Gilmar Mendes diz que tema é polêmico e se usa como exemplo: 'Meu trabalho é exaustivo, mas não acho escravo'
Renata Mariz, Eduardo Bresclani e Karla Gamba
-Brasília- A Organização Internacional do Trabalho (OIT) informou ontem que a portaria do governo que mudou as regras de combate ao trabalho escravo poderá ser analisada por seu Comitê de Peritos. Por meio de nota, a entidade afirmou que as novas normas podem provocar um enfraquecimento da fiscalização, com consequente "aumento da desproteção e vulnerabilidade de uma parcela da população brasileira já muito fragilizada'! Mas enquanto a OIT e vários outros grupos manifestaram preocupação, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes ironizou.
Embora ainda não tenha lido a portaria, Mendes disse que pode haver quem enquadre funcionários que atuam nas garagens de tribunais como submetidos a trabalho escravo. O ministro disse que ele próprio faz trabalho "exaustivo" por atuar também no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que preside neste momento:
- Esse tema é muito polêmico. O importante é tratar do tema em um perfil técnico, não ideologizado. Nós mesmos já tivemos no STF debates a propósito disso, em que se diz que alguém se submete a trabalho exaustivo. Eu, por exemplo, acho que me submeto a um trabalho exaustivo, mas com prazer, não acho que faço trabalho escravo, corro do Supremo para o TSE.
A portaria publicada no início da semana determinou que a lista suja - de empregadores autuados por trabalho escravo - seja divulgada "por determinação expressa" do ministro do Trabalho, o que antes cabia à área técnica. Ela define ainda novos conceitos de práticas ligadas ao trabalho análogo à escravidão. Para que sejam caracterizadas a jornada excessiva ou a condição degradante, por exemplo, agora é preciso haver também restrição de liberdade do trabalhador.
Em relatório de 2016, o Comitê de Peritos da OIT já havia recomendado ao Brasil que eventuais modificações sobre o conceito de trabalho escravo fossem amplamente discutidas com a sociedade, assim como a manutenção da lista suja e o fortalecimento do modelo de inspeção. "O Brasil corre o risco de interromper essa trajetória de sucesso que o tomou um modelo de liderança no combate ao trabalho escravo para a região e para o mundo',' afirma a nota de ontem da entidade.
No relatório do ano passado, a OIT encorajou o governo a consultar autoridades como a auditoria fiscal do trabalho, o Ministério Público e a Justiça trabalhista. "Modificar ou limitar o conceito de submeter uma pessoa a situação análoga à de escravo sem um amplo debate democrático sobre o assunto, pode resultar em um novo conceito que não caracterize de fato a escravidão contemporânea'', dizia o texto.
Parlamentares, auditores e entidades ligadas à Justiça do Trabalho fizeram ontem um ato no Salão Verde da Câmara contra a portaria. O juiz Guilherme Feliciano, presidente da Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (Anamatra), alegou preocupação com os precedentes que ela pode abrir: - O Brasil foi, na América, o último país a abolir a escravidão. Que não seja essa portaria o horizonte para que se tome o primeiro país a fazer o caminho de volta. Essa portaria representa uma invasão da competência legislativa do Congresso, que definiu quais são as quatro condutas básicas que configuram a escravidão contemporânea, e também da independência técnica dos juízes federais e trabalhistas.
Carlos Silva, presidente do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho, ressaltou que a medida contraria convenções internacionais assinadas pelo Brasil:
- Essa portaria tenta revogar a Lei Áurea. O ministro resolveu deixar de lado o Código Penal Brasileiro, em seu artigo 149, e rasgar todas as convenções internacionais assinadas por esse país, ratificadas pela OIT, certamente com um único motivo, que é atender ao pedido dos ruralistas. Estes, sim, que têm interesse no conceito reduzido que está sendo apresentado no texto da portaria.