Por Noemia Porto e Marco Aurélio Treviso
Encontra-se no Conselho Nacional de Justiça proposta que visa estabelecer “parâmetros de uso das redes sociais”, sob o argumento de que é necessário “compatibilizar o exercício da liberdade de expressão com os deveres inerentes ao cargo”, calcada na justificativa de que o magistrado possui restrições distintas dos cidadãos em geral, já que a sua conduta pode gerar impactos negativos com potencial de afetar a visão que a sociedade possui em relação à Justiça. A ideia é de restringir para controlar.
A análise de tal proposta, entretanto, demonstra que o CNJ ultrapassou limites intransponíveis e que afetam o direito do magistrado enquanto cidadão. O CNJ, em verdade, pretende criar uma regulamentação, sem qualquer prévio debate com os atores diretamente envolvidos. A Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), por exemplo, não foi chamada a discutir o tema, sequer podendo apresentar críticas ou sugestões ao texto. Teve que, com texto pronto, tentar algum canal de diálogo via entrega de nota técnica aos conselheiros. Além disso, viu-se, no âmbito do CNJ, a existência de falas daqueles que defendiam a necessidade de regulamentação, sem que o contraponto fosse feito por parte daqueles que seriam os regulados. Para além dos magistrados, sequer se considerou a importância de audiência pública para que uma discussão plural e aberta fosse estabelecida.
A mesma discussão chegou a ser travada no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), porém, com postura bem diversa. Enquanto no âmbito do CNJ procura-se aprovar um texto que regulamenta o uso das redes sociais pelos magistrados, no outro (o CNMP) o discurso é outro, calcado na própria necessidade ou não de se regulamentar algo (e o que regulamentar), contando, ainda, com a participação efetiva das associações de classe. E, além delas, de professores e outros atores sociais.
Mas, a pergunta que surge é: esta regulamentação é necessária? Efetivamente, ninguém defende a impunidade quando eventualmente constatados excessos na manifestação de pensamento, externada através das redes sociais, em típica situação de abuso da liberdade de expressão.
Todavia, há regras que permitem a aplicação de eventuais sanções, com garantia de ampla defesa e contraditório, cujo comportamento deve ser analisado de forma individualizada. Em tempos de fake news, ou seja, de uma prática indesejável de divulgação de informações falsas, a prudência é necessária, pois é preciso confirmar não só o teor de uma declaração postada, mas também a sua própria autoria e o seu real contexto. Essas premissas são basilares, na medida em que a liberdade de expressão é um direito fundamental de qualquer cidadão, também alcançando os magistrados, e essencial quando se trata de uma democracia.
A Constituição, a propósito, expressamente proíbe a censura. No julgamento da ADPF 130, o ministro Ayres Brito manifestou-se no sentido de que não pode o Estado, por qualquer dos seus órgãos, definir previamente o que pode ou não pode ser dito pelos indivíduos. Inequívoca é a conclusão de que as manifestações dos magistrados nas redes sociais, por serem expressões da liberdade de expressão e da manifestação de pensamento, não podem sofrer regulamentação prévia, porque configura censura e violação da vida privada. Limitações a priori tendem a gerar efeitos invisíveis, inclusive sobre a independência, o perfil e o compromisso social da magistratura brasileira.
A violação se mostra patente quando o CNJ pretende alcançar os “aplicativos de computador ou dispositivo eletrônico móvel voltados à interação social privados” (WhatsApp e Telegram, por exemplo), permitindo concluir que até mesmo as manifestações de magistrados em restritos grupos formados nesses aplicativos (de família e de amigos, por exemplo) poderiam ser objeto de regulação e, se for o caso, de alguma punição.
Além disso, a proposta recomenda que o magistrado tenha uma postura seletiva e criteriosa para identificação nas redes sociais, adotando-se, portanto, um conceitual perigosamente aberto, proibindo-o de responder a eventual ataque recebido contra a sua índole, além de desconsiderar, por completo, que se trata de uma pessoa que vive em sociedade, impondo-se a ele um isolamento social, quando este mesmo magistrado possui o dever de ter contato com a realidade que o cerca.
Numa sociedade aberta, com funciona em rede, mundial e hiperinformada, há novos modos de interação, socialização e difusão do conhecimento. Em suma, há outros modos de estar no mundo, inclusive no que concerne à magistratura. Lidar com essa nova realidade complexa a partir de uma solução que parece simples, qual seja, regular para restringir, tende a gerar efeitos inadequados, com abalo à normatividade da Constituição.
Em país vizinho, travou-se similar debate. A Suprema Corte do Chile, em 2019, discutiu o tema e aprovou recomendações genéricas que basicamente dizem que os magistrados devem, quando da utilização das redes sociais, ter cuidado, evitando o contato com advogados ou outros profissionais que intervenham em algum assunto que esteja sob o seu crivo. Além disso, o próprio magistrado deve avaliar as potenciais consequências de identificar-se como membro do Poder Judiciário nos perfis, evitando a exposição de conteúdo que não possa ser publicizado. Recomenda-se, ainda, que o magistrado utilize as medidas de segurança de informática, para se evitar a ação de hackers.
No Chile, os regramentos aprovados pela maior instância do Poder Judiciário são meramente programáticos, que orientam o uso das redes sociais. As recomendações chilenas não restringem o direito fundamental de liberdade de expressão, em qualquer esfera do magistrado. Situação complexa exige, de forma muito responsável, uma atuação igualmente complexa, que esteja pautada na abertura democrática para o diálogo, na reflexão e na lógica da orientação, jamais da restrição.
O desafio que está colocado para o CNJ não é de emissão de um (mais um) código de conduta para a magistratura, mas, sim, o de assumir a complexidade desse novo tempo, dessa nova sociedade e da nova magistratura.
Noemia Porto é doutora em Direito Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB); juíza Titular da 3ª Vara do Trabalho de Taguatinga/DF; e presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra).
Marco Aurélio Treviso é diretor de Informática da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra).