A PIORA NAS CONDIÇÕES DE VIDA DOS BRASILEIROS É CERTEZA COM A REFORMA TRABALHISTA, MAS ESTA AINDA VAI ENFRENTAR A RESISTÊNCIA DOS PRÓPRIOS JUÍZES DO TRABALHO
por ANDRE BARROCAL
Uma rede de shoppings no Espírito Santo abriria as portas de algumas de suas franquias fast-food ,como Bob's e Spoleto, no sábado 11 com 70 novos funcionários. A tropa trabalharia cinco horas no sábado e outro tanto no domingo por 4,45 reais/hora. O anúncio das vagas tinha sido publicado em 26 de outubro e mirava o início da vigência da nova lei trabalhista no dia de estreia dos contratados. Bob's e Spoleto reclamaram em público do franqueado, o grupo empresarial Sá Cavalcante, devido à irrisória remuneração oferecida, 44,5 reais pelo expediente semanal, mas em vão. Choveram CVs de interessados nos empregos, mais de mil em 48 horas.
Essa história mostra o que espera pelos brasileiros com a reforma trabalhista patrocinada pelo impopular Michel Temer e o mais patronal Congresso dos anais do País. Mais batente, menos salário, menos direitos. Uma volta espiritual a uma das marcas da nação, a escravidão, embora o presidente chame a nova lei de "modernização". Se é "moderno" marchar rumo ao século XIX, quando ainda havia escravos por aqui e apenas arremedos de revolução proletária no mundo, ele está certo. É, mas o "modernizante" sonho temerista e empresarial ainda enfrentará uns percalços na Justiça do Trabalho, uma disputa jurídica que um dia terá de ser resolvida pela Suprema Corte, o STF.
A reforma cria novas formas de contratação destinadas, na prática, a enterrar o legado de Getúlio Vargas, que instituiu a Carteira de Trabalho em 1932, criou a Justiça do Trabalho em 1941 e promulgou a CLT em 1943. Aqueles postos nas franquias capixabas pertencem a uma nova categoria, o trabalho intermitente, na qual a pessoa fica à disposição do emprego, mas só ganha pelas horas de serviço em si. Para arrancar algo parecido com férias, 13- salário proporcional, FGTS e INSS, o brasileiro terá de ser bom de gogó, não terá a seu lado as garantias da Carteira Profissional e da CLT. Situação parecida com a do emprego home office, outra novidade, em que o expediente é em casa, com regras que impedem caracterizar vínculo com o contratante, para protegê-lo de processos, A jornada de trabalho pré-reforma era de oito ou nove horas por dia? Agora poderá chegar a 12 horas. O tempo dentro de transporte até o local efetivo de trabalho (hora it itineré) podia ser contado como expediente para fins de salário, jornada e benefícios, algo comum com cortadores de cana e metalúrgicos? Acabou. Benefícios extras como vale-refeição, vale-transporte e creche podiam ser obtidos em negociações sindicais? O trabalhador terá de se virar sozinho para consegui-los, pois a reforma libera as negociações individuais. Aliás, as negociações, individuais ou coletivas, passam a valer acima dos direitos da CLT. Os benefícios coletivos seguiam válidos sempre que o patrão se negasse a renegociar a ultratividade? A reforma a extinguiu, ponto para Gilmar Mendes, o juiz do STF que em 2016 dera uma liminar abolindo a ultratividade.
A homologação de demissão era feita pela empresa perante o sindicato da categoria do dispensado, uma forma de aproximar o trabalhador de seus defensores? Não precisa mais. Quando ia à Justiça contra o empregador, o funcionário podia pagar seu advogado com parte do que ganhasse? Agora terá de pagar honorários à parte, vença ou perca. Uma ação por dano moral, por exemplo, podia ter pedido de indenização na quantia que o autor da ação julgasse merecedor? Surgiu uma regra: no máximo 50 vezes o valor do salário. Quer dizer, quanto mais explorado, menos vale um trabalhador. Soa familiar com a história nacional? "Com essa reforma, o trabalhador volta à condição da escravidão, absolutamente sob a vontade do patrão", afirma o presidente da CUT, Vagner Freitas.
