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22/04/25

Defesa da competência da Justiça do Trabalho: Associações trabalhistas debatem mobilização nacional

Reunião na sede da Anamatra contou com a participação de representantes da ANPT e da ABRAT

Anomalias da Justiça do Trabalho

Márcia Novaes Guedes (*)

Nessas últimas eleições,  juízes que tinham por competência decidir querelas eleitorais não fizeram segredo de suas opiniões políticas.  O farfalhar de  togas entre microfones e holofotes deixou democratas perplexos e só mesmo sendo cega como Themis para não corar de vergonha.  Na ocasião, Luiz Gonzaga Belluzo e Walquiria Domingues Leão Rego [Carta Capital, 08/11/06 ], lembrando Franz Neumann,  alertaram para o risco da excessiva  e anômala  partidarização  da Justiça.

Em Behemoth [New York, 1942],  Neumann investiga a contribuição decisiva dos juízes na estruturação do estado nazista e da racionalização da economia alemã.  Por um viés, sentenças brandas que mal ocultavam a parcialidade do posicionamento  em favor dos interesses industriais e financeiros  e dos apaniguados de Hitler que golpeavam  a Constituição.  Por outro, sentenças draconianas na aplicação das leis de eugenia racial e na condenação criminal dos movimentos sociais.  Sem dúvida, a justiça política compõe uma das páginas mais negras na  vida  da República de Weimer. 

Se a  opção política de juízes  aparece fácil no calor dos debates eleitorais, difícil é percebê-la através da jurisprudência.  Para darmos um exemplo,  a justiça do trabalho,  que nos anos setenta foi mola propulsora da integração dos direitos sociais,  tornando paradigmáticas as conquistas dos operários do ABC, hoje,  apesar de no Brasil a despedida abusiva ser a regra desde 1967, com a lei do FGTS,  sua jurisprudência  dominante  abraçou  os ideais da flexibilização das relações de trabalho em detrimento do paradigma  constitucional e quase ninguém notou.

O  Direito do Trabalho  possui especificidades de tal ordem,  que  lhe permitiram colocar-se a uma  certa distância do positivismo legalista dogmático. Tais especificidades derivam da sua especial atenção a uma forma de legitimação social. Essa singularidade está presente no fenômeno da auto-regulação sindical; no fato  de ter na jurisprudência uma fonte empírica do direito;  e na visão funcional da norma. A norma é também a variante de uma estratégia  mais ampla de formação do consenso, daí que,  em todo o sistema jurídico ocidental,  fora do common-law,  existe uma norma de proteção geral dos trabalhadores, denominada de contrato mínimo. 

Com o fim da relação matrimonial entre capital e trabalho,  abriu-se  um abismo  entre o passado  e o  futuro do direito do trabalho.  Emerge uma legislação recheada de imperativos de modernização dos conflitos distributivos e de sustento a uma organização produtiva.  Chanceladas pela jurisprudência,  essas leis acabaram atraindo o direito do trabalho  para a órbita de um verdadeiro direito da economia  ou  da racionalização econômico-social,  responsável  por uma  significativa  transformação  nas técnicas legislativas do sistema de fontes e da forma de legitimação do direito do trabalho,  o que com propriedade Massimo D`Antona (Jurista italiano assassinado pelas Brigadas Vermelhas em 20-05-1999)  denominou de oportunismo metodológico.

 Os sindicatos,  que,  historicamente,  se constituíram com o escopo de articular o conflito  capital x trabalho de forma autônoma, pouco a pouco vão se transformando em instituições de "governo privado"  que são utilizadas estrategicamente  para assegurar as políticas do estado de racionalização econômica e de neutralização dos conflitos distributivos.  Na jurisprudência dominante prepondera a interpretação de tipo  empírico instrumental. A inflação de premissas empíricas no raciocínio jurídico cresce com a difusão dessa legislação de tipo "provedoral".  Predomina a  racionalidade matemática e apenas os objetivos concretos, a  expectativa e o cálculo estratégico do legislador  podem justificar racionalmente a norma. 

