Reforma trabalhista: “1º de maio é muito mais um dia de luta do que de comemoração”, afirma presidente da Anamatra

Para Guilherme Feliciano, condição jurídica do trabalhador retrocedeu em anos, décadas ou até séculos

A luta histórica por melhores condições de trabalho, que marcou todo o século XIX e se plasmou em uma série de protestos e greves nos Estados Unidos, deu origem ao 1º de maio, o “Dia do Trabalhador”, comemorado em praticamente todos os   países ocidentais. A data foi formalmente instituída pela Segunda Internacional dos Trabalhadores, em 1889, para homenagear os trabalhadores mortos na Revolta de Haymarket.

Mais de cem anos depois, o Brasil se vê em meio à extensa mudança de sua legislação trabalhista. A Lei 13.467/2017 alterou mais de 100 pontos da CLT, que é de 1943; e, em muitos contextos, significou  a supressão ou relativização de direitos sociais, em colisão com o texto constitucional e com as convenções internacionais de que o Brasil é signatário.


Para o presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), juiz Guilherme Feliciano, considerando-se a circunstância da recente reforma trabalhista, a data de 1o de maio de 2018 é muito mais uma data de luta do que de comemoração. Em entrevista à equipe de imprensa da Anamatra, Feliciano alerta para o cenário de insegurança jurídica inaugurado pela reforma, critica o discurso do Estado mínimo entoado pelas atuais forças políticas dominantes e defende que os Poderes Legislativo e Executivo aguardem o pronunciamento do Judiciário antes de editar novas leis (...), “na medida em que pretendam emendar uma costura que, de origem, foi mal feita”.


Confira a íntegra da entrevista:


1 - O 1º de maio este ano mais do que nunca é uma data de luta e não de comemoração?
R.: Certamente é muito mais um dia de luta do que de comemoração especialmente porque, após a entrada em vigor da Lei 13.467/2017, que dispõe sobre a reforma trabalhista, e a própria caducidade da MP 808 – que de fato equacionava algumas das muitas inconstitucionalidades da reforma -, a condição jurídica do trabalhador brasileiro retrocedeu, a depender da matéria, em anos, em décadas ou até em séculos.


2 - Qual a razão do desmonte do estado social na atualidade? E qual o papel da Justiça do Trabalho neste cenário?

R.: As forças políticas dominantes, neste momento, têm entoado a cantilena do Estado mínimo; e, ao revolverem as visões de mundo que definiram o pensamento da humanidade no final do século XVIII, evidentemente demonizam a intervenção estatal civilizatória em relações privadas, que é o que essencialmente acontece no Direito do Trabalho. A própria Justiça do Trabalho sofre os impactos dessa compreensão reducionista do papel do Estado. À Justiça do Trabalho cabe o papel de manter-se fiel à sua missão constitucional, que é a de fazer valer os direitos sociais vilipendiados e de (re)equilibrar as relações entre o capital e trabalho, mesmo diante das chantagens que sistematicamente se estabelecem em torno da sua existência institucional. 


3 - A reforma trabalhista trouxe muitas dúvidas e, inclusive, decisões polêmicas na Justiça do Trabalho? O senhor acha que esse cenário tende a se estabilizar?

R.: Há décadas não vivíamos tamanha  insegurança no mundo do trabalho e no ambiente de negócios; provavelmente não víamos nada como isto desde a própria edição da CLT, em 1943. Basta ver o cenário atual: demandas trabalhistas em agudo declínio, 20 ações diretas de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (STF) questionando pontos diversos da reforma trabalhista, uma Medida Provisória que não foi votada e que recebeu quase mil propostas de emendas, e, de modo geral, uma imensidão de dúvidas e de disputas de sentido. Cabe exatamente à Justiça do Trabalho estabilizar esse cenário, construindo paulatinamente, sob o prisma da Constituição da República e das normas internacionais, e a partir de uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico em vigor, os conteúdos normativos finais que derivarão do texto da Lei 13.467/2017. Assim se dá na República: o Poder Legislativo faz as leis, o Executivo as sanciona e o Judiciário as interpreta e aplica. A questão é que a lei em vigor contém tantas atecnias, lacunas e imperícias que o papel hermenêutico do juiz do Trabalho será especialmente desafiador. A nossa expectativa, no entanto, é de que, em 2019, já tenhamos uma cena mais consolidada quanto à compreensão dos dispositivos mais polêmicos da lei da reforma trabalhista. De fato, se um dos motes da reforma trabalhista, ainda durante a tramitação do PL 6787/2016, era o de conferir maior segurança jurídica às relações de trabalho, o resultado dessa reforma, neste momento, é o oposto diametral desta pretensão: caos e insegurança extrema.


4 - Como a Justiça do Trabalho formará uma jurisprudência sobre pontos da reforma com o temor dos trabalhadores de procurarem seus direitos?

