CLT, introduzido pela Reforma Trabalhista (lei 13.467/2017)3, empregados em regime de teletrabalho (e, portanto, empregados em home office) estão excluídos das regras relacionadas ao controle de jornada e pagamento de horas extras. No entanto, a temática ainda gera muito debate.
Em 2017, a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA) aprovou o Enunciado 214, que dispõe que, nos casos em que for possível o controle de jornada, ainda que indireto ou por meios informatizados ou telemáticos, o empregador deve pagar pelas horas extras eventualmente laboradas pelos empregados em teletrabalho.
Na mesma linha, em outubro de 2020, o Ministério Público do Trabalho (MPT) editou a Nota Técnica nº 17/20205, com o objetivo de proteção da saúde e demais direitos fundamentais dos empregados em trabalho remoto ou home office, na qual recomendou às empresas a observância da jornada contratual nas atividades em home office, bem como a adoção de mecanismos de controle da jornada nesse regime.
A seu turno, para a jurisprudência trabalhista, caso haja possibilidade de controle da jornada de trabalho por qualquer meio informatizado de comando (celular corporativo, login e logoff de sistema, whatsapp, dentro outros) ou na hipótese de determinação de jornada de trabalho, o empregado em home office terá direito a horas extras.
Atualmente, já existem projetos de lei que se propõem a regulamentar o tema. O PL 5581/2020 apresentado perante a Câmara dos Deputados, por exemplo, dispõe de forma que os empregados em home office não terão direito a horas extras, desde que não haja estabelecimento de jornada no contrato de trabalho. Para os casos de determinação expressa de horário, a empresa deverá realizar controle de horas por qualquer meio idôneo.
Outro aspecto polêmico em relação ao home office se relaciona com a obrigatoriedade de fornecimento de infraestrutura necessária e adequada à prestação de serviços, incluindo acesso à internet, energia elétrica, telefone e mobiliário, bem como fornecimento de equipamentos de proteção e infraestrutura com o propósito de garantir que o ambiente de trabalho remoto esteja em condições ergonômicas adequadas.
Em relação à tal questão, a MP 927/2020, editada para enfrentamento do estado de calamidade pública decorrente do coronavírus, trazia disposição específica sobre a matéria6. O texto legal previa que na hipótese de o empregado não possuir os equipamentos tecnológicos e a infraestrutura necessária e adequada à prestação do serviço em regime de home office, o empregador deveria fornecer os equipamentos em comodato ou pagar pela infraestrutura necessária.
Embora referida MP tenha pedido a validade em 19 de julho de 2020, alguns advogados militam a tese que suas disposições devem ser aplicadas, por analogia, quando há imposição do regime de home office pelo empregador.
O dispositivo legal que atualmente disciplina a matéria é o artigo 75-D da CLT7, também incluído pela Reforma Trabalhista de 2017, que dispõe que no teletrabalho referidas utilidades devem estar previstas no contrato de trabalho ou aditivo contratual, não havendo disposição sobre a responsabilidade pelo fornecimento de tais insumos pelo empregador. De acordo com a lei, portanto, desde que mediante ajuste escrito, os custos podem ser divididos entre empregado e empregador, ou, ainda, custeados por apenas uma das partes.
Apesar de referida disposição legal, existe uma corrente doutrinária que defende que, tratando-se de ferramenta de trabalho, seus custos deveriam correr por conta do empregador, em razão do princípio da alteridade que deve reger a interpretação do artigo 75-D da CLT. Nesta linha, dispõe a ANAMATRA que as despesas com teletrabalho devem ser suportadas exclusivamente pelo empregador8, uma vez que o empregador não pode transferir ao empregado os custos dessa modalidade de prestação de serviços.
Por sua vez, na Nota Técnica nº 17/20209, o MPT orienta que as empresas devem observar os parâmetros de ergonomia para empregados em home office, "oferecendo ou reembolsando os bens necessários ao atendimento dos referidos parâmetros, nos termos da lei".