"Esta reforma tem uma relação óbvia com a nossa escravidão, é uma herança dela", diz o sociólogo Jessé Souza, autor do recém-lançado livro A Elite do Atraso, em que defende que o grande traço brasileiro é a escravidão, não a corrupção. "A sociedade brasileira até hoje não aprendeu a encarar as classes populares como importantes para o desenvolvimento. Aproveitou a situação de agora para impor um grau de exploração maior."
A situação aproveitada foi o desemprego em alta herdado por Temer de Dilma Rousseff, cerca de 11 milhões de pessoas. Com o peemedebista, as demissões ainda galoparam e os desocupados atingiram o recorde de 14 milhões em abril. Em setembro, eram 13 milhões. A queda, segundo o IBGE, decorre do avanço da informalidade, do mesmo gênero estimulado pela "modernização". Registre-se que a CLT nunca impediu a abertura de vaga. De 2001 a 2014, o mercado ganhou 22 milhões de ocupados. A proporção de pessoas com carteira assinada era de uns 45% e resvalou em 60%. Incrementos interrompidos com a recessão autoinduzida pelo Ministério da Fazenda a partir de 2015, com a austeridade de Joaquim Levy, levada adiante com Henrique Meirelles.
Um estudo de agosto feito por economistas do Itaú estima que a reforma vai gerar 1,5 milhão de empregos e o desemprego, cair 1,4 ponto porcentual. Animador? Não. Nessa toada, em quatro anos, não serão cobertas sequer as demissões da era Temer. Para Clemente Ganz Lúcio, do Dieese, é difícil dizer ao certo o que veremos, mas dá para arriscar. "E provável que a renda do trabalhador caia", diz. Pior para a economia e o mercado interno. Com a finada CLT em vigor, a remuneração média no Brasil pulou de 1,3 mil reais mensais em 2001 para 2,1 mil reais em setembro passado, informa a Pnad, do IBGE. Pelo observado em outros países, afirma Lúcio, outra tendência é mudar o perfil das vagas. Uma substituição das seguras (carteira assinada) pelas de tempo parcial (intermitentes, home office etc.). Precarização, em suma, algo que pode dar as caras já no Natal.
Essa precarização aconteceu na Espanha, pátria de reformas em 2010 e 011, apontada por Temer como inspiração. Em um estudo de 2013, o economista José Manuel Lago Penas, da Fundação 1de Maio, comparou o que ocorreu no emprego na recessão local de 2009 e na de
2012, períodos pré e pós-reforma. No primeiro ano, 815 mil assalariados e 396 mil autônomos foram despedidos. No segundo, 904mil assalariados. Já os autônomos subiram 54 mil. Outra constatação: as reformas aceleraram as demissões. Na recessão de -3,7% de 2009, elas vitimaram 1,2 milhão de pessoas. Na de -1,4% de 2012,850 mil, proporcionalmente mais. Na Europa, berço da primeira grande lei trabalhista - o Factory Act inglês, de 1833 - a vetar emprego a menores de 9 anos e limitara 12 horas diárias a jornada, vários países embarcaram em reformas após a crise global de 2008. Deu no quê? O desemprego de 7,6% em 2008 fechou na casa de 10% em 2015 e 2016.
Números à parte, a reforma induz uma importante mudança qualitativa no País. "É o fim do trabalho como conhecemos, da sociedade salarial iniciada na década de 1903", teoriza Mareio Pochmann, ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Vão sair de cena os assalariados com carteira assinada e entrar os PJs, os autônomos. Uma transformação, diz o economista, já decorrente do recuo do peso da indústria no PIB, hoje de 10% (era de quase 30% nos anos 1970), e do avanço do setor de serviços. "A sociedade industrial apontava para uma 'medianização'. A reforma vai consolidar um mundo do trabalho extremamente polarizado, ao esvaziar os postos intermediários. Assim, adeus classe média." Um fenômeno, afirma, parido pelas multinacionais, que no passado já foram fontes de empregos cobiçados e hoje só querem saber de se instalar onde pagam menos. "O Brasil aderiu a um sistema neocolonial, de menos salários." Um café da manhã, em 29 de setembro, na Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos, em Nova York, sobre a reforma, ilustra como funciona esse neocolonialismo. Um dos empresários presentes, Terry Boyland, da CPQI, prestadora de serviços a bancos, não se conteve ao saber que a nova lei permite a terceirização total, mas impõe 18 meses de quarentena para quem quiser demitir um funcionário CLT e recontratá-lo como terceirizado. "Então quer dizer que ainda não vamos poder reduzir salários? Isso é a coisa mais anticapitalista que existe", comentou, segundo a Folha deS.Paulo.
