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Nova Competência da JT - trabalho e consumo: teoria do relativismo ontológico?

Durante anos operamos dogmaticamente o direito na questão atinente à existência ou não da relação de emprego.
Sebastião Tavares Pereira, juiz da 12ª Região

Ao terminar a leitura do livro da Anamatra sobre a competência, voltei ao início e reli a primeira frase de Grijalbo Fernandes Coutinho, na apresentação. Era a mais verdadeira do livro "este livro é a fotografia do início de uma revolução".O sentido é figurado, naturalmente. A reformulação competencial trabalhista é tão ampla, completa e profunda que se assemelha, mesmo, a um evento revolucionário.

As revoluções criam os vazios sobre os quais se erigem as novas ordens jurídicas, ensina Manoel Gonçalves Ferreira Filho. As revoluções arrasam para reconstruir. Por isso mesmo elas chocam a todos. Com mais contundência àqueles que não acreditam na possibilidade da mudança. Mas no livro da Anamatra, mesmo as exposições dos céticos, em saudosos depoimentos, são animadoras. Apontam desconforto e isso é sinal da percepção de que as coisas estão mudando.

Há uma reconstrução em andamento. É perceptível. Veja-se a polêmica envolvendo relação de trabalho e relação de consumo.

Durante anos operamos dogmaticamente o direito na questão atinente à existência ou não da relação de emprego.  Juristas filósofos do passado fixaram as balizas para o deslinde da questão. Conceituaram relação de emprego, definindo-lhe os elementos ou, em termos lógico-formais, determinando-lhe a compreensão. Quem não compulsou Russomano a respeito? Ou Süssekind? ou Délio Maranhão?  Presentes a pessoalidade, a não-eventualidade, a onerosidade e a subordinação jurídica, lá estava ela, a relação de emprego, o terror do réu  e a satisfação do autor.  Dogmatizada a definição, não precisamos mais filosofar a respeito. Viramos tecnólogos aplicadores da norma, como diria Tercio SampaioFerraz Jr.

Daí, talvez, a dificuldade para fazermos, agora, o que o meu professor de Política Jurídica chamou de "exercício de identificação do gato". Quando Kelsen criou a Ciência do Direito, dando-lhe um objeto - a norma jurídica -, surgiram intensas discussões a respeito de as sentenças serem ou não normas jurídicas (questão já superada!).  Sabendo-se que a norma jurídica tinha os atributos distintivos da exigibilidade e da imperatividade, bastava fazer o tal exercício pois, se "algo tem pêlo de gato, rabo de gato, cai como gato e mia", então é gato.

Pois bem. Uma das poucas unanimidades que encontrei no livro da Anamatra, e que apenas repete os compêndios editados até agora, é que a relação de emprego é uma espécie do gênero relação de trabalho. Ou seja, a relação de emprego é uma relação de trabalho que tem alguns atributos a mais (ou elementos a mais no conceito). Tratando-se de espécie, para chegar ao gênero bastaria fazer o caminho inverso, subir na escala. Abstraindo-se da relação de emprego o que a individualiza como espécie, deveria surgir uma relação de trabalho.

Mas as coisas complicaram-se. Há um ente estranho no pedaço, uma mistura de trabalho com consumo, ou de consumo com trabalho, que está pondo todo mundo em polvorosa.

Das teorias conceituais no horizonte, que tentam modelar esse novo ser, chama a atenção uma que poderia ser chamada de relativismo ontológico, em homenagem a Albert Einstein.  Está nascendo um novo ser jurídico que "é conforme o ponto de referência." Uma contribuição da Ciência do Direito aos sonhos mais audaciosos do grande físico do século passado.

Afinal, esse ser concretiza e justifica todas as dúvidas sobre as possibilidades epistemológicas do homem. Do ceticismo filosófico-sistemático de Francisco Sanchez a Montaigne, de Descartes e seu racionalismo metódico ao idealismo crítico-relativista kantiano e ao também relativista quadrimensionalismo espaço-tempo de Einstein, todos parecem estar ganhando uma comprovação jurídica. A falibilidade dos sentidos não mais poderá ser negada, na esteira da imensa dúvida dos modernos. Está nascendo um ente que consegue "ser para um o que para outro não é".  Ele será, se confirmada juridicamente sua existência, a prova irrefutável de todo argumento em prol da impossibilidade de sabermos diante do que, afinal, nos encontramos. 

