Um dos meios retóricos mais comuns dos dias de hoje é acusar os adversários dos crimes que o acusador se compraz em praticar. Os que criticam o denominado ativismo judicial são os que mais se dedicam a praticá-lo sem rebuços. Por isso, um dos pontos mais inquietantes do voto do Ministro Gilmar Mendes no julgamento ADC 58, ADC 59, ADI 5.867 e ADI 6.021 é aquele que o próprio relator destacou na página 27 do seu voto:
Além de afastar a constitucionalidade da TR, a Corte Superior Trabalhista optou por substituir o legislador e eleger uma sistemática de atualização monetária, com a incidência de índice de correção monetária mais juros de mora, que não guarda compatibilidade com o nosso ordenamento jurídico.
Por que a incidência de correção monetária mais juros de mora não guardaria compatibilidade com nosso ordenamento jurídico? Por que o TST teria usurpado poderes do Legislativo?
Essas afirmações têm sido alhures lançadas sem nenhuma fundamentação e apenas para justificar um ponto de vista contrário ao do TST. Até o próprio relator na tabela 1 constante de seu voto demonstra que todos os tribunais pesquisados utilizam essa mesma metodologia (correção monetária + juros). Acima de tudo: apenas o TST é acusado de se substituir ao legislador (ativismo), mas não se deu nenhuma importância ao fato de que todos os tribunais cíveis mencionados na decisão determinam a incidência de correção monetária sobre os seus débitos judiciais sem que exista uma lei específica que estabeleça critério (índice) da correção monetária a ser aplicado. Por que o "ativismo" de uns é louvado e o de outros criticado? Isso seria inexplicável não estivesse explícita a incorreta suposição de que, com o IPCA-e, os créditos trabalhistas seriam remunerados de forma muito superior aos demais débitos judiciais cíveis.
Uma análise do voto do Relator indica que a decisão vencedora se baseia nas seguintes premissas:
a) a incidência de correção monetária mais juros de mora não é compatível com o ordenamento jurídico. Essa afirmação, entretanto, deveria ser demonstrada, pois todos os tribunais, conforme demonstra o próprio voto do relator, cumulam correção monetária com juros na atualização dos débitos judiciais;
b) o TST se substituiu ao legislador ao determinar que a correção monetária trabalhista deveria corresponder ao IPCA-e. Segundo o voto, não se pode, a pretexto de corrigir uma inconstitucionalidade, incorrer-se em outra (p. 44 do voto do relator). Essa afirmação não explica por que razão o próprio STF e todos os tribunais cíveis fixam critérios de correção monetária (geralmente IPCA-e ou INPC e em alguns casos a média desses dois critérios) sem nenhuma previsão legislativa. Só não é bom o "ativismo" do TST;
c) o STF ao julgar a ADI 5.348 declarou inconstitucional a aplicação da TR como fator de correção das dívidas do Estado, "uma vez esse mesmo Estado, na condição de credor, tinha seu crédito corrigido por índice mais vantajoso" e, de fato, o STF tem entendido pela impossibilidade de utilização da TR como critério de correção monetária (p. 38 do voto do relator);
d) a especificidade dos débitos trabalhista afasta a aplicação da mesma lógica aplicada na ADI 5.348 e outras decisões do STF, pois nestas se discute a correção dos precatórios (Ação Cautelar 3764 MC/DF), em que foi determinada a aplicação do IPCA-e. A decisão não explica quais seriam as especificidades que exigem que os valores aos trabalhadores devam ser corrigidos por critérios mais desvantajosos dos que os aplicados às instituições financeiras e aos credores da Fazenda Pública.
É curioso que, depois de todas essas incoerências, o voto do relator aponte uma solução muito razoável, ao assinalar o seguinte:
Em termos bastante objetivos: não se pode, a pretexto de corrigir uma inconstitucionalidade, incorrer-se em outra. Valendo-se da técnica de interpretação conforme à Constituição, a proposta que trago à colação é a de que, uma vez afastada a validade da TR, seja utilizado, na Justiça Trabalhista, o mesmo critério de juros e correção monetária utilizado nas condenações cíveis em geral. (p. 44).
Tudo indicava que a lógica seria finalmente restabelecida e as Luzes prevaleceriam. De fato, basta aplicar o mesmo critério das condenações cíveis e, então, tudo estaria resolvido em favor da isonomia e os trabalhadores não seriam tratados como subcidadãos. Para nosso espanto, todavia, a partir daquelas premissas o relator apontou o seguinte cenário, que reputou, sem mais delongas, o mais correto:
Cenário 3: Aplicar os mesmos índices de correção monetária e de juros vigentes para as condenações cíveis em geral, quais sejam a incidência do IPCA-E na fase pré-judicial e, a partir da citação, a incidência da SELIC. Essa opção consideraria que, diante da declaração total ou parcial de inconstitucionalidade da TR, dever-se-ia aplicar às condenações trabalhistas o art. 406 do Código Civil, que é utilizado nas condenações cíveis em geral. (p. 51).