Cautela nas demissões é o que espera Wagner Santana, presidente de um dos maiores sindicatos do País, o dos metalúrgicos do ABC, representante de 73 mil trabalhadores, dos quais 62 mil cobertos por acordo coletivo nascido. "Uma parte das empresas vai demitir para recontratar, sim, mas em muitas delas há receio do jurídico quanto a passivos futuros. Acredito mais no medo que na boa vontade das empresas", diz. O sindicato renovou, em setembro, seu acordo com os empregadores e conseguiu incluir uma cláusula de renegociação, caso a outra parte invoque a nova lei para rever algo. A convenção tem cerca de 80 itens, dos quais, ouve-se por aí, 39 estariam na mira de empresários.
Estes estão cheios de motivo para erguer um busto ao presidente do Tribunal Superior do Trabalho, Ives Gandra Martins Filho, um dos cérebros da reforma, além de seu porta-voz. Em outubro, na sede da Confederação Nacional da Indústria (CNI), ele comentou que agora "os advogados dos empregados vão pensar dez vezes antes de entrar com ação (trabalhista), porque sabem que serão responsabilizados". E atacou o "ativismo judicial" da Corte que comanda. Que "ativismo"? Explicou em inglês, em junho, em Washington, em palestra no think tank conservador Wilson Center. Desde 2011, disse, o TST criou 34 jurisprudências muito pró-trabalhador, aquele brasileiro que ganha hoje 2,1 mil mensais, em média. E concluiu: "A reforma é uma reação newtoniana do Congresso e da sociedade ao excesso de protecionismo da Justiçado Trabalho".
homem do Opus Dei parece não dar bola à encíclica papal Rerum Novarum, de 1891, defensora de melhores condições de trabalho ao operariado. E nem ao papa Francisco, que em abril mandou carta a Temer com críticas às reformas trabalhista e previdenciária, pois são sempre os mais pobres que "pagam o preço mais amargo e dilacerante de algumas soluções fáceis e superficiais para crises que vão muito além da esfera meramente financeira". Folha de S.Paulo da segunda 6, Temer foi de franciscana sinceridade: "Para garantia de emprego, tenho de reduzir um pouquinho, flexibilizar um pouquinho os direitos sociais". Ou seja, a reforma é para cortar direitos. Em setembro de 2016, o presidente ilegítimo dizia que governo não seria "idiota" de tirar direitos dos trabalhadores. Em maio passado, em um desvario comemorativo de um ano de sua gestão, era explícito: "Não haverá nenhum direito a menos para o trabalhador". Passaria no teste do confessionário?
Temer despachou a reforma ao Congresso em dezembro de 2016, a mexer em sete artigos da CLT, mas foi da parceria entre Gandra Filho e Gilmar Mendes que saiu o grosso da nova lei. Uma obra financiada em parte pela Friboi-JBS, um dos campeões de processos trabalhistas. Em 30 de junho de 2016, o IDP, escola do ministro-empresário Mendes, criou um grupo de pesquisa "buscando encontrar soluções para os problemas que ora são mais cruciais na seara laborai, passíveis de embasar projetos de lei ou ser supedâneo para decisões judiciais". Os estudos foram coordenados pelo presidente do TST. Por um acordo de maio de 2015, o IDP recebeu 2,1 milhões de reais da Friboi e parte da bolada custeou o grupo, conforme a Folha. O primeiro produto dos estudos foi um caderno de 30 de março com uma penca de propostas. Em 12 de abril, o deputado Rogério Marinho, tucano potiguar que deu a feição final à nova lei, divulgava seu parecer. Mexia em 117 artigos da CLT "A coincidência entre os eixos centrais da reforma e as linhas de pesquisa do grupo do IDP é absoluta", diz Hugo Cavalcanti Melo Filho, presidente da Associação Latino-Americana de Juízes do Trabalho. "A lógica que direcionou o trabalho do relator é em tudo coincidente com a visão dos ministros Gilmar e Ives Gandra."
