Uma portaria do Ministério do Trabalho que altera a definição conceitual de trabalho escravo para fins de fiscalização e resgate de trabalhadores e trabalhadoras gerou grande polêmica na última semana. Além de sofrer críticas de diversas entidades do país como o Ministério Público Federal (MPF) e o Ministério Público do Trabalho (MPT), também foi atacada por organizações internacionais como a ONU e a Organização Internacional do Trabalho (OIT), e de instituições nacionais e internacionais ligadas aos Direitos Humanos. A medida, de acordo com especialistas, é totalmente inconstitucional e um retrocesso nos avanços alcançados ao longo de décadas no mundo todo.
Para a diretora de Cidadania e Direitos Humanos da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), a juíza do trabalho Luciana Conforti, está tudo interligado: a Reforma Trabalhista, a precarização da mão de obra, e a alta do desemprego.
"Nenhum lei cria empregos como foi prometido. A Reforma Trabalhista precariza as relações de trabalho, assim como a terceirização sem limites vai, automaticamente, gerar uma submissão dos trabalhadores e facilitar ainda mais o trabalho escravo", disse Luciana, completando: "Quem defende a portaria do Ministério do Trabalho fala muito do trabalho voluntário. Mas todo mundo sabe que esse 'voluntário' é muito subjetivo quando você não tem escolha".
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O governo de Michel Temer (PMDB) publicou a Portaria 1.129 na segunda-feira (16), que altera as regras para inclusão de nomes de pessoas e empresas na "lista suja", além dos conceitos sobre o que é trabalho forçado, degradante e trabalho em condição análoga à escravidão. Até então, fiscais usavam conceitos da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e do Código Penal.
De acordo com o artigo 149 do Código, quem submete alguém a realizar trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida, está sujeito a pena de dois a oito anos de prisão e multa.
Essa portaria retrocede no conceito de trabalho como algo anterior a abolição
"Em 1995, quando o governo brasileiro reconheceu que havia casos de trabalho análogo ao escravo no país, foi criado um grupo de fiscalização. E essa fiscalização adquiriu uma experiência ao longo dos anos de situações que ocorriam comumente no Brasil", explica a juíza Luciana Conforti.
"Essa escravização hoje ocorre do aumento do desemprego e a necessidade de deslocamento para conseguir se inserir no mercado de trabalho. Enganados com falsas promessas, muitas dessas pessoas acabam se submetendo a trabalhos análogos a escravidão, com condições indignas de trabalho, apenas para sobreviver. Essa Portaria retrocede o conceito de trabalho como algo anterior a abolição", completa.
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Desemprego
A sutil queda na taxa de desemprego no segundo trimestre do ano, encerrado em julho (12,8%), está longe de ser um dado positivo na severa crise econômica do país. O fato de a redução do percentual ter sido impulsionada pela elevação da taxa de informalidade confirma muito mais a precarização e a falta de perspectivas no trabalho formal do que uma luz no fim do túnel.
Não tem como seguir as exigências da portaria, que vai engessar a fiscalização
São mais de 468 mil pessoas entre os empregados sem carteira assinada, e mais de 351 mil pessoas entre os trabalhadores por conta própria. Os dados fazem parte da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua Mensal, divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no fim de agosto, que indica que o país ainda tem 13,3 milhões de desempregados.
"Tem uma questão mundial econômica de baratear o custo da mão de obra, e dessa forma precarizar as condições de trabalho. Esse fenômeno não acontece só no Brasil. Acontece principalmente em países de economia dependente", disse Luciana.
Ela explica que a migração tanto interna quanto externa, em busca de emprego, é um dos principais fatores que levam a uma submissão do trabalhador, e consequentemente à condições degradantes de trabalho.
"Isso é mais comum no meio rural, mas se constata esse tipo de situação até no meio urbano. É uma prática que envolve situações diversas, e que não tem como seguir as exigências da portaria, que não só contraria a lei, mas vai engessar a fiscalização", acrescentou. "E isso não é de hoje", lembrou Luciana ressaltando que os órgãos fiscalizadores já vinham sofrendo cortes brutais de verba, o que já era suficiente para dificultar suas ações. "É uma série de atos que vêm sendo praticados para acabar com essa fiscalização", destacou.
Reformas e Projetos de Lei
A Anamatra esteve em Genebra, na Suíça, para acompanhar a 106ª Conferência Internacional do Trabalho, promovida em junho deste ano pela OIT. A entidade brasileira aproveitou a oportunidade para protocolar dois ofícios junto à Organização, nos quais expõe sua posição contrária à Reforma Trabalhista, que vai entrar em vigor ainda em dezembro deste ano.
