Em tempos de pandemia muito tem se discutido sobre atos processuais e análise de decisões judiciais que se vinculam ao período de regulamentação excepcional sobre o trabalho, objeto das medidas provisórias editadas sob os números 927 e 936. Entre tantas questões, o Judiciário mantém plena atividade diante de um incremento e constatação de novos pedidos sobre processos em curso, sobre novas postulações e interpretações oriundas das respectivas medidas transitórias, ou sobre a continuidade de atividades que são essenciais para a atividade de Justiça.
A Justiça do Trabalho retoma sua centralidade como destino final de questões diversificadas de Direito, economia e sociedade, cuja diversificação, entre tantos e inúmeros pedidos, buscam revisar acordos e obrigações, ao passo que também eclodem pedidos de continuação e andamento processual através das ferramentas eletrônicas. Esses aspectos reportam, obrigatoriamente, a um dos pontos mais característicos do processo do trabalho, que é a proximidade com as partes em litígio através de audiências e conciliações presenciais. O cenário apresenta universo novo, abrangente e de múltiplas questões, porém algumas delas precisam de reflexão mais apurada na busca de uma construção de sentido, merecendo especial foco, neste debate, os atos de instrução por meio da tecnologia e de plataformas digitais.
A audiência envolvendo o Direito do Trabalho não é um ato meramente burocrático. Ela é um ato de vivência, em que a Justiça é dimensionada e percebida numa forma mais ampla e abrangente do que o próprio encontro. Nela se analisam narrativas jurídicas, comportamentais e atitudes. E não se pode negar que a experiência do magistrado do Trabalho apresenta nuances essenciais para o ato de audiência, posto que o tempo, a experiência pessoal e a prática, nesse contato, encampam os mundos dos fatos percebidos juridicamente e lançados em ata de audiência. Como bem acentuou o presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil [1], em atividade expositiva de evento digital, promovido em rede social pela Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (Anamatra), em 1º de maio -- Dia do Trabalho --, "a percepção do juiz do Trabalho em face da audiência presencial é epidérmica. Ele sabe onde se encontra a mentira, onde o preposto é treinado".
Nesse contexto, é essencial para esse processo de distribuição de justiça atentar sobre nuances que o mundo digital não permite. As especificidades de cada processo podem desautorizar a utilização da audiência online por elementos que colocam em risco a própria natureza da demanda trabalhista. Noutro ponto, não se pode abandonar a contingência de distribuição desigual de recursos tecnológicos entre partes e também advogados. Somos, também, um país desigual em planos de tecnologia, e quando migramos essa abordagem para a figura do trabalhador há substancial preocupação de inclusão, devendo ainda ser considerado o agravante de realidades sociais inacessíveis neste campo eletrônico em regiões menos favorecidas de norte a sul do país.
Estar presente traduz também um conjunto de atos processuais de que é feito o processo do trabalho, e há demandas em que não se coadunam os procedimentos eletrônicos de audiências com as necessidades reais de busca de provas e evidências da verdade, primordialmente num campo como o Direito do Trabalho.
A Justiça do Trabalho pode continuar seus atos processuais e atividades essenciais tendo atenção e filtro sobre suas particularidades processuais, o que inclui também os sujeitos do processo, nada impedindo que possamos ampliar o olhar eletrônico de atuação, porém sem perder a vigilância jurídica para que não comprometamos o real sentido de equação social de suas demandas.
Nesse particular, impõe-se atentar para que não transformemos a pandemia em semblante reduzido de tempo e protagonismo para toda evidência, o que ressalto não significa crítica para essenciais presenças esclarecedoras que temos vivenciado, e que são importantes neste momento. Atenta-se, apenas, para que não haja superposição de papéis e obscuridades em vislumbrar princípios de ordem e natureza constitucional, e de incorporação principiológica mundial, como temos com os normativos incorporados a partir das convenções historicamente discutidas e ratificadas, oriundas da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e para proteção do trabalhador.
Na sociedade contemporânea, e excepcional, atual, nossas dificuldades continuam e residem no que vivenciamos na distribuição dos riscos: a crise social e econômica tem demonstrado desigualdade na distribuição dos ônus e responsabilidades. E, nestes momentos de pandemia, jamais vivenciados, precisamos atentar para uma harmonização entre as garantias legais e as realidades vividas.
Cabe ao Judiciário, e essencialmente ao que lida com um Direito de vertente tutelar, e de sensibilidade social, atuar na limitação das explorações econômicas que relativizam questões essenciais de proeminência e salvaguarda dos direitos humanos. Não se pode, a usufruto de uma situação de desagregação ampla no campo social, relativizar garantias e direitos do trabalhador para superdimensionar direitos de natureza econômica. Sob argumentos de comoção pública, não podemos tornar mais valorosa a economia que a vida e a dignidade de quem já trabalhou, perdeu o emprego, porém não recebeu, em tempo regular do contrato, o que lhe era devido. O verbo no passado é realidade processual, já que as demandas trabalhistas normalmente só ingressam no Judiciário quando da demissão do empregado, e sem os pagamentos legais.
As medidas regulatórias sobre a Covid-19 não se limitam a conferir, tão somente, proteção às empresas durante a pandemia, tampouco devem ser objeto para conferir regalias aos empregadores, num plano de disposição de direitos que pertence claramente aos trabalhadores. Essa inversão apresenta vício desde a origem, já que as medidas excepcionais, lançadas para vigência nacional, foram criadas ao objetivo de proteção do emprego e de trabalhadores, e não para a superioridade e prevalência da exceção de proteção sobre o capital. Não há como referendar, neste momento, atos e postulações que não versam sobre oportunidade processual evidente. Entre conceitos, há distinção incomunicável entre legitimidade e oportunismo. A hermenêutica das medidas excepcionais veio na salvaguarda dos mais fracos. Eis a questão: merece sobreviver o ser humano ou o patrimônio? Eis a conclusão: depois de 27 anos lidando com o mundo do trabalho, uma pandemia e um vírus cruel, eu não tenho dúvidas da relevância humana.