Sandro Nahmias Melo
O futuro chegou. A odisseia de 2001 – o filme – e seus elementos nunca estiveram tão presentes: vídeochamadas, tablets, pesquisas interplanetárias e, em especial, a inteligência artificial e seus algoritmos. No século XXI, os algoritmos, apesar de invisíveis, são onipresentes. Algoritmos e inteligência artificial, apesar de quase imperceptíveis, dominam o cotidiano moderno. Algoritmos gerenciam dinheiro, relacionamentos – de amizade até os mais íntimos –, rotinas pessoais, lazer e, como não, trabalho.
O Big Brother dos algoritmos e das inteligências artificiais, vaticinado por Kubrick, também é realidade na vida de qualquer portador dos chamados smartphones. O HAL 9000 encolheu, cabe agora na palma da mão. Nossos hábitos, rotinas e preferências são registrados e avaliados constantemente e, ainda, com base nestes dados, sugestões e decisões são feitas. Com dados suficientes, um algoritmo pode ter a pretensão de não só indicar filmes e músicas de nossa preferência, mas também indicar o par romântico ideal para alguém e, ainda, estimar quanto tempo durará o relacionamento.[2]
O trabalho, tal qual o dos astronautas de 2001 (o filme), também sofre constante intervenção e vigilância das IAs. Pesquisas têm demonstrado, no Brasil de 2020, o crescimento significativo do trabalho intermediado por aplicativos, estes, por sua vez, gerenciados por algoritmos: na primeira linha, temos o transporte de pessoas, refeições e documentos. São inúmeros também os serviços especializados: aulas particulares, consultas médicas e até goleiros para viabilizar a pelada de final de semana. A lista tem crescido na proporção inversa da recessão econômica e do emprego formal.[3]
Os aplicativos além de conectados ao trabalho informal, também têm contribuído para necessidade de profunda reformulação de profissões conhecidas: taxista, operador de telemarketing, corretores de bolsa de valores, entre tantas outras. A necessidade de reformulação profissional diante dos algoritmos é essencial, sob pena de extinção. Ora, nos dias de hoje, até nosso agente de viagens é um algoritmo que nos sugere rotas, passagens, estadia, seguro e locação de veículos, sendo todo o negócio celebrado via smartphone, sem qualquer contato humano. Mais uma profissão que, se não reinventada, será extinta.
Esclareça-se que os algoritmos, na informática, constituem uma representação matemática de um processo para a realização de uma tarefa, tal qual uma receita de bolo. Um verdadeiro passo a passo, em fluxograma estruturado, para tomada de decisões que permitirão a conclusão da tarefa[4].
E dentre as tarefas mais executadas por aplicativos no Brasil o destaque tem de ser reservado ao transporte de pessoas, onde é indiscutível – até pelo pioneirismo – a proeminência do UBER, gerando a até o neologismo UBERIZAÇÃO[5]. Ora, aqui uma pergunta se impõe: quais são as diretrizes para o cumprimento da tarefa a que se propõe o algoritmo que rege a plataforma UBER, bem como de outros de igual natureza? Quais as “leis internas” – não visíveis – que governam o fluxograma? E como essas leis consideram o elemento humano da equação: o motorista ?
Isaac Asimov, ao escrever o livro “Eu, Robô” e, obrigatoriamente, ao tratar de inteligência artificial, propôs as três leis da robótica. Importante destacar que estas leis têm um grande paradigma: o ser humano. A primeira lei determina que: “Um robô não pode ferir um ser humano ou, por inação, permitir que um ser humano sofra algum mal”; a segunda estabelece que “Um robô deve obedecer às ordens que lhe sejam dadas por seres humanos exceto nos casos em que tais ordens entrem em conflito com a Primeira Lei; a terceira e última lei determina que “Um robô deve proteger sua própria existência desde que tal proteção não entre e conflito com a Primeira ou Segunda Leis”. As leis foram imaginadas como passo a passo de segurança na relação entre humanos e robôs. Na prática, tratam do relacionamento da inteligência humana com a inteligência artificial. Feito este registro, importa perguntar se tais leis teriam incidência no mundo atual dos aplicativos? dos algoritmos? estes considerados como base para o estabelecimento de uma inteligência artificial? Diante das evidências atuais, parece-nos negativa a resposta. Se não, vejamos nós.