"O caso do Brasil já havia sido comentado em Genebra com muita preocupação. Inclusive, com medo de inspirar que outros países da America Latina fizessem o mesmo. O Brasil só não entrou na lista dos 13 países com piores condições de trabalho do mundo porque a Reforma ainda não tinha sido aprovada, e era ainda um projeto de lei", contou a juíza.
Existem vários projetos de lei em trâmite para retroceder no conceito de trabalho escravo
Ela explicou ainda que a Portaria aprova "o que a bancada ruralista não conseguiu fazer legalmente". O Projeto de Lei do Senado nº 432/2013 que pretendia regulamentar a Emenda Constitucional nº 81, foi apontado como um dos principais retrocessos pelo MPF em janeiro deste ano, sob a justificativa de ser uma tentativa de exclusão das modalidades "jornada exaustiva" e "condições degradantes de trabalho" do conceito de trabalho escravo, previsto no artigo 149 do Código Penal.
"Eles não conseguiram através dessa PL, porque é incabível juridicamente. Mas existem vários projetos de lei em trâmite para retroceder no conceito de trabalho escravo. E com essa portaria o que eles fizeram foi atender ao anseio, principalmente da bancada ruralista, para que essa definição de trabalho escravo seja endurecida", completou a juíza.
Críticas nacionais e internacionais
"E agora nós temos todo esse retrocesso que pode colocar o Brasil numa situação muito difícil perante organizações internacionais", explica a diretora da Anamatra. O Brasil era considerado, até agora, referência global no combate ao trabalho escravo, mas a partir dessa Portaria deve começar a ser visto como exemplo do que não deve ser feito, alertou o coordenador do Programa de Combate ao Trabalho Forçado da OIT, Antônio Carlos de Mello Rosa.
"Seria lamentável ver o país recuar com relação aos instrumentos já estabelecidos, sem substitui-los ou complementá-los por outros que tenham o objetivo de trazer ainda mais proteção aos trabalhadores e trabalhadoras", defende a OIT.
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O Ministério Público do Trabalho (MPT), junto com o Ministério Público Federal (MPF), recomendou na última terça-feira (17) a revogação imediata da portaria, sob a justificativa de que ela contraria o artigo 149 do Código Penal, que determina que a jornada excessiva ou a condição degradante é suficiente para caracterizar a prática de trabalho escravo. De acordo com a nova norma, tais elementos só poderiam ser caracterizados caso haja restrição de liberdade do trabalhador.
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"No geral, há uma tendência a precarizar as relações de trabalho. Cada vez menos pessoas têm empregos formais, e os salários estão diminuindo. Agora com a portaria, você se depara com a situação aviltante indigna de trabalho, que antes tinha uma lei para caracterizá-la", criticou Mauricio Ferreira Brito, vice-coordenador da Erradicação do Trabalho Escravo (Conaete) do MPT.
O trabalhador vai pagar um preço muito caro por isso
Para o coordenador nacional da Conaete, Tiago Muniz Cavalcanti, a medida viola tanto a legislação nacional quanto compromissos internacionais firmados pelo Brasil. "O governo está de mãos dadas com quem escraviza. Não bastasse a não publicação da lista suja, a falta de recursos para as fiscalizações, a demissão do chefe da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae), agora o ministério edita uma portaria que afronta a legislação vigente e as convenções da OIT", alerta Cavalcanti.
"A conseqüência é o retorno da barbárie nas relações de trabalho. O trabalhador vai pagar um preço muito caro por isso. E em segunda instância, toda a sociedade com a piora da qualidade de vida", acrescentou Mauricio lembrando que a fiscalização é mais difícil em localidades mais pobres. "O maior índice de trabalho escravo está em lugares que têm desenvolvimento humano inferior a média, como no interior do Pará, do Maranhão e de Minas Gerais, por exemplo", enfatizou.
Para o procurador, a Reforma Trabalhista apenas reforça essa precarização. "Todas essas medidas terão consequências. A Reforma e a Portaria vêm para reforçar essa relação submissa do trabalhador, e transformar a categoria do emprego em artigo de luxo. E sob o discurso de que 'alguma coisa é melhor que nada', faz com que o risco da atividade deixe de ser do empresário e passe a ser do empregado".
"A quem interessa que a mão de obra fique cada vez mais precarizada? Ao trabalhador que não é", questionou Mauricio.
Na mesma linha crítica, a Comissão Pastoral da Terra também se posicionou contra a medida, assim como o procurador-geral do Trabalho em exercício, Luiz Eduardo Guimarães Bojart, a ministra dos Direitos Humanos, Luislinda Valoise, e a ONU Brasil que afirmou na última sexta-feira (20) que, no país, "muitos casos [de trabalho escravo] ocorrem de forma velada" e que "o medo, o desconhecimento sobre os direitos básicos das pessoas, a submissão física ou psicológica ao empregador e a necessidade de sobrevivência muitas vezes impedem que as vítimas do trabalho escravo denunciem abusos".