Respostas sobre a responsabilidade civil do empregador, frente aos riscos presentes no ambiente de labor
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Hoje, sexta-feira, é dia de mais um capítulo do projeto Dúvida Trabalhista? Pergunte ao Professor! dedicado a responder às perguntas dos leitores do JOTA, sob a Coordenação Acadêmica do professor de Direito do Trabalho e mestre nas Relações Trabalhistas e Sindicais, dr. Ricardo Calcini.
O projeto tem periodicidade quinzenal, cujas publicações são veiculadas sempre às sextas-feiras. E a você leitor que deseja ter acesso completo às dúvidas respondidas até aqui pelos professores, basta acessar o portal com a #pergunte ao professor.
Neste episódio de nº 51 da série, a dúvida a ser respondida é a seguinte:
Pergunta ► É possível ocorrer acidente do trabalho em caso de teletrabalho nômade?
Resposta ► Com a palavra, o professor Antonio Capuzzi.
Segundo o artigo 3º, alínea c, da Convenção 155, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a expressão local de trabalho abarca todos os lugares onde os trabalhadores devem permanecer ou onde têm de comparecer e que estejam sob o controle, direto ou indireto, do empregador.
No caso do teletrabalhador nômade, a questão da responsabilidade civil do empregador, frente aos riscos presentes no ambiente de labor, reflete sérias discussões.
Nessa perspectiva, o conteúdo trazido pela referida Convenção Internacional perde sentido, pois torna-se impraticável quando o trabalhador se ativa em local sem controle direto ou indireto patronal, como shoppings centers, cafeterias, entre outros.
Em vista disso, para fins de teletrabalho, local de trabalho é toda a área em que o trabalho é realizado, independentemente de controle mínimo pelo empregador, consoante prevê a Norma Regulamentadora nº 1, do atual Ministério da Economia[1].
Apresenta-se o meio ambiente como gênero, do qual é espécie o meio ambiente do trabalho que, por sua vez, ramificado, dá origem ao meio ambiente do teletrabalho. O ambiente telelaboral é composto por aspectos materiais e imateriais.
Por ambiente(s) material(is) compreende(m)-se o(s) espaço(s) físico(s) onde o trabalho é executado, tais como o domicílio do trabalhador, shoppings, cafeterias, telecentros etc., ao passo que ambiente imaterial, ou seja, o ciber em que se executa o labor, consubstanciado em ambiente(s) simulado(s) virtual(is), consiste em transações, relacionamentos e o próprio intelecto laboral utilizado para o contato com o empregador.
É dizer: o ambiente imaterial é um mundo que está em toda parte e, ao mesmo tempo, em lugar nenhum, local em que o físico humano não alcança[2].
Reconhecida a condição de existência do meio ambiente telelaboral, o empregador responsabiliza-se pela sua manutenção hígida e salubre, consoante leitura conjunta dos artigos 225, caput e parágrafo 3º, 200, inciso VIII, e 7º, inciso XXII, todos da Constituição Federal.
A Constituição Federal defere aos empregados o direito à redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança (artigo 7º, inciso XXII).
A referida contenção de riscos deve-se dar, primordialmente, por meio do cumprimento das normas de segurança e medicina do trabalho (artigo 157, I, da CLT) e pela instrução dos empregados, pelo empregador, quanto às precauções a tomar no sentido de evitar acidentes do trabalho ou doenças ocupacionais (artigo 157, II, da CLT).
Percebe-se que houve preocupação legislativa quanto ao acautelamento patronal em face de acidentes do trabalho típicos (acidentes do trabalho) e acidentes do trabalho atípicos (doenças ocupacionais).
Em se tratando de teletrabalho, o Texto Celetista atribui ao empregador o dever de instruir o empregado, expressa e ostensiva, quanto às precauções a tomar a fim de evitar doenças e acidentes de trabalho (artigo 75-E, caput, da CLT Lei nº 13.467/17), observado o acautelamento patronal citado acima.
À luz da CLT, a instrução ao teletrabalhador deve qualificar-se como expressa e ostensiva. A conjunção aditiva e se mostra de singular importância, pois informar expressa e ostensivamente significa permitir a compreensão ou dar conta de algo que se mostre compreensível pelo empregado, revestida de orientação que não admite dúvidas por conta daquele que a recebe[3].
Por sua vez, o parágrafo único do artigo 75-E da CLT, incluído pela Lei nº 13.467/17, preceitua que é dever do empregado assinar o termo de responsabilidade comprometendo-se a seguir as instruções fornecidas pelo empregador.
A normativa se afina com o previsto no artigo 158, I, da CLT, atribuindo aos empregados o dever de observar as normas de segurança e medicina do trabalho, mormente quanto às precauções a tomar no sentido de evitar acidentes ou doenças ocupacionais.