R.: Essa é uma excelente questão. A queda abrupta do número de ações trabalhistas, a que me referi na resposta  anterior, tem duas claras razões de ser: a uma, o fato de que muitos escritórios de advocacia estão em compasso de espera, aguardando alguma estabilização da jurisprudência; e, a duas – e fundamentalmente –, o temor incutido nos trabalhadores, quanto ao ingresso em juízo para pleitear as suas pretensões. Está claro, para nós, que infundir medo não é um bom caminho – e tanto menos um caminho constitucionalmente legítimo – para que excessos de litigiosidade ou mesmo “aventuras jurídicas” sejam prevenidas. Este óbice terá de ser superado para que efetivamente a jurisprudência em torno dos vários pontos polêmicos da reforma trabalhista consolide-se com normalidade. Uma boa ocasião para isto virá nesta semana de 1º de maio, uma vez que está pautada, para quinta-feira (4/5), a ADI 5766, da Procuradoria-Geral da República, sob a relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, que discutirá justamente a garantia constitucional do acesso à Justiça à luz da Lei 13.467/2017. Se o STF reconhecer os excessos inconstitucionais que a lei praticou, especialmente em relação ao cidadão pobre reconhecido em juízo - esse mesmo que, pelo texto da lei, terá de suportar honorários sucumbenciais advocatícios e os honorários periciais, a despeito de sua pobreza -, teremos uma porta entreaberta para que o acesso à Justiça do Trabalho recupere a sua condição de regularidade. De todo modo, havendo ou não o reconhecimento de tais inconstitucionalidades, nossa expectativa é de que, em alguns meses, as estatísticas sinalizem o retorno da demanda aos contingentes numéricos anteriores, por uma simples razão: em alguns aspectos - como, por exemplo, na exigência de formulação e pedidos certos na petição inicial -, a reforma chega a estimular novas ações, ao invés de preveni-las.


5 - Dezenas de ações questionam a reforma no STF, que era regulada por Medida Provisória, que perdeu o efeito. Não é paradoxal o Governo pensar em um projeto de lei para alterar uma lei que modificou a CLT em cerca de 100 pontos.  Qual o melhor caminho: o Legislativo ou o Judiciário?

R.: Sim. É paradoxal.  Demonstra que, de algum modo, o Governo reconhece diversos dos equívocos encaminhados no texto original do relatório do Deputado Rogério Marinho. Os conteúdos  da MP n. 808 já sinalizavam esta confissão de erro, em pontos como o da maior vulnerabilização da gestante e da lactante em ambientes insalubres, o da autorização da jornada 12x36 por acordo individual, o da anomia parcial a que se submetia o trabalhador intermitente e o da possibilidade de se negociar coletivamente temas afetos à saúde e à segurança do trabalho. O fato, porém, é que, neste momento, quaisquer novas incursões legislativas “retificadoras” trarão ainda mais insegurança. O Governo ora anuncia edição de decreto executivo para regulamentar aspectos polêmicos da reforma - e é preciso ver que decretos não podem inovar no mundo jurídico –, ora fala em projeto de lei para repontuar aspectos que constavam da MP e perderam a eficácia. O Parlamento, por sua vez, começa a discutir um projeto de decreto legislativo para regular as relações trabalhistas havidas entre 14 de novembro e a segunda-feira última (23/4). Tudo isso adensa o caldo de incertezas que foi oportunizado pela lei da reforma. O papel institucional mais importante neste momento é, sem dúvidas, o do Poder Judiciário, para o efeito de pacificar tantas questões e encontrar o norte hermenêutico mais adequado para esse verdadeiro labirinto normativo. E em especial aos juízes de 1º e de 2º grau da Justiça do Trabalho esse dever compete. Nós, da Anamatra, estamos certos de que a Magistratura do Trabalho não falhará em sua função maior, que é a de equacionar os litígios entre o capital e o trabalho com a perspectiva da vontade constitucional originária. Isso levará o seu tempo, mas ocorrerá. Aguardando os pronunciamentos judiciários, poderá talvez o legislador prevenir a edição de novas leis que, repito, poderão trazer ainda maiores confusões no contexto institucional, na medida em que pretendam emendar uma costura que, de origem, foi extremamente  mal feita.

Receba nossa newsletter

SHS Qd. 06 Bl. E Conj. A - Salas 602 a 608 - Ed. Business Center Park Brasil 21 CEP: 70316-000 - Brasília/DF
+55 61 3322-0266
Encarregado para fins de LGPD
Dr. Marco Aurélio Marsiglia Treviso
Diretor de Assuntos Legislativos da Anamatra
Utilizamos cookies para funções específicas

Armazenamos cookies temporariamente com dados técnicos para garantir uma boa experiência de navegação. Nesse processo, nenhuma informação pessoal é armazenada sem seu consenso. Caso rejeite a gravação destes cookies, algumas funcionalidades poderão deixar de funcionar.