Em recente julgado da 3ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 2ª Região, em processo movido em face da Gol Linhas Aéreas S/A (Processo 1000197-66.2018.5.02.0020)10, o Colegiado entendeu que as despesas para o trabalho em home office - como uso de espaço físico, energia elétrica, internet, material de trabalho em geral, computador e mobiliário de escritório - podem estar incorporadas ao salário pago, desde que isso esteja expressamente previsto em aditivo no contrato de trabalho.
Para resolver o impasse, o já citado PL 5581/2020 propõe que as empresas que optarem pelo teletrabalho de modo integral deverão fornecer os equipamentos de proteção e infraestrutura com o propósito de garantir que o ambiente esteja em condições ergonômicas adequadas; ou, de forma alternativa, pagar indenização correspondente. Já o fornecimento da infraestrutura necessária e adequada à prestação de serviços, incluindo acesso à internet, energia elétrica, telefone e mobiliário, seria facultativo.
Outros temas que margeiam o home office permanecem controvertidos diante da ausência de legislação específica, como os que se relacionam ao reconhecimento do acidente de trabalho ou doença ocupacional no âmbito da residência, direito à desconexão, garantia à privacidade e intimidade, enquadramento sindical, tratamento da jornada de trabalho do modelo híbrido, dentre outros.
A ausência de norma legal para regulamentação da matéria tem gerado incerteza e dificuldade no planejamento das atividades por parte das empresas que se utilizam do home office.
Mas não apenas as questões sobre home office foram provocadas pela pandemia. Uma temática que passou a gerar muita discussão em 2020 se relaciona com a caracterização ou não da Covid-19 como doença ocupacional.
De acordo com dados da Secretaria Especial de Previdência e Trabalho11, a Covid-19 já ocupa o terceiro lugar no ranking dos principais motivos de afastamento dos profissionais no trabalho e foram concedidos 37.045 auxílios-doença em decorrência da infecção por coronavírus em 2020.
A controvérsia sobre a Covid-19 ser ou não doença ocupacional teve início em abril de 2020, quando o Supremo Tribunal Federal (STF)12 suspendeu a eficácia do artigo 29 da MP 92713, que estabelecia que a Covid-19 apenas seria considerada doença ocupacional no caso de comprovação de nexo causal entre a doença e o trabalho desempenhado. A derrubada do referido dispositivo deu margem para interpretação de que a Covid-19 seria presumidamente caracterizada como ocupacional.
Em 1º de setembro de 2020, o Ministério da Saúde editou a Portaria nº 2.309, incluindo a Covid-19 na Lista de Doenças Relacionadas ao Trabalho e, no dia seguinte, cancelou os efeitos da norma, evidenciando a insegurança jurídica associada ao assunto.
A questão ganhou ainda mais relevância em 11 de dezembro de 2020, quando o MPT editou a Nota Técnica nº 20/202014, com o objetivo de promover e proteger a saúde do trabalhador, passando a considerar a Covid-19 como doença ocupacional e a exigir a emissão de Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT) para qualquer contaminação de empregados pela Covid-19.
Em seguida, o Ministério da Economia divulgou a Nota Técnica - SEI nº 56.376/2020/ME15, reconhecendo que a Covid-19 pode ser definida como doença ocupacional apenas quando resultar das condições especiais em que o trabalho é executado e com ele se relacionar diretamente.
Diferentemente do entendimento do MPT, o Ministério da Economia defende que cabe à Perícia Médica Federal do INSS identificar a existência de nexo causal entre o trabalho e o contágio, não reconhecendo, portanto, a presunção em favor do empregado de que a doença resulta da atividade laboral do indivíduo. Com todo respeito a entendimentos contrários, essa nos parece ser a posição mais adequada.