É preciso salientar que a simples assinatura, por parte do trabalhador, do termo de responsabilidade em que se compromete a seguir as instruções fornecidas pelo empregador, por si só, não exime a empresa de eventual responsabilidade por danos decorrentes dos riscos ambientais do teletrabalho, nos termos do enunciado nº 72, da 2ª Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho (Anamatra).
A priori, registre-se que a regra, disposta no artigo 75-E, caput, da CLT (Lei nº 13.467/17), não tem o condão de restringir o conteúdo veiculado no artigo 158, I, da CLT, visto ser esta regra geral, ao passo que aquela representa regra especial.
Assentada tal premissa, é de salutar importância relembrar que deve o empregador cumprir e fazer cumprir normas relacionadas à saúde, higiene e segurança no trabalho.
O verbo cumprir remete à ideia de execução perfeita, de submissão irrestrita aos dispositivos normativos legais e infralegais que abordam questões laborais. Desempenhar tal desiderato pressupõe efetiva fiscalização patronal acerca das condições em que o trabalho está sendo desempenhado.
No teletrabalho nômade ou móvel, a prestação do labor dar-se-á em diversos locais que não o domicílio do trabalhador ou o perímetro físico empresarial. Poderá, pois, ocorrer em shoppings, cafeterias, praças, dentre outros locais públicos ou privados.
A partir disso, as perguntas levantadas são: qual é o ambiente telelaboral de responsabilidade patronal no teletrabalho nômade/móvel, com o fito de reduzir riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança, conforme exigência do artigo 7º, XXII, da CF? Em havendo infortúnio que acometa o teletrabalhador, poderá ser imputada alguma responsabilidade ao empregador?
Pelo alcance das novas tecnologias e pela natureza da atividade desenvolvida pelo teletrabalhador móvel, resulta difícil estabelecer parâmetros objetivos que permitam parametrizar os contornos específicos do meio ambiente telelaboral.
Isso porque a margem de flexibilidade do teletrabalhador autoriza a realização de telesservicos sem horário preestabelecido, em qualquer momento do dia ou da noite e, em especial, sem determinação do local exato de prestação de labor[4].
Sem embargo, a ativação telelaboral, por meio de programa telemático que possua como mecanismo o controle de tempo de conexão do trabalhador, traria melhores parâmetros para coadjuvar o caráter acidentário/ocupacional de eventual contingência sofrida[5].
De todo modo, não menos certo é que, via de regra, o desempenho do teletrabalhador é aferido por produção e, não necessariamente, pelo número de horas trabalhadas ou de conexão permanente com a empresa, sendo importante fator de desestímulo empresarial a sua implantação.
Assim, a saída é levar em conta a tipologia e a natureza do infortúnio que possua relação direta com as atividades cotidianamente praticadas pelo teletrabalhador (presunção legal oriunda do nexo técnico epidemiológico). Ou seja, parte-se para a avaliação de patologias próprias que acometem o teletrabalhador em questão, respeitando sempre a análise de cada caso concreto.
A doutrina espanhola, acertadamente, sugere os registros dos períodos de conexão (se necessário para o trabalho) e a informação ao empregador, de tempo em tempo, dos lugares em que se pretende desempenhar o teletrabalho, de modo que seria possível a verificação do acidente do trabalho por presunção, se verificado infortúnio no curso do trajeto informado[6].
Assim não agindo, assume o empregador o risco de ser considerado ambiente telelaboral todo local em que se encontre o teletrabalhador ativando-se em prol da empresa, mesmo sem o conhecimento prévio do empregador[7].
Na ausência de registros, considera-se que o teletrabalhador nômade está em missão do cumprimento dos deveres contratuais em cada local em que se ativar e, sobrevindo infortúnio, é possível verificar o que a doutrina espanhola denomina de acidente em missão, conceituado como o sofrido pelo trabalhador num ato de deslocamento ou durante a permanência exigidos para o cumprimento dos deveres contratuais ou uma ordem do empregador, em local geográfico distinto do seu trabalho habitual[8].
No particular, ainda que o teletrabalhador não esteja atendendo a ordem expressa patronal, naturalmente far-se-á presente em algum lugar para se ativar telelaboralmente, em benefício empresarial, pelo que se enquadra na definição de acidente em missão[9].
Não destoa disso a doutrina francesa ao aludir que, no caso de teletrabalhadores nômeades ou móveis, presume-se que o acidente de um empregado em missão se configura como acidente do trabalho durante um ato profissional ou um ato da vida cotidiana, cabendo ao empregador contestar a natureza profissional do acidente a fim de demonstrar que o trabalhador extrapolou sua autoridade, realizando ato sem relação com as atividades citadas[10].
Destaque-se a importância das convenções coletivas e dos acordos coletivos de trabalho na regulamentação dos trajetos a serem percorridos pelo teletrabalhador móvel, com delimitações específicas a respeito, especialmente à luz do preceito que consagra o teletrabalho como uma das matérias a serem abordadas pelas normas coletivas (artigo 611-A, VIII, da CLT incluído pela Lei nº 13.467/17)[11].
Pautada a premissa da possibilidade de haver acidente em missão, há de se elucidar a questão com exemplos.
Imaginemos o caso de um teletrabalhador que se ativa, diariamente, por escolha própria, em uma praça de alimentação de um shopping. O assento e a mesa utilizada para o trabalho não respeitam os parâmetros de conforto ergonômico previstos na Norma Regulamentadora nº 17, do Ministério da Economia.
Após algum tempo desempenhando a função, submetido a condições anti-ergonômicas, o trabalhador apresenta sintomas de desenvolvimento de doença lombar em decorrência de má postura.
Prima facie, há que se argumentar que, por se tratar, o shopping, de local público, naturalmente o empregador não detém qualquer poder de ingerência sobre a disposição dos assentos e mesas utilizadas pelo trabalhador, bem como acerca da qualidade destes.
Além disso, por se tratar de teletrabalhador nômade, desvinculado está o empregador de qualquer responsabilidade que haveria de lhe ser imposta, justamente em vista da dificuldade de verificar qual(is) local(is) estaria(m) sendo utilizado(s) para o labor. A constatação natural, portanto, é pela ausência de qualquer responsabilidade civil do empregador por eventuais infortúnios que acometam o trabalhador.
A Constituição Federal, em seu multicitado artigo 7º, XXII, prevê que é direito do trabalhador a redução dos riscos inerentes ao trabalho por meio de normas de saúde, higiene e segurança. Lado outro, trata-se de dever do empregador, uma vez que é o principal responsável pela higidez do meio ambiente do trabalho.
Com efeito, a redução de riscos inerentes ao labor perpassa, inegavelmente, pelo acesso patronal ao(s) ambiente(s) em que será(ão) desenvolvido(s) o trabalho, pois, em nenhum momento, o Texto Constitucional registra atenuante para casos envolvendo o teletrabalhador, especialmente aquele caracterizado como nômade/móvel.
Desse modo, mesmo em se tratando de teletrabalho nômade/móvel, o empregador não tem a prerrogativa de utilizar-se dos serviços do trabalhador, obtendo o bônus com o resultado da produtividade, sem zelar por um meio ambiente de trabalho salubre e hígido, conforme determina a Lei Maior.
Não se trata, em absoluto, de impor responsabilidade a qualquer custo ao empregador; ao revés, significa buscar interpretação consentânea do preceito constitucional, com a força normativa que dele decorre, às novas tecnologias presentes no mundo do trabalho e do emprego.
A redução dos riscos inerentes ao trabalho, no caso do teletrabalho nômade/móvel, pode ser perfectibilizada via autorização pelo empregador dos locais em que o teletrabalhador está autorizado a desempenhar o seu mister, com o compromisso expresso deste mediante assinatura de termo de compromisso.
Por exemplo, caso o trabalhador pretenda se ativar em determinada cafeteria, deve o empregador, seguramente, analisar a priori o local e autorizar a prestação do trabalho caso julgue que as condições de saúde e segurança do trabalho serão respeitadas.
Em suma, no teletrabalho nômade/móvel os locais de prestação de labor deverão ser previamente informados ao empregador que, por sua vez, deve fiscalizar o ambiente telelaboral a fim de certificar as condições de saúde e segurança do trabalho.
Caso haja o estabelecimento dos locais de trabalho e o empregado desrespeite o acordado, eventual infortúnio sofrido não será imputado ao empregador, por presente culpa exclusiva da vítima.
De outro lado, caso não sejam estipulados pontos de ativação telelaboral entre empregado e empregador, este assume o risco de engendrar aquele em qualquer local de trabalho que potencialmente possa gerar dano ao trabalhador (praças, shopping centers, hotéis), descurando por completo a imposição de redução de riscos inerentes ao trabalho, prevista constitucionalmente, a atrair a aplicação da responsabilidade objetiva pela degradação do ambiente telelaboral (artigo 14, parágrafo 1º, da Lei nº 6.938/81).
Enfim, nesta última hipótese, sobrevindo reclamação trabalhista em que se postule indenização por dano extrapatrimonial[12], em face de acidente de trabalho atípico (doença ocupacional), a realização da perícia para a constatação do nexo de causalidade dar-se-á de modo qualitativo, sujeita a prova em contrário quanto às condições qualitativamente previstas ou declaradas pelo autor na petição inicial[13].