Ocorre que a  aquisição daqueles objetivos está na redução legal dos vínculos garantistas e dos encargos salariais diretos e indiretos. Na prática, significa dizer que  uma premissa empírica, mais precisamente, uma previsão econômica,  termina por justificar racionalmente o tratamento diferenciado, silenciando um princípio interno do ordenamento jurídico, imediatamente correlacionado com um valor de justiça: a igualdade  formal e a  proibição de discriminar. Em uma palavra,  o princípio constitucional da isonomia é ignorado.

Atrasada de 40 anos, a constituição brasileira de 1988  rompe com o pacto liberal e adota a fraternidade da justiça, a valorização do trabalho e a dignidade humana como paradigmas do ordenamento jurídico nacional.  Com a autoridade de quem ajudou a escrever nada menos do que a constituição de Weimer,  Franz  Neumann ensina:  "a constituição escrita em ocasião de grandes reviravoltas históricas contém sempre decisões acerca da estrutura da sociedade futura. Uma constituição, por isso mesmo, é mais do que seu texto legal: é também um mito que exige devoção a um sistema de valores eternamente válidos".  Apesar da vedação de retrocesso social, a jurisprudência trabalhista dominante caminha francamente dissociada do paradigma constitucional. 

 A  precarização das relações de trabalho não teria acontecido com a velocidade e  a eficiência verificadas  não fosse a adesão de uma significativa parcela de  juízes à racionalização econômica.  O pensamento único estendeu-se sobre a idéia  de que o desemprego era inexorável  e que a única forma de amainar seus efeitos era aceitar a flexibilização  das relações de trabalho.

Passados 20 anos, o engodo da flexibilização  é tão visível,  que  a  OIT já  providenciou um outro termo para defini-la:  "trabalho decente".  Longe de evitar  o desemprego em massa,  esse apanágio  da  razão  cínica  criou um regime de trabalho precário que não pára de crescer,  e, dado seu alto poder de instrumentalização das pessoas,  favorece a banalização do mal.  O psicoterror no trabalho prospera na new economy,  o assédio moral e  a gestão por estresse  são empregados como solução fisiológica de profilaxia  e  ajuste  de  condutas no ambiente de trabalho, em favor de uma  razão instrumental,  antiética e  antimetafísica.

Com a posse do novo governo revigorou-se o debate em torno do direito do trabalho e seus corolários, a CLT  e a Justiça.  A Justiça do Trabalho é  acusada de aumentar o desemprego, e, pasmem,  por  Ministros do TST!  A acusação  tanto é grave quanto injusta. A jurisprudência predominante vem conjugando direitinho o verbo da flexibilização,  e os tribunais  desencorajando a atuação dos poucos "juízes fundamentalistas",  minoria de crédulos  que tomam por fundamento de suas decisões os direitos humanos,  com ameaças e punições administrativas em nome da disciplina judiciária.  Historicamente,  o ativismo político do judiciário resultou  em aumento do seu poder discricionário.
  
  O alvo do estranho "fogo amigo" é o art. 619 da CLT.  Combinado com o art. 468,  esse artigo  forma a coluna dorsal do Direito do Trabalho e pode ser traduzido por uma única palavra: proteção. Claro, o direito do trabalho é especial,  precisamente porque protege a parte débil do contrato [o ser humano].  O art. 468  proíbe a modificação do contrato que prejudique o empregado, ainda que ele tenha consentido. Já o  art. 619 impede a violação do estatuto mínimo. Os contratos não podem prevalecer sobre o legislado quando este é mais benéfico.  Em síntese, não se pode contratar menos direitos de quanto garante a lei que tutela o economicamente mais fraco.
 
  Os juristas sabem muito bem  que a flexibilização  é a liberdade reivindicada pelo capital  e que o Direito,  balizado pelo constitucionalismo  moderno,  cujo  fundamento é a  proteção da dignidade daqueles que vivem do trabalho,  busca  frear.  Da lição dos filósofos colhemos que entre liberdade e escravidão há um nexo indissolúvel.  Toda liberdade tem isso de inquietante, ou é total e abarca tudo, inclusive a conduta individual, ou não é.  Qualquer  vínculo em favor dos menos fortes é considerado  limitação da liberdade dos outros. O problema é que,  para se  manter uma verdadeira e própria liberdade, antes,  liberdade não existe sem escravidão.
  
Bahia, 15 de fevereiro de 2007.

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(*) Juíza do Trabalho da Bahia e doutoranda pela Universidade de Roma2 [Tor Vergata].

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