A Lei nº 8.213/91, que define o que é doença profissional e ocupacional, não considera como doenças relacionadas ao trabalho aquelas originadas de contextos endêmicos, a não ser que seja comprovado que a contaminação ocorreu em função de exposição decorrente diretamente do ambiente de trabalho16. Nesta perspectiva, como parte da jurisprudência entende que a Covid-19 é considerada uma doença endêmica, a Covid-19 apenas poderia ser considerada como doença do trabalho na hipótese de comprovação do nexo causal entre a doença e as atividades desenvolvidas.
Logo, justamente em razão da preocupação da sociedade em prevenir e frear a propagação da Covid-19, inclusive no ambiente corporativo, em 2021 todas as atenções se voltaram ao Plano Nacional de Vacinação. Para os efeitos trabalhistas, referida preocupação se materializou no debate originado em torno da possibilidade de imposição de sanções aos empregados que se recusarem a tomar a vacina.
Em 17 de dezembro de 2020, o STF decidiu que a União, os Estados e os Municípios poderiam estabelecer a compulsoriedade da imunização e impor restrições para quem decidir não se vacinar17. Seguindo o mesmo raciocínio, iniciou-se grande debate sobre a vacinação obrigatória ser condição para os empregados retornarem ou iniciarem o trabalho presencial.
Para o MPT, por meio do Guia Técnico Interno sobre Vacinação editado em 28 de janeiro de 202118, salvo situações excepcionais e plenamente justificadas (v.g., alergia aos componentes da vacina e contraindicação médica), não há direito individual do trabalhador a se opor à vacinação, desde que a vacina esteja aprovada pelo órgão competente (ANVISA), seja prevista no plano nacional de vacinação ou tenha sua aplicação obrigatória determinada em lei e conste das ações das empresas. Nesse contexto, se houver recusa injustificada do empregado à vacinação, observados os pressupostos incluídos no referido Guia, incluindo o direito ostensivo à informação, a empresa poderia aplicar, em último caso, a demissão por justa causa.
Sobre o tema, em entrevista para a Folha de São Paulo19, a Ministra Presidente do TST, Maria Cristina Peduzzi, afirmou que "É difícil enquadrar como justa causa a recusa do empregado à vacinação, mas não se deve ignorar que a lei impõe ao empregador manter ambiente de trabalho saudável".
A Constituição Federal, no artigo 7º, inciso XXII, garante como direito dos trabalhadores a "redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança", motivo pelo qual nos filiamos à corrente que dispõe que as empresas não só podem, como devem garantir um ambiente de trabalho salubre, por meio de adoção de regras e protocolos de segurança para prevenção e redução do contágio pelo coronavírus, incluindo programa específico acerca da obrigatoriedade de vacinação, com imposição de sanções aos que recusarem a tomar a vacina de maneira injustificada.
Em 2020, já falávamos na urgência na flexibilização das normas trabalhistas diante da Covid-19. Um ano depois, renovamos as mesmas expectativas e insatisfações diante da ausência de avanço legislativo.
Não é demais lembrar que o artigo 8º da CLT dispõe que na hipótese de ausência de lei, as autoridades administrativas e as Cortes Trabalhistas devem considerar a preponderância do interesse público sobre o privado. Portanto, enquanto os temas polêmicos ora tratados não sejam objeto de legislação específica, justamente em razão do clamor público de se manter os empregos e atenuar os reflexos econômicos e sociais decorrentes da pandemia da Covid-19, fixamos nossa posição de premência do reconhecimento da possibilidade de se flexibilizar os direitos trabalhistas, em especial por meio de acordos entre empregado e empregador, como mecanismo de preservação do interesse público e da continuidade da atividade empresarial no país.
*Valéria Wessel S. Rangel de Paula é head da área trabalhista do Castro Barros Advogados. Graduada pela Faculdade de Direito no Mackenzie. Pós-graduada em Direito do Trabalho pela PUC/SP e com MBA Executivo em Gestão Estratégica e Econômica de RH, na FGV.