Voz própria
A Consolidação das Leis do Trabalho é uma faca de dois gumes: ao mesmo tempo em que fixa patamares básicos para regular a relação entre patrões e empregados, tolhe a autonomia de negociação entre trabalhadores e empresários, impondo a tutela do Estado e atrapalhando um possível equilíbrio. A argumentação faz parte do anteprojeto de lei que pretende fortalecer os acordos coletivos entre trabalhadores e patrões, que foi entregue no dia 15 de agosto ao ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência, Gilberto Carvalho, no ano passado.
O Acordo Coletivo com Propósito Específico, ou Acordo Coletivo Especial (ACE), está previsto em uma proposta criada pelo Sindicato dos Metalúrgicos do ABC paulista e encaminhado ao governo federal, que assumiu o compromisso de enviar a proposta ao Congresso.
A CLT, segundo o sindicato, "estabeleceu excessivo controle do Estado sobre a relação entre capital e trabalho, tolheu a liberdade sindical e restringiu o campo das negociações coletivas". Os elementos, diz cartilha distribuída pela entidade, são indispensáveis na vida democrática e exigidos nas convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
A proposta coloca que podem ser negociadas por acordo coletivo as condições específicas de trabalho que, em decorrência de especificidades da empresa e da vontade dos trabalhadores, justifiquem adequações nas relações individuais e coletivas de trabalho e na aplicação da legislação trabalhista, exceto as previstas no artigo 7º da Constituição.
O artigo em questão lista direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, como seguro-desemprego, remuneração do trabalho noturno, repouso semanal remunerado, férias anuais remuneradas, licença-maternidade e, é claro, o salário-mínimo. Assim, o salário do trabalhador continua "imexível", como disse o ex-ministro do Trabalho Antônio Rogério Magri, assim como outros pontos listados no artigo.
Para celebração do ACE, nos moldes da proposta, os sindicatos precisam ter sindicalização de mais da metade dos funcionários da empresa com a qual será celebrado o contrato. O acordo deverá ser aprovada por pelo menos 60% dos trabalhadores presentes em assembleia, com a participação de pelo menos 50% dos empregados da companhia.
Ordens de cima
Acordos coletivos são, por diversas vezes, motivo de discussão na Justiça do Trabalho. Normalmente, trabalhadores - ou o Ministério Público do Trabalho -, quando discordam de acordos feitos entre sindicatos e patrões, vão aos tribunais pedir de volta direitos dos quais os sindicatos abriram mão.
Um dos grandes problemas, diz o ministro do Tribunal Superior do Trabalho Ives Gandra Martins Filho, é que tais reclamações acabam gerando decisões favoráveis a apenas uma das partes. "Para negociar, cada um cede um pouco. Porém, muitas vezes, a Justiça anula apenas as cláusulas referentes aos direitos do trabalhador, deixando de lado aquilo do que as empresas abriram mão", explica.
As decisões de Gandra têm sido no sentido de, quando é necessário anular um acordo, todo o contrato deve ser anulado também. É preciso, porém, valorizar mais o acordo coletivo, diz o ministro. "Muitas vezes, os dois lados vêm juntos ao tribunal peticionar, dizendo que o acordo é melhor para ambos, mas o Ministério Público do Trabalho diz que aquele acordo não é bom, como se soubesse mais o que é melhor para o trabalhador do que o próprio trabalhador."
"O patrão que negocia um acordo coletivo com um sindicato, atualmente, só pode dormir 50% tranquilo", diz a advogada trabalhista Ana Amélia Mascarenhas Camargo. "Com a estrutura que temos hoje, é fácil um trabalhador ou o MPT irem no dia seguinte à Justiça alegando que o sindicato não é legítimo ou autêntico."
E muitas vezes o sindicato não é mesmo autêntico. Por isso mesmo Ana Amélia elogia a proposta do ACE. Com critérios bem definidos para a criação do acordo - como quórum mínimo -, a Justiça terá como determinar claramente a autenticidade de um sindicato para fazer acordos, criando a tão sonhada segurança jurídica.