Arrepia-me pensar que logo os juízes, que conforme a piadinha "pensam ser deuses", terão de ter a habilidade especial de ver e identificar este ente  que é, mas também e ao mesmo tempo, não é, esse ser "bi-aparente", esse monstro "bi-fenotípico". Segundo o concurso em que tenham passado - Justiça Ordinária ou Especial Trabalhista - ganharão o dom especial para discernir as duas realidades ônticas simultâneas desse ser ideal, inédito, que só mesmo a interpretação jurídica conceberia para o mundo.  De fato, não só os juízes estarão armados desse engenho de discernimento. Estima-se, pela boa lógica, que ao menos os advogados estarão habilitados para saber, segundo o caso, a que Justiça se dirigir.  Haja exceções de incompetência!

Aqueles que sentirem que a ação nasceu do ente enquanto relação de trabalho deverão ir à Justiça do Trabalho. Se foi o monstro sob a forma de relação de consumo que ensejou o litígio, a Justiça Comum deverá ser procurada.

Segundo alguns, a solução para o paradoxo é simples.  A criatura é misteriosa, mas não tanto. Para fins competenciais, que afinal é o que interessa, ela será segundo quem a esteja olhando.  Um ente, portanto, não objetivo, mas subjetivo.  Ele se concretiza na subjetividade do observador. Einstein adoraria essa relativização extremada, capaz de mudar a própria natureza da coisa.  E o gáudio de Kant seria ainda maior, pois para ele vige o " [...] princípio de que o ser existe e é inteligível de direito, mas que o nosso espírito só pode atingi-lo reconstruindo-o segundo leis subjetivas. `Desde então o objeto para nós pode ser o objeto tal qual foi elaborado pelas nossas faculdades cognitivas."  Entre os dois relativismos, parece-me que o einsteiniano afina-se melhor às lucubrações que andam por aí, pois se diz "[...] que dois acontecimentos se produzem num mesmo lugar e a um mesmo tempo" (relação de consumo e relação de trabalho) e isso, para Einstein, "[...] é porque se cruzam as linhas do universo, às quais pertencem,  individualmente,  os dois acontecimentos." Poder-se-ia dizer, agora, que essa admissão de dois seres simultâneos pelo cruzamento da linha temporal foi a incursão mais feliz e antecipada de Einstein na seara jurídica.

Assim, aos olhos do prestador de serviços, o ente será relação de trabalho. E isso lhe dará ação na Justiça do Trabalho.  Para ele aconteceu uma relação de trabalho.   Aos sentidos visuais do recebedor dos serviços, o ente será relação de consumo, o que lhe dará ação na Justiça Comum, pois para ele existiu uma relação de consumo. Platão, sem dúvida, também tinha razão. 

Esqueçamos o mundo real, lá fora, e nos concentremos nas sombras projetadas e que os olhos de cada um alcançam, na versão subjetivista kantiana.  Vivamos as sombras.

Veja-se que, no raciocínio acima, o ente objetivo, que será levado à apreciação judicial,  é e não é ao mesmo tempo. Como relação de trabalho, é óbvio que deveria poder, nesta condição, suscitar conflito e pretensão de qualquer dos pólos.  Mas cada pólo deve ir a uma Justiça diferente, dizem os adeptos da teoria da relatividade ontológica.  Assim, o prestador que vê aquela relação como de trabalho, terá de defender-se na Justiça Comum, se a pretensão for do consumidor. E o recebedor dos serviços, que a vê como relação de consumo, terá de defender-se na Justiça do Trabalho. 

Para buscar o direito, vai-se a uma Justiça. Citado como réu, ir-se-á à outra.  Os juízes, por seu turno, submetem-se à mesma distorção ontológico-subjetiva kantiana ou ao mesmo movimento cruzado einsteiniano, só podendo contemplar o ser sob uma de suas possíveis faces.  Os juízes estarão postados sob linhas do tempo diferentes.

