Presidente volta a defender que punição não seja generalizada. Até hoje, porém, nenhum caso levou à expropriação de terras
ADRIANA MENDES E RENNAN SETO
Após ter criticado a emenda constitucional que pune com expropriação o proprietário que faz uso de trabalho escravo, o presidente Jair Bolsonaro disse ontem que não pretende enviar ao Congresso proposta para alterar a legislação. Mas voltou a defender que a punição seja específica e não generalizada.
Bolsonaro disse na terça-feira que deveria ser feita uma "adaptação" nas regras de fiscalização do trabalho análogo
à escravidão, para que o empregador tenha garantias. Ontem, afirmou que quem pratica trabalho escravo tem que ser punido, mas justificou suas críticas por meio de um exemplo hipotético.
- Ao desapropriar, você puniu a dona Maria, que estava há 60 anos com ele trabalhando na fazenda; os filhos, que estavam há 40 anos trabalhando; os netos, que estavam há 20 anos. Você pune todo mundo. Não é justo - disse.
A expropriação está prevista na Constituição desde 2014, quando emenda determinou que propriedades em que se flagre trabalho escravo
sejam "destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário".
"CHAGA NO BRASIL'
Até hoje, porém, nenhuma sentença judicial determinou a expropriação nesses casos, disse a procuradora Catarina von Zuben, responsável pela Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Çonaete).
- Em todos os processos, o Ministério Público do Trabalho (MPT) pede a expropriação, já que ela está na Constituição. Consideramos uma medida importante, porque coíbe um crime contra o direito fundamental à liberdade. E a emenda foi aprovada pelo Congresso. Mas ela ainda é relativamente recente, e nenhuma decisão judicial determinou a expropriação de terras - afirmou a procuradora.
Segundo a presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), Noemia Porto, a Justiça do Trabalho não é competente hoje para a etapa de "desapropriação confiscatória" prevista na lei. De acordo com a juíza, como, nesses casos, o confisco da propriedade seria motivado por um crime, quem podería determiná-la é a Justiça Federal.
- Mas a emenda não é injusta, porque a Constituição prevê o direito à propriedade, mas não de forma absoluta. Ele está condicionado ao cumprimento de sua finalidade social - criticou Noemia. - Vemos com imensa apreensão as declarações do presidente. O trabalho escravo permanece como uma chaga no Brasil, que é campeão, na América Latina, quanto à incidência da escravidão moderna.
Segundo a Anamatra, "causa espanto" o fato de Bolsonaro "confundir a ideia de que só havería escravidão se ela fosse ao modo antigo, negando que exista a escravidão moderna".