JUDICIÁRIO
BRASIL
A condenação em segunda instância volta a ser discutida, mas a nova versão do projeto quer incluir no bolo os processos trabalhistas e tributários
André Siqueira e João Pedroso de Campos
Depois de semear muita controvérsia, o debate sobre a execução de pena na segunda instância parecia encerrado em novembro de 2019, quando o Supremo Tribunal Federal determinou que isso só seria possível após o trânsito em julgado do processo. Diante da repercussão negativa da decisão, que colocou em liberdade detentos graúdos como o ex-presidente Lula, o presidente do STF, Dias Toffoli, levantou a hipótese de o Congresso mudar o entendimento a partir da aprovação de emenda à Constituição. Menos de um ano depois, a sugestão se materializou em uma PEC, que terá prioridade para entrar na pauta assim que o Congresso retomar as sessões presenciais (as previsões mais otimistas falam em agosto).
Em vez de ser uma boa notícia, o negócio virou um exemplo de emenda que saiu pior que o soneto. Na versão atual da proposta, além dos processos criminais, a PEC propõe o trânsito em julgado no segundo grau em todos os processos, incluindo trabalhistas e tributários. Cercada de boas intenções (afinal, quem pode ser contra a ampliação ao cerco aos malfeitos no país), a PEC tem o apoio até de algumas das vozes mais sensatas do Congresso. Em uma recente conferência on-line da Câmara de Comércio França-Brasil, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), defendeu a proposta. 'Não são só políticos, também temos empresários corruptos', justificou. Além de aumentar o cerco à impunidade, a ideia teria o mérito de desafogar a pauta do STF, para onde acabam indo muitos casos.
Na prática, porém, a intenção pode virar uma bomba capaz de provocar estragos consideráveis na economia. O tamanho da encrenca embutida no pacote pode ser medido em um número: em média, por ano, cerca de 240000 casos trabalhistas e tributários aguardam decisões definitivas nas Cortes superiores, segundo estimativa do Conselho Nacional de Justiça. Apenas o escritório de advocacia Machado Meyer, um dos maiores do país, tem cerca de 1800 processos sobre tributos nessa fase, somando 25 bilhões de reais em litígios que tramitam na segunda instância. Na nova PEC, o réu tem direito a recorrer de uma condenação, mas isso não garante que o pagamento será adiado.
A proposta, de autoria de Alex Manente (Cidadania-SP) e relatada por Fábio Trad (PSD-MS), prevê instrumentos para atenuar o impacto da medida, como a possibilidade de Cortes superiores revogarem uma decisão teratológica jargão jurídico para sentenças claramente absurdas e a previsão de que a lei não afetará os casos que estejam atualmente em tramitação na Justiça. Todo mundo ficará prevenido, não vai haver surpresa nem risco. Quem tem razão vai poder executar a decisão muito antes e os recursos protelatórios diminuirão, defende o ex-presidente do STF Cezar Peluso, que vê na PEC a ressurreição de uma proposta sua, que acabou sendo arquivada em 2018.
A discussão já provoca previsíveis e justos calafrios no meio empresarial, sobretudo em um momento de enorme fragilidade econômica. Flávio Rocha, dono da Riachuelo, é um dos que fazem ressalvas ao projeto, chamando atenção para a insegurança jurídica que isso pode criar. Nosso objetivo é tornar o país um polo que atrai investimentos e não um que repele, afirma. Já Sérgio Zimerman, fundador da Petz, uma das maiores redes de pet shop do país, com 112 lojas, levanta outro ponto: Não que eu aprove a prisão em segunda instância e seja contra algo que afeta o meu bolso, mas as decisões da área trabalhista são muitas vezes reformadas em instâncias superiores.
Algumas estatísticas respaldam a observação do empresário. Em 2019, 39% das decisões de segundo grau tiveram recursos ao Tribunal Superior do Trabalho. Desse montante, 20% foram parcial ou integralmente acolhidos. Se a PEC for aprovada, o dinheiro seria liberado antes do fim dos recursos, é um grande problema, afirma Otávio Pinto e Silva, professor da Faculdade de Direito da USP. Deve haver algum mecanismo para assegurar o direito ao contraditório e o mínimo de segurança de que o trânsito em julgado em segunda instância não vai agredir de maneira injusta o patrimônio de quem quer que seja, diz Noemia Garcia Porto, presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho.
No Congresso, que tem temas urgentes a tratar, como a reforma tributária, a PEC já provoca reação e drena energia. De um lado, enfrenta a previsível resistência do Centrão, bloco que abriga muitos parlamentares enrolados com a polícia e a Justiça. Já o PT, que também era contra a execução de pena em segunda instância quando queria tirar Lula da cadeia, agora acena com o voto favorável no formato da PEC ampliada, com a inclusão de processos trabalhistas e tributários. Uma coisa é certa: a discussão, que desde 2016 mobiliza boa parte da sociedade, volta agora sob a forma de um 'frankenstein' legislativo. Isso não só não encerra como ainda amplia a polêmica. Da forma como vem sendo colocado, o retorno da segunda instância corre o risco de nunca sair do papel.