A aprovação da Lei nº 13.467/2017, que institucionaliza a Reforma Trabalhista, foi aprovada “com discursos sobre a urgência de um suposto Brasil que tem pressa, tendo como pano de fundo a justificativa sobre uma também suposta tendência irreversível da economia”. A afirmação é da vice-presidente da Anamatra, Noemia Porto.
Em seu artigo “Reforma trabalhista e processo constituinte: o poder que não emana do povo”, a vice-presidente da entidade faz um panorama sobre o reconhecimento formal dos direitos dos trabalhadores a partir da Constituição de 1988 até a aprovação da Reforma Trabalhista, no ano passado.
Para Noemia Porto, “aos direitos trabalhistas foi negada a condição de direitos de cidadania, sendo tratados como mero assistencialismo que poderia ser concedido ou retirado a depender do fluxo da economia. Essas ideias, porém, não são inéditas”. Segundo a magistrada, trabalhadores e trabalhadoras devem se apropriar do discurso da constituição como luta pela realização de direitos.
Leia artigo na íntegra:
Reforma trabalhista e processo constituinte: o poder que não emana do povo
Três décadas depois do advento da Constituição de 1988, que, dentre os seus feitos inéditos, contemplou o reconhecimento formal dos direitos dos trabalhadores como fundamentais, é necessário reconhecer que o alcance dos arts. 7º a 11 têm sido objeto das mais variadas disputas, e nem sempre voltadas à ideia primordial da centralidade do cidadão que necessita do trabalho para viver. Os direitos sociais, nos discursos sobre a constituinte 87/88, apareciam como conquista e avanço, no entanto, em tempos mais recentes foi ganhando espaço a propagação do senso comum de que representariam entrave ao desenvolvimento econômico.
O advento da Lei nº 13.467/2017 é um dos eventos jurídicos de maior abalo à estrutura normativa dos direitos sociais trabalhistas. Podem ser mencionadas, numa abordagem inicial: a possibilidade de negociação coletiva abaixo da proteção garantida em lei; a existência de negociação direta entre trabalhador e empregador; a exclusão de normas de duração do trabalho como equivalentes às de medicina e segurança; o estímulo a contratações que não fortalecem o regime constitucional de emprego como autônomo exclusivo, intermitente e terceirizado; e as dificuldades impostas no acesso à Justiça do Trabalho, com limitação da gratuidade de justiça e previsão de sucumbência em desfavor do trabalhador. As premissas que animaram essas alterações foram as de modernização das linhas de produção, existência de excesso de direitos para os trabalhadores que engessam as relações de trabalho, desenvolvimento econômico como um fim em si e necessidade de maior liberdade contratual.
Aos direitos trabalhistas foi negada a condição de direitos de cidadania, sendo tratados como mero assistencialismo que poderia ser concedido ou retirado a depender do fluxo da economia. Essas ideias, porém, não são inéditas.
Alguns exemplos são elucidativos quanto às dificuldades persistentes no trato dos direitos trabalhistas como direitos fundamentais. A PEC nº 341/2009, apresentada na Câmara dos Deputados, previa a redução para dois artigos apenas, desconstitucionalizando diversas garantias, ou seja, abarcava explícita modificação que pretendia retirar determinados temas, ao menos formalmente, do status constitucional. Assim, lei disporia sobre a garantia dos trabalhadores e as atividades sindicais seriam previstas em lei. A premissa era de que tais direitos não eram matéria adequada ao texto da Constituição.
Em 2011, aprovada a sua criação pelo TSE, o Partido Social Democrático (PSD) lançou manifesto propondo uma revisão constitucional exclusiva. O partido defendia a iniciativa e a propriedade privadas e a economia de mercado, como regime capaz de gerar riqueza e desenvolvimento. Falava que o Brasil precisava se modernizar, tornando-se mais ágil, libertando-se das impossibilidades e oferecendo, verdadeiramente, igualdade de oportunidades àqueles que querem se profissionalizar, gerir o próprio negócio e vencer na vida. Os direitos sociais apareciam apenas na prioridade de assistência aos desamparados. O silêncio nas manifestações iniciais do partido quanto à questão trabalhista apontava no sentido de que o desenvolvimento econômico propugnado não viria acompanhado do compromisso com a melhoria da condição social dos trabalhadores. Nesse sentido, sobreveio a PEC nº 98 de 2011 para possibilitar a realização da revisão por meio de uma Câmara Revisional exclusiva, que seria instalada em 2015.
As PECs de 2009 e de 2011, embora mais recentes, não são exemplos isolados. Também tramitou no Congresso Nacional, com parecer favorável, à unanimidade, da Comissão de Constituição e Justiça, a PEC nº 157/2003, que propunha um procedimento diferenciado de revisão constitucional, culminando com o referendo popular. Seus defensores alegavam a vantagem de a proposta promover uma espécie de modernização da Constituição, permitindo sua atualização periódica, com o apoio da vontade do povo. Insistia-se na ideia equivocada de que a Constituição de 1988 teria supostos excessos, que deveriam ser sanados por um procedimento de revisão. A hipótese de modernização do Estado brasileiro passaria pela redução do âmbito normativo de proteção aos trabalhadores.
O Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, de São Paulo, apresentou ao Poder Executivo, em 2011, minuta de anteprojeto de lei pelo qual seria criada, no ordenamento jurídico brasileiro, a figura do Acordo Coletivo de Trabalho com Propósito Específico. O instituto seria instrumento utilizado por sindicato profissional habilitado pelo Ministério do Trabalho, o qual, entabulado no âmbito de determinada empresa, versaria sobre condições específicas de trabalho. Como a entidade teria que receber uma espécie de credencial do Poder Executivo, admitia-se a interferência estatal na organização sindical. A primeira premissa era a de que a legislação trabalhista, oriunda da década de 1930, ainda estabelece restrições à organização sindical e à negociação coletiva; a segunda, de que deve ser vista como um problema a existência de questionamento judicial sobre os acordos coletivos celebrados. Como é possível perceber, a questão posta diz respeito ao conflito entre “negociado e legislado”. No passado, houve empenho do Poder Executivo na aprovação do PL nº 5.483/2001, que, segundo consta na própria ementa explicativa do projeto, flexibiliza a CLT. Em ambas as iniciativas, ocorridas em momentos diferentes e por atores distintos, houve a tentativa de transformação da negociação coletiva em instrumento de flexibilização dos direitos assegurados pela legislação trabalhista.
O poder constituinte não se esgota no momento de promulgação do texto. É um exercício permanente que pode conferir legitimidade, autoridade e força para estabelecer o que a constituição constitui, e mesmo para manter a sua força normativa ou revogá-la. Ocorre que a inclusão da população, com efetivo gozo de exercício dos direitos fundamentais é essencial para a cidadania e para a democracia e, com elas, para a dimensão procedimental do poder constituinte, que não se confunde, e tampouco se encerra, com a democracia representativa.
Entre a forma e a matéria constitucionais existe uma distensão, exposta no percurso acidentado dessas tentativas de mudanças constitucionais e de alterações em legislação ordinária, culminando com a recente aprovação da Lei nº 13.467/2017, que coloca à prova esse elemento procedimental do poder constituinte, com ameaça persistente aos direitos sociais de conteúdo trabalhista, justamente sob a lógica de que constituem excesso inadmissível.
A Lei nº 13.467/2017 foi aprovada com discursos sobre a urgência de um suposto Brasil que tem pressa, tendo como pano de fundo a justificativa sobre uma também suposta tendência irreversível da economia. Nenhum espaço institucional foi criado, durante a tramitação, para importantes demandas difundidas na sociedade civil como os da liberdade sindical plena; formas de remuneração que observassem a maior intensificação do trabalho na era pós-fordista; controle efetivo das dispensas arbitrárias; promoção da concorrência leal entre as empresas, coibindo o dumping social; mecanismos de redução dos acidentes e doenças profissionais; combate às discriminações no mundo do trabalho; entre outros. A realidade, traduzida em diversos estudos e estatísticas, do desamparo, da crise sindical, do empobrecimento salarial e da exclusão de incontáveis trabalhadores foi silenciada.
Ser povo que trabalha e demanda proteção em razão da desigualdade estrutural do mercado, na perspectiva de quem apoiou a reforma, não é moderno, soa excessivo, precisa ser sanado e dificulta o exercício da liberdade. Mas na perspectiva de quem? De qual povo? De qual Brasil? O percurso do constitucionalismo social de 1988 está marcado pelas dificuldades de resistência aos discursos recorrentes de que modernizar, progredir e crescer economicamente devem vir conjugados com o sacrifício dos direitos sociais e dos trabalhadores e de suas famílias. Afinal, como ser livre na pobreza?
Os próprios cidadãos devem se apropriar do discurso da constituição como luta pela realização de direitos. O elemento procedimental do poder constituinte não se relaciona com as ideias que vão e vem sobre congressos revisores, poder constituinte permanente ou outras alternativas similares que visam a aumentar o poder de decisão de parlamentares eleitos. Trata-se do movimento em que a constituição seja e se torne uma reivindicação, não apenas simbólica, mas real e constante do povo. A ideia de povo não pode ser apropriada por nenhum integrante do poder constituído como uma homogeneidade distante da realidade vivida num mercado de trabalho profundamente desigual. O que há de essencial como desafio para o futuro é a revitalização do poder constituinte como processo, isto é, como poder que realmente emana de um povo concreto.
O presente artigo está incluído em uma série dedicada aos 30 anos da Constituição de 1988. Este espaço é compartilhado por professores e pesquisadores integrantes do grupo de pesquisa “Percursos, Narrativas, Fragmentos: História do Direito e do Constitucionalismo” (UnB – Programa de Pós-Graduação em Direito, Estado e Constituição), por componentes do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (CEDEC) e por pesquisadores convidados.
NOEMIA PORTO – Vice-Presidente da Anamatra, Juíza do Trabalho e pesquisadora do Grupo Percursos, Narrativas e Fragmentos: História do Direito e do Constitucionalismo (CNPq/UnB)