A abrangência da reforma sem o devido debate com a sociedade é razão para a Associação Nacional dos Magistrados (Anamatra) considerar que "a Lei n13.467/2016 é ilegítima, nos sentidos formal e material". Posição aprovada em outubro na II Jornada do Direito Material e Processual do Trabalho, a reunir em Brasília cerca de 600 juízes, advogados trabalhistas e fiscais do Trabalho, dentro de um pacote com 125 enunciados, uma espécie de roteiro crítico à nova lei. Os enunciados são forte prenúncio de batalha judicial a respeito da nova lei.
Um dos enunciados diz que os juízes têm direito à livre interpretação. Outros são pura pancada. Trabalho intermitente indiscriminado, por exemplo, não deve ser aceito pelos juízes. Idem para a terceirização no setor público e, no setor privado, só deve valer se houver equivalência salarial entre terceirizado e não terceirizado. Jornada de trabalho de 12 horas diárias não pode ser negociada individualmente, apenas por meio do sindicato. E por aí vai.
O enunciado da "ilegitimidade" foi proposto pela juíza Valdete Souto Severo, do Rio Grande do Sul, e tinha um complemento radical, "e os juízes não deveriam aplicar", não aprovado. "O Código de Processo Civil levou cinco anos de debates para ser alterado e a reforma trabalhista, só alguns meses. O resultado foi uma lei ruim, com muitas deficiências, lacunas, inconstitucionalidades", afirma o presidente da Anamatra, Guilherme Guimarães Feliciano. "Não sei se haverá mais juízes com os enunciados ou com a lei, mas, certamente, a lei vai parar no STF, a sociedade tem de ter paciência. Podemos levar até cinco anos para o assunto ser pacificado."
No STF, há quem tenha visão parecida com a da Anamatra. E o caso de Ricardo Lewandowski, que deve ter deixado horrorizada uma plateia engravatada com uma palestra, em 4 de agosto, em Belo Horizonte, em um seminário organizado pelo Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros local. Para ele, acordo valer acima da lei remete à Revolução Industrial do século XIX, em que o trabalhador "ficava à mercê dos efeitos perversos do capitalismo selvagem". Direitos como greve, jornada de trabalho limitada, salário mínimo, sindicalização, proteção à mulher e ao menor "não foram estabelecidos a partir de uma lógica apenas econômica, ou de mercado, mas para equilibrar a relação assimétrica entre o capital e o trabalho". Ao encerrar o discurso, deixou algumas perguntas. Por exemplo, a nova lei é compatível com um dos objetivos do País descrito na Constituição, o de "erradicar a pobreza, a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais"?
Especialista em Direito do Trabalho, professor da USP e advogado consultor de empresas, Estevão Mallet também aponta a abrangência da lei como causa de dúvidas. Por isso tem recomendado cautela à clientela. "A reforma vai gerar muita discussão, resistência. Há quem diga que ela viola a Constituição, tratados internacionais, não se sabe se ela vale para contratos atuais ou só para os novos, várias passagens dela não são claras. Teremos um período de grande incerteza." Para ele, a reforma não é "nem só negativa nem redentora". A polêmica cobrança à parte de honorários dos autores de ações seria positiva, já a prevalência do acordado sobre o legislado sem que se mexa na estrutura sindical, de modo a fortalecê-la e torná-la representativa, negativa.
Para engrossar o caldo, na sexta-feira 10, centrais sindicais fariam protestos contra a reforma. Algumas, casos da UGT e da Força Sindical, queriam a volta do Imposto Sindical, extinto pela nova lei. O governo planejava baixar uma Medida Provisória para alterar a reforma, e uma das novidades poderia ser a volta do imposto. Mas Rodrigo Maia, presidente de uma Câmara dos Deputados com 43% de empresários e só 26% de assalariados, não queria nem ouvir falar em MP. Ele é da opinião de que a Justiça do Trabalho "não deveria nem existir". "A lógica dessa lei é o fim da Justiçado Trabalho, porque ela realmente vai perder a função", diz um alto magistrado trabalhista. "Será o início da Justiça do Capital... Essa reforma me lembra aquele filme Tempos Modernos", diz outro.
Será que foi nessa "modernidade" descrita em 1936, sobre a exploração do personagem de Charlie Chaplin", que Temer se inspirou para bolar a retórica presidencial sobre a reforma?