Atualmente, sindicatos são mal vistos, por conta da própria estrutura sindical nacional. Os ministros Luiz Philippe Vieira de Mello Filho e Lelio Bentes Corrêa, do TST, por exemplo, reconhecerem recentemente a necessidade de o Brasil tornar-se signatário da Convenção 87 da OIT, que estabelece a liberdade sindical. Para os ministros, os trabalhadores é que devem decidir, a partir de seus próprios interesses e conveniências, a qual sindicato se filiar. As entidades que não atendessem aos anseios dos trabalhadores não sobreviveriam, pois não teriam filiados.
Gênio Getulio "Getulio [Vargas] foi genial, mas não bom, ao criar a CLT, a Justiça do Trabalho e a estrutura sindical, fazendo com que o trabalhador estancasse, sem possibilidade de se organizar por mudanças", diz a advogada Ana Amélia. O ciclo vicioso, diz ela, faz os trabalhadores buscarem sempre soluções individuais para seus problemas e a Justiça do Trabalho ser a maior arrecadadora da Previdência Social.
Essa também é a opinião da professora de Direito da Universidade de Toronto Mariana Mota Prado. Em palestra intitulada "Como os sindicatos podem ser um obstáculo à reforma da legislação trabalhista no Brasil", ministrada durante evento da faculdade de Direito da USP no dia 15 de agosto, Mariana disse que, ao ter a CLT e a Justiça do Trabalho como referências, o trabalhador "não procura o sindicato e não melhora a estrutura sindical".
A ideia de garantias rígidas, explica a professora, precisa ser analisada levando-se em conta seus custos e benefícios. Segundo ela, oferecer muitas garantias ao empregado fazia mais sentido na época em que não havia tanta mobilidade de capital como hoje. Atualmente, o custo de tais benefícios tem sido a migração de multinacionais para outros países, reduzindo - ou deixando de aumentar - o mercado de trabalho. Isso pode ser lido também como um menor leque de opções para o trabalhador, diz ela.
Além disso, a superestrutura da Justiça do Trabalho - com 1,3 mil varas, 24 tribunais regionais e um tribunal superior - não dá conta dos 3 milhões de novos processos trabalhistas que dão entrada, anualmente, no país, diz Sérgio Nobre, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo.
Legislado e combinado "O projeto estabelece que o que é negociado prevalece sobre o que está legislado", resume o presidente da Federação Nacional de Metroviários, Paulo Pasin, para explicar seu descontentamento com a proposta. Segundo ele, o projeto permite que patrões coajam funcionários a aceitar determinadas circunstâncias com, por exemplo, a ameaça de demissão em massa.
"Não é um projeto novo. No governo de Fernando Henrique Cardoso, houve um projeto muito semelhante, tendo como foco flexibilizar os direitos dos trabalhadores", lembra Pasin.
A única diferença entre os dois projetos é a segurança dada aos direitos previstos no artigo 7º da Constituição, segundo o diretor para assuntos legislativos da Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (Anamatra), Germano Siqueira.
Segundo ele, o projeto é ruim por causa da fragilidade do modelo sindical brasileiro. Ou seja, a pouca representatividade dos sindicatos coloca em xeque o negociado. "As pessoas têm a mania de achar que a lei no Brasil precisa ser sempre reexaminada. Nos países de cultura mais definida, a lei mais antiga é melhor, mais legitimada."
O projeto, diz manifesto assinado por advogados, juízes, desembargadores, professores e líderes sindicais, "só pode servir mesmo para conferir a possibilidade de se reduzirem direitos, revitalizando o eufemismo da "flexibilização"".
Segundo o documento, o ACE, se aprovado, servirá para permitir divisão das férias, parcelamento do 13º salário e redução do intervalo para refeição e descanso, por exemplo. Também servirá, acusam, para "ampliação das vias precarizantes como o banco de horas e as contratações por prazo determinado, que em nada fomentam o emprego ou incentivam a economia e ainda abrem uma porta extremamente perigosa para o incremento do comércio de gente, como a terceirização ou a intermediação das cooperativas de trabalho".