MARX utilizava a expressão “Verdinglichung” – em tradução mais literal, “sobrecoisificação” – para designar o tratamento de um ser humano consciente e livre como mero objeto ou coisa, desprovida de consciência ou liberdade. Também reportava a reificação das próprias relações sociais, na acepção depois assimilada pelo Preâmbulo da Constituição da Organização Internacional do Trabalho (1919): relações sociais tomadas e projetadas como meras relações de consumo, em que algumas pessoas “vendem” trabalho e outras o “compram”. O iugoslavo Gavrilo “Gajo” PETROVIĆ explicitou soberbamente esses processos em seu “Dicionário do Pensamento Marxista”:
El acto (o resultado del acto) de transformar propiedades, relaciones y acciones humanas en propiedades, relaciones y acciones de cosas producidas por el hombre, objetos que se han vuelto independientes (y que son imaginados como originalmente independientes) del hombre y gobiernan su propia existencia. También, la transformación de seres humanos en cosas que no se comportan en una forma humana sino de acuerdo a las leyes del mundo de las cosas. La reificación es un caso ‘especial’ de alienación, su forma más radical y extendida, característica de la sociedad capitalista moderna.
Essas duas ideias – coisificação da pessoa e reificação das relações sociais – estão evidentemente relacionadas, mas não precisam necessariamente se confundir. E a realidade trata de nos lembrar disto. Nas relações de trabalho, a “mercantilização” do labor humano assume as mais variegadas formas, muitas legais (veja-se p. ex., bem recentemente, a autorização legal para a terceirização de atividade-fim – a nosso ver inconstitucional, como já dissemos por aqui –, sob os ventos da Lei n. 13.467/2017). Há outros contextos, porém, em que, à inteira margem da lei, a pessoa humana é dita, tratada e feita objetivamente como coisa de comércio. Ela toda, pessoa humano, ou partes dela. E outros seres humanos há que se organizam para aproveitar e incrementar esse rentável comércio. O que nos faz chegar ao tema de hoje.
Nesta segunda-feira, dia 30 de julho, celebrou-se o Dia Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, instituído há dois anos pelo artigo 14 da Lei n. 13.344, de 6 de outubro de 2016. A emblemática data – e, para mais, as campanhas nacionais de enfrentamento ao tráfico de pessoas que geralmente são divulgadas nessa época – carregam, por detrás de si, mais do que o vulgo imagina haver.
O tráfico de pessoas tem, no Brasil e no mundo, uma configuração muito mais diversificada do se imaginava há algumas décadas; e essa nova percepção foi adequadamente assimilada pela referida Lei n. 13.344/2016, embora com certo retardo. Para entender o passo que se deu, basta ver que a Lei n. 13.344/2016, ao introduzir o art. 149-A no Código Penal brasileiro, introduziu número bem maior de “finalidades” no contexto do tráfico de pessoas, do que aquelas que até então estavam contempladas na legislação criminal.
Com efeito, até então, o Código Penal previa basicamente, desde as Leis ns. 8.683/1993 e 9.777/1998, o aliciamento de trabalhadores com deslocamento de uma localidade a outra do território nacional (art. 207) e o aliciamento para prestar serviços fora do país (art. 206); e, desde 2009 (Lei n. 12.015), o tráfico de pessoas para fim de exploração sexual. Outras hipóteses não estavam contempladas; e, como se sabe, o Direito Penal brasileiro rege-se pela estrita legalidade e pela taxatividade (i.e., aquilo que não está explicitamente descrito tendencialmente não pode configurar crime). Há anos, porém, os especialistas bem sabem que as finalidades do tráfico de pessoas – crime organizado por excelência – vão para bem além desse restrito universo. É o que hoje prevê o art. 149-A do Código Penal, na redação da Lei n. 13.344/2016 (sinalizando claramente quais são os principais objetivos colimados, hodiernamente, pelas políticas públicas brasileiras):
“Tráfico de Pessoas
Art. 149-A. Agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com a finalidade de:
I – remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo;
II – submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo;
III – submetê-la a qualquer tipo de servidão;
IV – adoção ilegal; ou
V – exploração sexual.
Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.
§ 1o A pena é aumentada de um terço até a metade se:
I – o crime for cometido por funcionário público no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las;
II – o crime for cometido contra criança, adolescente ou pessoa idosa ou com deficiência;
III – o agente se prevalecer de relações de parentesco, domésticas, de coabitação, de hospitalidade, de dependência econômica, de autoridade ou de superioridade hierárquica inerente ao exercício de emprego, cargo ou função; ou
IV – a vítima do tráfico de pessoas for retirada do território nacional.
§ 2o A pena é reduzida de um a dois terços se o agente for primário e não integrar organização criminosa.”
Veja-se que ali está incriminado o tráfico de pessoas para a obtenção de trabalho escravo contemporâneo (restando, para os artigos 206 e 207 do CP, os casos de aliciamento para trabalho que não determinem, no destino, a exploração de neoescravidão), como também o tráfico de pessoas para exploração sexual (razão pela qual foram revogados os artigos 231 e 231-A do CP). Mas não só.
Também está tipificado o tráfico de pessoas para fins de adoção ilegal. Essa previsão busca reprimir uma das mais sórdidas modalidades de tráfico hoje existentes: a que tem por objeto crianças muito novas – notadamente bebês –, traficadas para “venda” a famílias receptoras, em total desacordo com a legislação vigente no país de origem e/ou no país de destino. Segundo o United Nations Office on Drugs and Crime, em relatório de 2016, quase um terço do total de vítimas do tráfico de pessoas no mundo são crianças (meninos e meninas).
No caso do tráfico de pessoas para fins de exploração de trabalho análogo ao de escravo, a lei busca reprimir exatamente as redes que traficam pessoas para serem exploradas como escravos contemporâneos, tenham ou não disso consciência. Vale lembrar que, no Brasil, o artigo 149 do Código Penal considera trabalho análogo ao de escravo tanto o trabalho forçado, na linha da Convenção n. 29 da OIT, como o trabalho em condições degradantes (p. ex., o trabalho desempenhado no campo sem registro em CTPS, sem EPI´s e sem acesso a água potável ou a sanitários, com abrigo coletivo em barracões), o trabalho sob jornada exaustiva (e.g., o trabalho desempenhado durante 15 a 18 horas/dia, como já se identificou na Justiça do Trabalho) e o trabalho em regime de servidão por dívidas.
Essa última hipótese traz a lume outra situação tipificada pela Lei n. 13.344: a do tráfico de pessoas para fins de sujeição a qualquer tipo de servidão. Convém ter em mente que “servidão” é expressão mais abrangente que a de “trabalho em condições análogas a de escravo” (porque pode haver inclusive servidão sem trabalho em sentido próprio); e que servidão há, no mundo, de diversas espécies. A espécie identificada no artigo 149 do Código Penal é basicamente a de servidão por dívida, como na se dá na típica situação daquele trabalhador que, ativando-se em propriedade rural, tem de comprar o seu alimento no “barracão” da própria fazenda, sob preços proibitivos (e o faz porque não há qualquer “concorrência” no local e porque se trata de demanda inelástica – i.e., o obreiro precisa se alimentar, independentemente do preço dos mantimentos); em função disso, como o salário ajustado com o empregador é baixo, o trabalhador acaba se endividando. Quando termina o mês, suas dívidas são maiores que o seu salário e ele não pode deixar a fazenda, porque segue devendo ao empregador; isso seguirá se repetindo, mês após mês, evidenciando a restrição indireta à liberdade. Em fazendas do interior do país, na década de noventa do século XX, chegou-se a identificar, em cadernos de “contabilidade” de créditos e débitos de trabalhadores rurais, a expressão “alforria” – para designar justamente o pagamento feito para fazer frente à dívida e “liberar” o trabalhador. O jargão forense identifica essa modalidade de servidão com a expressão “truck system”; ela configura uma das mais encontradiças formas de neoescravidão no território brasileiro. Mas há, mundo afora, outras formas de servidão. Na Índia, p. ex., a OIT indicou, há alguns anos, casos recorrentes de servidão derivada de dívidas que se estabeleciam após acordos familiares para efeito de matrimônio; algo muito diferente desta que é típica da escravidão contemporânea que se pratica no Brasil. Em todo o mundo civilizado, sujeitar o indivíduo à servidão configura grave ilegalidade; e, já por isto, a Lei n. 13.344, inclui a servidão no arco de possíveis finalidades do tráfico de pessoas.