É difícil compreender como o relator chegou à conclusão de que os débitos cíveis na fase judicial são corrigidos apenas pela SELIC. A rigor SELIC não é critério de correção monetária, mas juros de mora. O fato de se entender aplicável a SELIC para determinados débitos não constitui razão para afastar a correção monetária. De qualquer modo, a tabela que o relator elaborou nas fls. 46-49 por si só comprova que em todas as áreas é utilizada correção monetária mais juros de mora, a maioria IPCA-e mais poupança.
A decisão do STF seria absolutamente coerente se aplicasse de fato os critérios de correção monetária e de juros de mora utilizados nas condenações cíveis em geral, que, curiosamente, são os mesmos apontados pelo TST. A partir desse ponto, entretanto, o relator utilizou uma consciente "técnica" de confundir correção monetária com juros de mora para se concluir que até o ajuizamento das ações trabalhistas seria devida apenas correção monetária pelo IPCA-e (com base em que lei?) e que a partir do ajuizamento seriam devidos apenas os juros de mora equivalentes à Selic (com base em que lei?).
Não é acidental que se utilize como argumento a necessidade de que os débitos trabalhistas sejam calculados pelos mesmos critérios dos débitos cíveis para, ao final, fixar-se critério pelo qual os débitos trabalhistas serão corrigidos por índice muito inferior aos débitos cíveis. Substituiu-se um ativismo por outro segundo a própria lógica adotada no voto vencedor, mas com o objetivo explícito de reduzir artificialmente os créditos dos trabalhadores.
2. DIFERENÇA ENTRE JUROS E CORREÇÃO MONETÁRIA
Já tivemos oportunidade de demonstrar que juros de mora e correção monetária não se confundem, embora isso por vezes seja esquecido na técnica legislativa e, como se vê, por alguns membros do STF.
A correção monetária nada mais é do que mera atualização da coisa em si. Se qualquer tipo de débito não for atualizado monetariamente, perderá seu valor monetário de troca e, por isso, será imposto prejuízo ao credor, mecanismo usual para impor desigualdade entre os participantes das relações jurídicas. É isso, afinal, o que fez o STF.
A correção monetária tem previsão constitucional (§ 20 do art. 100; arts. 33 e 57 do ADCT) e sua isenção é exceção em nosso sistema constitucional, conforme se pode ser no § 3º do art. 47 do ADCT. O CPC (§ 1º do art. 322; art. 491; inciso II do art. 524; parágrafo único do art. 798, entre outros) também estipula a inclusão de correção monetária e juros aos débitos. A inexistência de lei específica que estipule qual fator de correção monetária deve ser aplicado nunca constituiu impedimento para que os tribunais determinassem a correção dos débitos judiciais.
O STF em várias outras decisões reconheceu que o mecanismo da correção monetária possui ligação direta com a inflação, fenômeno ao qual está intrinsecamente conectado. Exemplo disso é o seguinte excerto:
[ ] 4. A correção monetária e a inflação, posto fenômenos econômicos conexos, exigem, por imperativo de adequação lógica, que os instrumentos destinados a realizar a primeira sejam capazes de capturar a segunda, razão pela qual os índices de correção monetária devem consubstanciar autênticos índices de preços. 5. Recurso extraordinário parcialmente provido. (STF, Pleno, RE 870947/SE, Rel. Min. Luiz Fux, j. 20/9/2017, DJe-262, 20/11/2017).
Essa lógica, pelo que se verifica pela maioria formada no STF no julgamento ora examinado, só não se aplica quando se trata de corrigir os créditos dos mais pobres. Não há a menor dúvida de que a ausência ou deficiência dos mecanismos de atualização monetária, em um País altamente indexado como o Brasil, constitui um meio ilícito de apropriação do patrimônio dos credores, daí por que o próprio Supremo Tribunal Federal, em relação a credores mais privilegiados, entendeu que há violação ao direito de propriedade ao se instituir a TR como critério de atualização, porque em realidade essa taxa não possui estrutura que permita repor a perda inflacionária.
Embora o conceito de juros seja objeto de grande controvérsia, em virtude de sua aplicação multifacetada, insistimos na afirmação de que os juros podem "ser conceituados como vantagem que uma pessoa tira da inversão de seus capitais, ou o que se recebe do devedor como paga ou compensação pela demora no pagamento do que lhe é devido". Há teorias que associam juros a penalidade, mas esse aspecto é irrelevante para esta análise, porquanto, por qualquer dessas perspectivas, os juros de mora não se confundem com a correção monetária e sempre foram computados cumulativamente, ao contrário do insinuado no voto do relator.
O recebimento de juros, portanto, não visa recompor perda inflacionária, como quer fazer crer a decisão do STF, mas apenas constitui remuneração pela ilícita retenção do capital. Não há nenhum sentido em cessar a correção monetária a partir do ajuizamento de uma ação judicial, o que só favorecerá a enorme judicialização dos débitos trabalhistas, como também o prolongamento das ações ajuizadas.
Tanto é verdadeira a discrepância e o erro lógico do julgamento que, nos débitos judiciais cíveis, mesmo depois do ajuizamento da ação, são cobrados correção monetária e juros de mora cumulativamente.
*José Aparecido dos Santos, mestre e doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Juiz do Trabalho aposentado. Diretor de Aposentados da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho, autor do livro Curso de Cálculos de Liquidação Trabalhista. Advogado