A intermediação dos serviços de transporte por plataformas, com gerenciamento de serviços humanos por algoritmos, tem uma marca distintiva: a ausência de visualização de uma figura humana na gerência dos serviços. Do ponto de vista da execução de uma tarefa, qual a diferença entre uma agência física – cooperativa ou não – que oferece serviços de transporte e um aplicativo com idêntico objetivo? Não é outra senão a dificuldade de visualização de uma figura humana na gerência. A intermediação pela plataforma, entretanto, com serviço gerenciado pelo algoritmo, não elimina a figura de um gestor – programador humano.
A falta de visualização de um gestor humano coopera com a percepção – estruturalmente equivocada – de que o motorista de aplicativo tem total autonomia no desenvolvimento do seu trabalho, já que não responde a ninguém – humanamente considerado. O motorista de aplicativo, segundo estudo detalhado do Ministério Público do Trabalho[6], tem sua atividade coordenada sim. Ponto.
Apesar das plataformas defenderem a ideia de que os "parceiros" – ociosos em estado original – podem trabalhar quando e quanto quiserem, esta liberdade acaba sendo negada na medida em que há um dever de cumprir objetivos definidos na programação do serviço, como fazer um número mínimo de corridas – estas sem limite máximo – , bem como não ter opção de escolher passageiros ou destinos, tudo isso decidido de forma unilateral pelo algoritmo, este programado por seus proprietários. A liberdade de decidir é a mesma para qualquer outro desempregado diante da oferta de um emprego aquém das suas expectativas: submissão, subordinação ou o mundo sem trabalho.
Os algoritmos que ditam o processo de precarização do trabalho humano, parecem regidos por leis também. Não há, entretanto, a preponderância do paradigma humano. Nestas leis, diferentemente das de Asimov, o homem não é o protagonista. Segundo as evidências do passo a passo dos algoritmos, no Brasil, pode-se inferir a adoção também de três leis, que, em essência, parecem ditar que: 1ª - o algoritmo deve coordenar o passo a passo do serviço do prestador-humano, com eficiência, para que a tarefa final seja cumprida, e repetida em número crescente, alcançando o maior nível de satisfação do tomador de serviços; 2ª – toda a coordenação dos serviços do prestador-humano deverá ser processada de forma indetectável, sendo reiteradamente informada a condição de “parceiro” ao prestador-humano, bem como ao tomador de serviços; 3ª – a execução da 1ª e 2ª leis ocorrerá independentemente de prejuízos materiais ou pessoais do prestador- humano. Nesta última norma, temos a irrelevância, para o cumprimento da tarefa, dos custos (depreciação do automóvel, valor do combustível, multas, acidentes, etc..) e riscos à saúde (jornadas extensas, atividade estressante, adoecimento) suportados exclusivamente pelo prestador-humano.
Abstraídas as leis acima presumidas, poderá se defender que ninguém está obrigado a ter o seu trabalho gerenciado por um aplicativo ou, mesmo trabalhando, que não está obrigado a se submeter às suas exigências, em especial a uma longa rotina de trabalho para ter renda suficiente para subsistir. Sucintamente, há liberdade, em termos. O trabalhador por aplicativos do século XXI tem a mesma liberdade do trabalhador da Revolução Industrial: trabalhar 10, 12 ou 14 horas por dia para sobreviver ou não trabalhar.
Aqui faz-se necessária definição de uma fronteira, o estabelecimento de um limite. Apesar do vínculo de emprego ser de difícil visualização quando o serviço prestado é gerenciado por um algoritmo invisível[7], apesar de serem variadas as rotinas de cada prestador de serviço – em linhas de diferença tênue tais quais aquelas que separaram um vendedor empregado de um vendedor autônomo – ; apesar de não serem necessariamente aplicáveis as normas da CLT, é certo que o trabalhador de aplicativo não é um sujeito desprovido de direitos. Tem direitos fundamentais, entre eles o da dignidade da pessoa humana e de sadia qualidade de vida no meio ambiente do trabalho.
