Um dos destaques da Revista Consulex deste mês é o artigo “Terceirização: de volta ao passado”, de autoria do vice-presidente da Anamatra, Paulo Schmidt. No texto, o magistrado alerta para a “mais profunda e retrógrada reforma trabalhista que o mais empedernido liberal jamais pensou”. A preocupação de Schmidt está, em especial, com o relatório que o deputado Roberto Santiago apresentou ao PL nº 4.330/2004 (autoria do Deputado Sandro Mabel). “Sob o ponto de vista do futuro da nação, a terceirização é um retrocesso sem precedentes. Todos sabemos que a terceirização não cria emprego”, alerta.
Confira abaixo a íntegra do texto
TERCEIRIZAÇÃO: DE VOLTA AO PASSADO
Por Paulo Schmidt, vice-presidente da Anamatra
O atual estágio de evolução social da sociedade brasileira está longe, muito longe de ter eliminado as mazelas sociais que afligem uma parcela considerável da população brasileira. Os indicadores da saúde pública, da educação, da segurança e de distribuição de renda, para citar apenas alguns, comprovam a afirmação.
Em qualquer meio, acadêmico ou não, é comum a afirmação de que é pelos frutos do trabalho que ocorre a mais consistente promoção social do ser humano, rotineiramente nascido em círculos de grandes dificuldades materiais. Isso é especialmente verdadeiro em se tratando de Brasil.
A civilização ocidental já experimentou épocas negras na relação capital/trabalho. Contudo, séculos de história estabeleceram, como resultado da luta da classe operária, padrões mínimos de direitos que são – ou deveriam ser – assegurados aos empregados, embora, no Brasil, a principal garantia trazida pela Constituição Federal de 1988, que é proteção contra a despedida imotivada, esteja carente de regulamentação que o Congresso Nacional teima em deixar sempre para depois.
Pois bem. Não estamos na iminência de o Congresso avançar e proteger, de alguma forma, a relação de emprego contra a despedida imotivada. Muito pelo contrário.
Ao longo das últimas décadas, nas diversas plataformas e projetos, cada novo governo sempre tratou de incluir a reforma trabalhista entre os objetivos estratégicos. Se nada radical e abrangente foi feito, muito se deveu à resistência das entidades sindicais e/ou aos ciclos de crescimento econômico, que não são muito propícios a mudanças nas regras do jogo. Dois exemplos disso: a alteração que o Governo Fernando Henrique propôs no art. 618 da CLT no início da década de 2000, contra o qual resistiram bravamente os sindicatos e a Anamatra; as significativas taxas de crescimento econômico do país na segunda metade da mesma década. Como estamos tratando de contratações pela CLT, não enfocamos a mitigação de direitos que os servidores públicos padeceram nos últimos 20 anos.
O brasileiro desavisado não pense que, por algum milagre, a reforma trabalhista não está na agenda do Governo. De fato, ultimamente o assunto não aparece entre os grandes temas que o Executivo, aqui e acolá, volta e meia planta na mídia, seja para avisar o poderoso e invisível “mercado”, seja para “agradar” a base parlamentar, os “investidores, o capital especulativo, as agências de risco, etc, etc, etc. Mas está sim na agenda política de Brasília. Ainda bem que as centrais sindicais dão sinais de que acordaram para a gravidade do momento que representa a aprovação do relatório que o deputado Roberto Santiago apresentou ao PL nº 4.330/2004 (autoria do Deputado Sandro Mabel). A regulamentação proposta para o dito “fenômeno da terceirização no Brasil” é a mais profunda e retrógrada reforma trabalhista que o mais empedernido liberal jamais pensou. E tudo isso sem falar na palavra “reforma” que tantos fantasmas ressuscita.
Apenas as questões centrais e mais preocupantes do tema “terceirização” demandariam um livro para serem abordadas sem pressa e com a atenção que merecem. E isso não pode ser feito aqui, cujo objetivo é chamar a atenção para gravidade do momento. Contudo, é preciso que as questões centrais sejam, ao menos pontuadas, até mesmo para estimular a reflexão e o debate.
A primeira, diz com a diferenciação clara que deve haver entre atividade-fim e atividade meio, e essa distinção deve ser feita no texto da lei, para que não tenhamos, no futuro, empresas sem empregados; a segunda, nos casos em que a lei venha eventualmente a admitir a terceirização, a empresa tomadora deverá responder solidariamente com a prestadora pelo pagamento dos eventuais créditos trabalhistas dos empregados da contratada, a exemplo do que já ocorre com o crédito previdenciário; terceiro, igualdade de salário e de condições de trabalho, higiene e segurança entre os empregados da empresa contratante e os empregados terceirizados, pois não há qualquer razão que justifique que dois empregados, no mesmo local de trabalho, recebam salários diferentes ou que não tenham as mesmas condições de trabalho; quarto, a lei deve vedar, expressamente, a subcontratação, fonte direta da precarização em cadeia, em que a responsabilidade do empregador vai se diluindo da empresa tomadora para a primeira terceirizada, desta para a segunda, da segunda para a terceira e assim por diante, fenômenos conhecidos como quarteirização, quinteirização e assim por diante. Ao fim e ao cabo, ninguém é responsável pelos créditos do empregado, pelos tributos e contribuições sociais, pela segurança dos empregados e etc.
Algumas lógicas perversas então na gênese da terceirização. E a principal é tornar o custo fixo dos empregados de uma empresa em custo variável representado pelos empregados da prestadora. Como não há milagre nisso, esse custo variável se traduz em redução da “despesa” pela redução dos salários dos terceirizados, pelo aumento da jornada, precarização das condições de trabalho e pela transferência de responsabilidade de uma empresa para outra. Aliás, essa empresa terceirizada, não raro, é de fundo de quintal sem qualquer suporte patrimonial e que, muitas vezes, é constituída para vencer uma licitação ou “ganhar” um contrato com uma empresa privada, em ambos os casos pelo menor preço. E quanto menor for esse preço, maior será o ganho da empresa que terceiriza. Por óbvio que é o trabalhador que paga essa conta. Com a utilização de mão-de-obra terceirizada, a empresa tomadora realiza o mesmo trabalho com custo menor e busca se eximir da sua responsabilidade social, sendo-lhe pouco ou nada relevante que isso seja obtido com baixos salários, condições de trabalho precárias e jornada exaustiva. Infelizmente é a lógica perversa do lucro a qualquer custo.
Sob o ponto de vista do futuro da nação, a terceirização é um retrocesso sem precedentes. Todos sabemos que a terceirização não cria emprego, muito antes pelo contrário. A média de jornadas além das 8h diárias é imensamente superior entre os empregados terceirizados, o que sugere a extinção de postos de trabalho que, em condições normais, seriam ocupados por empregados da própria empresa.
O desequilíbrio muito acentuado entre as forças políticas e sociais em determinado momento histórico propicia inflexões que, no mais das vezes, importam em retrocessos sociais que comprometem gerações e gerações, com prejuízos irreparáveis ao desenvolvimento de uma nação. É preocupante essa atual “vontade” do Congresso Nacional em regulamentar a terceirização. Lamentavelmente, pelo relatório do Deputado Roberto Santiago apresentado ao PL 4.330/2004, será em direção ao passado.
Se não fosse um preço demasiadamente caro para os trabalhadores e que compromete seriamente o futuro do País, apenas lamentaria o fato de que a Presidenta Dilma vai manchar irremediavelmente a sua imagem e que ingressará na história como a responsável, por ação ou por omissão, por ter dado marcha ré no desenvolvimento do Brasil como nação justa, solidária e preocupada com o bem estar de seu povo. Uma pena.