O art. 149-A do CP ainda criminaliza o tráfico de pessoas para fins de extração ou comércio de órgãos, tecidos ou partes do corpo; e estamos, agora, diante dos ensejos de tráfico de órgãos, cada vez mais disseminados no planeta. O comércio da pessoa – ou de partes da pessoa – é uma tragédia contemporânea; e, nada obstante, é extensivamente praticada, porque altamente rentável. Dados de 2016 indicavam o valor de R$ 100 mil para um coração, R$ 80 mil para um rim e R$ 20 mil para uma córnea. A Organização Mundial da Saúde estima que a cada ano são executados, em todo o globo, cerca de 22 mil transplantes de fígado, 66 mil transplantes de rim e seis mil transplantes de coração; nesse universo, 5% dos órgãos transplantados proviriam do mercado negro, com um volume de negócios que pode chegar a 600 milhões/1,2 bilhão de dólares.
E qual é o perfil do sujeito traficado? O Brasil caminha para o seu III Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, com 58 metas focadas na prevenção e repressão do tráfico, na responsabilização dos autores e na atenção adequada às vítimas. Os dados que estão subsidiando essa nova fase revelam que, entre 2014 e 2016, a Secretaria de Políticas para Mulheres do Ministério da Justiça contabilizou, pelo Serviço Ligue 180 (para denúncias relativas à violação de direitos humanos), total de vítimas do sexo feminino superior ao de vítimas do sexo masculino. Com efeito, de 488 casos de tráfico para exploração sexual, 317 envolviam mulheres. No caso de tráfico para submissão à escravidão, de 257 casos relatados, 123 envolviam mulheres. São esses também os dados do UNODC: mulheres (adultas e menores) correspondem a 71% das vítimas do tráfico de pessoas.
Esse é um padrão que deve sensibilizar o legislador. O artigo 149-A estabelece causa de aumento de pena (§1º, II) para o caso de o tráfico de pessoas alcançar criança, adolescente ou pessoa idosa ou com deficiência; mas silencia quanto à condição de mulher. O mesmo se diga, p. ex., do art. 207, §2º, do CP. As estatísticas revelam que, nesse particular, a legislação deveria se adequar à atual realidade exploratória.
Aqueles números, ademais, são números seguramente comprometidos pela imensa subnotificação. Não raro, a vítima do tráfico de pessoas oculta o fato das autoridades locais, ora por desinformação, ora por vergonha, ora por medo. E isso é assim inclusive no tráfico internacional, conquanto a própria Lei n. 13.344 assegure algumas vantagens ao imigrante traficado (como, p. ex., poder ficar residência no país – v. atual art. 18-A da Lei n. 6.815/1980 –, independentemente de sua situação migratória ou mesmo de sua colaboração no procedimento administrativo, policial ou judicial). Daí porque, também no escopo de otimizar a prevenção e a repressão ao tráfico de pessoas, impende intensificar os esforços e aperfeiçoar os métodos de coleta de dados estatísticos acerca dessa indizível chaga social. Se o conhecimento é por si mesmo um poder – inferência atribuída a FRANCIS BACON (1561-1626) –, não será ele menos imprescindível neste peculiar marco sociopolítico. Há que conhecer, sem medos. E agir.