A linha de fronteira deve ser o reconhecimento de um piso vital mínimo de direitos, correspondentes às necessidades básicas de todo trabalhador, sem o quais a dignidade - como pessoa - e a sadia qualidade de vida, estarão sendo sistematicamente negadas ao trabalhador de aplicativo.
A título de proposta de reconhecimento, que independe de ação legislativa, defende-se que este piso vital mínimo encontra sua ressonância nas próprias raízes do Direito do Trabalho. A gênese do direito do trabalho está indissociavelmente ligada ao início da luta pelo direito a uma jornada de trabalho com limite. O próprio inc. XIII, art. 7º da Constituição da República estabelece a diretriz de que todo o trabalhador tem direito a uma jornada de trabalho com limite diário. Não é legalmente admissível que o algoritmo, gerenciador das tarefas do trabalhador humano, permita, ou pior, estimule jornadas diárias de 12 a 14 horas de trabalho. O limite constitucional de 8 horas diárias deve ser observado, observadas as exceções previstas constitucionalmente.
Ainda como proposta de reconhecimento, temos o princípio geral de responsabilidade no ordenamento jurídico pátrio, plenamente aplicável aos acidentes e afastamentos do trabalhador de aplicativo, decorrentes de seu labor. Esta deve recair sobre o gestor do negócio, dono do algoritmo, que lucra, até o momento, sem risco algum. A título de exemplo, o custo com o tratamento médico de motociclistas de aplicativos, caro e prolongado, é suportado integralmente pelo SUS, pelo Estado. Imperiosa nestes casos, tal qual INSS faz em caso de acidentes de trabalho de empregados[8], é a ação regressiva proposta pelo Estado. Só no município de São Paulo os valores ressarcidos seriam, pelo número de acidentes, milionários[9].
Por fim, para consolidação do piso vital mínimo de direitos do trabalhador de aplicativo, necessário a inserção do obreiro no sistema previdenciário oficial. Um recolhimento previdenciário deve incidir sobre a arrecadação de cada motorista, sendo suportado pela plataforma.
Bem, a odisseia do trabalhador de aplicativo, no Brasil, está longe do fim, mas espera-se que respeitado um piso vital mínimo de direitos, alcancemos para trabalhador de aplicativo a mesmo desfecho da saga de 2001 (o filme). Na odisseia, mesmo após todos os avanços tecnológicos, mesmo após cruzar espaço e tempo, concluiu-se que é o homem que deve prevalecer, não o algoritmo.
[1] Juiz do Trabalho Titular – TRT da 11ª Região. Mestre e Doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC-SP. Professor Adjunto da Universidade do Estado do Amazonas. Membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho (cadeira 20). Presidente da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 11ª Região – AM e RR (Biênio 2019-2021).
[2] Tão perfeito que, em extremos, sequer poderia ser contestado. https://canaltech.com.br/curiosidades/site-inspirado-em-black-mirror-revela-o-quanto-o-seu-relacionamento-vai-durar-108272/. Acesso em 20.02.2020
[3] https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,aumento-do-trabalho-por-conta-propria-pode-ser-estrutural-relacionado-a-aplicativos-aponta-ipea,70003123328. Acesso em 20.02.2020.
[4] file:///C:/Users/home/Desktop/EU,%20ALGORÍTIMO/algoritmos-inteligencia-artificial.pdf. Acesso em 21.02.2020.
[5] Cf. https://www.anamatra.org.br/images/DOCUMENTOS/2019/O_TRABALHO_NA_GIG_ECONOMY_-_Jota_2019.pdf. Acesso em 20.02.2020.
[6] http://csb.org.br/wp-content/uploads/2019/01/CONAFRET_WEB-compressed.pdf. Acesso em 20.02.2020
[7] http://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/Motorista-de-aplicativo-e-trabalhador-autonomo--e-acao-contra-empresa-compete-a-Justica-comum.aspx. Acesso em 26.02.2020.
[8]https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/acao-regressiva-previdenciaria-uma-realidade-09022017. Acesso em 26.02.2020.
[9] https://agora.folha.uol.com.br/sao-paulo/2019/11/acidentes-com-motociclistas-aumentam-30-na-regiao-central-de-sp.shtml. Acesso em 26.02.2020.