Parece que a boa lógica e a Constituição mandam que se alguém vê um litígio nascer de uma relação de trabalho, e não interessa o pólo da relação de que a esteja contemplando,  então deverá ver o deslinde do mesmo na Justiça do Trabalho, nos termos expressos do artigo 114: ações oriundas das relações de trabalho, sem qualquer distinção. 

Ao ler o mestre Amauri Mascaro Nascimento, no livro tantas vezes citado, senti um certo desconforto. Dizia ele que estava tendo início uma oportunidade para a jurisdição trabalhista " [...] mostrar que nela realmente estuda-se, interpreta-se e aplica-se o direito na sua plenitude e não se resolve apenas questões de horas extras [...] ." Estou, agora, a ponto de lhe dar razão. Por isso ele é o Amauri Mascaro Nascimento e eu sou apenas eu.  

Ações oriundas da relação de trabalho devem poder ter dois titulares, pelo princípio jurídico da bilateralidade atributiva. Qualquer dos pólos da relação é potencial titular desta ação.  Visões artificiosas, ainda que encantadoras porque se afinem com antigos discursos, não podem suplantar a nova e revolucionária postura constitucional. A Constituição não fez do consumidor um dos "núcleos duros", na feliz expressão de Melhado, para definição de competência. Fê-lo com o trabalho.

A admiração, por maior que seja, pelos avanços que o Código de Defesa do Consumidor representou, não nos pode levar a inverter a ordem natural das coisas. Primeiro a Constituição. Depois o CDC. Se há conflito entre eles, prevalece a primeira. 

Aliás, pode haver conflito na letra. No espírito, entretanto, parece que não há.  A parte vulnerável, na chamada relação de consumo (que ninguém nega coexista com uma relação de trabalho, até onde nos interessa aqui!) é a que deveria receber acesso à Justiça do Trabalho (simplicidade, economia, processo indiscutivelmente mais rápido e eficaz). Entre a empregada doméstica lesada e o médico prestador de serviço (não há aí nenhuma discriminação com os dois - mera constatação fática das situações médias socio-econòmicas!), quem deveria ter o acesso franqueado à JT?  Se mandar a empregada doméstica para a Justiça Comum, para reparar eventuais danos, e o Médico para a Justiça do Trabalho, para discutir eventuais divergências quanto ao pagamento dos honorários, inúmeros princípios constitucionais estarão sendo arranhados.

As relações de trabalho podem ser o cerne de uma relação de consumo. Isso depende de vários fatores, mas, notadamente, do fato de que alguém ofereceu "serviço" e outro o adquiriu. A relação, na especificação geral de seu regramento material, deverá orientar-se pelo CDC. Assim como uma relação de emprego deverá orientar-se pela CLT. E um contrato de representação deverá regrar-se pela lei 4886/65 e o da doméstica pela Lei 5883 e o dos estagiários pelas leis respectivas.

Do ponto de vista da competência, diz a Constituição a partir da EC 45/04, as ações oriundas dessas relações de trabalho devem ser levadas à JT. Relação de consumo e relação de trabalho não são mutuamente excludentes. Pelo contrário. Como já dito, há unânime entendimento a respeito.  Presente uma relação de trabalho, não pode a lei infraconstitucional, ou a interpretação jurisdicional, com base numa segunda relação subjacente, por mais meritórios que sejam os argumentos, desmontar a distribuição competencial determinada pela Carta Magna.  O que deve prevalecer é o comando constitucional.

Nem mesmo a teoria da relatividade ontológica, nas suas duas vertentes - kantiana ou einsteiniana - ainda que explique esse ente que meu professor  chamaria de cachogato ou de gatorro, pode negar a constituição. Se for possível identificar o gato, ainda que não gostemos do ente híbrido, parece-me que a Justiça do Trabalho deve ser o destino da ação.  Isso porque a relação de consumo nem de longe foi aventada como baliza de definição de competência pelos constituintes originário ou derivado.

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Dr. Marco Aurélio Marsiglia Treviso
Diretor de Assuntos Legislativos da Anamatra