O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
[1] BRASIL. Norma Regulamentadora nº 1. Disposições gerais. Portaria MTb nº 3.214, de 08 de junho de 1978. Disponível em: . Acesso em: 18 de dezembro de 2019.
[2] BARLOW, John Perry. A Declaration of the Independence of Cyberspace. Electronic Frontier Foundation. Davos, Switzerland. February 8, 1996. Disponível em: . Acesso em: 20 de dezembro de 2019.
[3] EXPRESSA. In: DICIO, Dicionário Online de Português. Porto: 7Graus, 2019. Disponível em: . Acesso em: 29 de dezembro de 2019.
[4] PENALVA; GONZALÉZ-CONDE, Alejandra Selma; Miguel Ortiz. El accidente de trabajo en el teletrabajo. situación actual y nuevas perspectivas. Temas laborales: Revista andaluza de trabajo y bienestar social, n. 134. 2016, p. 129-166. Disponível em: . Acesso em: 02 de fevereiro de 2020.
[5] PENALVA; GONZALÉZ-CONDE, Op. Cit., 2016
[6] PENALVA; GONZALÉZ-CONDE, Op. Cit., 2016.
[7] GARZÓN; RAMÍREZ, Carmen Jover; Ma José Cervilla. Teletrabajo y delimitación de las contingencias profesionales. Revista Internacional y Comparada de relaciones laborales y derecho del empleo. v. 3, n. 4, oct./dic, 2015, p. 1-29.
[8] SUÁREZ, Mario A. Castellano. El accidente laboral en mision. Espanha: Revista ciência jurídica (LPGC). n. 03, 1998, p. 388-396. Disponível em: . Acesso em: 02 de fevereiro de 2020.
[9] Em sentido contrário, a doutrina de Raquel Poquet Català, enquadrando como acidente in itinere telelaboral: Es decir, se trata de determinar qué consideración cabe dar a los accidentes sufridos por los teletrabajadores que, aprovechando las facilidades que ofrecen las nuevas tecnologías de la comunicación y de la información para poder teletrabajar, y que por diversas razones personales o familiares, deciden prestar sus servicios en varias dependencias, sufren un accidente en el trayecto entre dichos centros. () De las dos posibilidades accidente en misión o accidente in itinere que caben para calificar estos sucesos, según la construcción judicial y jurisprudencial no entraría dentro del concepto de accidente en misión, pues no se trata de desplazamientos realizados en interés de la empresa o que forman parte del trabajo del teletrabajador, sino que más bien se trata de desplazamientos realizados por interés personal del propio trabajador.. CATALÀ, Raquel Poquet. Accidente de trabajo in itinere en el teletrabajo: su difícil conjunción. México: Revista Internacional y Comparada de relaciones laborales y derecho del empleo. v. 5, n. 4, oct./dic, 2017, p. 41-57.
[10] RAVALEC, Cabinet. Accidents du travail et télétravail: quelle responsabilité pour lemployeur? France: Village de la Justice. Lundi 17 mars, 2003. Disponível em: . Acesso: 03 de fevereiro de 2020.
[11] GARZÓN; RAMÍREZ, Op. Cit., 2015.
[12] Sobre os danos extrapatrimoniais, o Professor Maurício Godinho Delgado diz que: () o art. 223-A menciona que à matéria enfocada no referido título II-A (danos extrapatrimoniais) aplicam-se apenas os dispositivos deste título. Mas a interpretação lógico-racional, sistemática e teleológica do preceito legal demonstra, às escâncaras, que há um conjunto normativo geral mais forte, superior, dado pela Constituição de 1988 e pelas normas internacionais de direitos humanos vigorantes no Brasil, que incide, sem dúvida na regulação da matéria abrangida por esse título especial agora componente da Consolidação. Ademais, havendo alguma necessidade de integração jurídica, incidem, sim, as regras sobre indenizações por dano moral insculpidas no Código Civil Brasileiro e em outros diplomas normativos da República, respeitada a compatibilidade de tais regras externas com os princípios e a lógica jurídica estrutural da Consolidação das Leis do Trabalho (art. 8º, caput e par. 1º, CLT). A propósito, o próprio art. 223-F, caput e parágrafos 1º e 2º, refere-se, de passagem, à indenização por dano material, mas sem fornecer qualquer critério para a sua avaliação e o seu cômputo- circunstância que demonstra óbvia lacuna normativa, tornando essencial a integração jurídica com respeito às regras do Código Civil de 2002. (DELGADO; DELGADO, Op. Cit., 2018, p. 147).
[13] FINCATO, Op. Cit., 2008.
Antonio Capuzzi