É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.
O Brasil atingiu, nesta segunda (11), a marca de 11.519 mortos por covid-19, com mais 397 óbitos registrados nas últimas 24 horas. Talvez por considerar que o ritmo de falecimentos pela doença esteja lento demais e que o país aguenta tranco maior, o presidente da República anunciou que incluiu academias, salões de beleza e barbearias na lista de serviços essenciais e, portanto, autorizados a funcionar normalmente.
Fez isso sem avisar o ministro da Saúde, que acabou informado por jornalistas em uma coletiva de imprensa. Se Nelson Teich prezasse por dignidade, pegava sua máscara cirúrgica, seu álcool gel e largava o isolamento racional que se autoimpôs ao aceitar o cargo nessas condições.
Bolsonaro, que já chamou quarentenas de "inúteis", defende que elas não evitam mortes por coronavírus e, consequentemente, todos devem voltar ao trabalho. Ao dizer isso, o presidente se faz de tolo porque sabe que a ação é para evitar um tsunami de infecções e retardar o colapso do sistema de saúde, medida que pode evitar centenas de milhares de mortes. Mas não se importa.
A princípio, se o Estado ou município tiver uma decisão sobre serviços essenciais mais restrita, ela fica valendo até que o Poder Judiciário decida se essas esferas eram competentes para tanto. Mas percebam o quanto o presidente contribui para desestabilizar ao invés de atuar em harmonia. Como anunciou naquela invasão com representantes de associações comerciais ao Supremo Tribunal Federal, nada indica que vá parar de desgastar as medidas de isolamento social. Pouco a pouco.
Se tivéssemos um líder articulando com governadores e prefeitos um plano nacional para entradas e saídas de regiões do país em quarentena, baseado em indicadores médicos e científicos, salvaríamos vidas e evitaríamos um impacto maior na economia.
Mas o problema é que não temos nem um líder, mas alguém que se senta diariamente na cadeira presidencial tramando formas de garantir seu futuro político e a segurança de sua família. Quis a democracia brasileira que no momento em o país mais precisou de alguém que organizasse o caos, tivéssemos alguém que sistematicamente o promovesse, especializando-se em formas de culpar terceiros por aquilo que ele próprio deixou de fazer.
"Eu não burlo nada, saúde é vida", disse Jair Bolsonaro. E "desemprego mata".
Ao defender que locais com alto índice de infecção voltem à normalidade antes da hora, ironicamente ele pode estar condenando a economia a uma retomada mais lenta. Teremos trabalhadores sendo contaminados por colegas nos locais de trabalho e no transporte público, levando o vírus para casa para matar os que lá permanecerem - despeito da ficção do isolamento apenas de idosos e pessoas imunodeprimidas, que ele voltou a defender hoje.
Felizmente, o Supremo Tribunal Federal considerou que são inconstitucionais os trechos da Medida Provisória 927 que dificultavam que a covid-19 fosse considerada como doença ocupacional. Para além do impacto nas pensões a serem pagas pelo INSS, os empresários podem arcar com indenizações caso obriguem o retorno de seus funcionários e ele venham a contrair a doença ou morrer por ela.
"Mesmo o trajeto, ou seja, o uso de transporte público necessário para o deslocamento, será considerado. E a reparação não inclui apenas o trabalhador, mas também os danos que sua família vier a sofrer", diz Noemia Porto, presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra).
Seria ótimo termos uma Angela Merkel, primeira-ministra da Alemanha, ou uma Jacinda Ardern, primeira-ministra da Nova Zelândia, que não afundaram a cabeça no negacionismo, garantiram transparência às ações do poder público e articularam esforços nacionais para combater o problema.
Nesses países, menos pessoas vão morrer proporcionalmente em comparação com o Brasil e o fechamento da economia, que foi planejado, articulado e respeitado, será mais curto e, portanto, os danos econômicos, mitigados. Elas fizeram com que seus povos entendessem que seria melhor um tempo curto de sofrimento do que um calvário interminável. E que empregos, nós recuperados, vidas, não.
Mas já seria um luxo se contássemos com um presidente que não fizesse nada para atrapalhar, como trocar de ministro da Saúde em meio à pandemia, incentivar aglomerações em manifestações pró-ditadura, inspirar carreatas da morte em nome do fim do isolamento ou tentar pressionar a Suprema Corte em nome da reabertura da economia. Sem contar o passeio de jet ski para "celebrar" 10 mil mortos pela doença.
Diante disso, conclui-se que o Brasil só teria a ganhar se o Congresso Nacional tivesse o poder para considerar a Presidência da República como "serviço não essencial", desobrigando Bolsonaro de trabalhar durante o período em que durar o estado de calamidade. Considerando a capivara de desserviços, o país agradeceria se, neste momento, ele se abstivesse de tomar decisões.