Em artigo intitulado “A PEC Nº 55 e o conto do vigário“, publicado no Blog do Frederico Vasconcelos (Folha de S.Paulo) neste sábado (12/11), o presidente da Anamatra, Germano Siqueira, e o vice-presidente, Guilherme Feliciano, abordam o atual cenário político sob a ótica da possível aprovação da Proposta de Emenda à Constituição 55/2016 (antiga PEC 241). "E é ela que, entre outras medidas, limitará a despesa primária total para o exercício de 2017 pelo equivalente à despesa primária realizada no exercício de 2016, corrigida pela variação do IPCA, e nada mais; e determinará que assim se proceda, sucessivamente, pelos próximos vinte anos, manietando qualquer possibilidade real de melhorias substantivas em áreas estratégicas como saúde, educação e segurança pública", destacam os dirigentes em um trecho. Leia a íntegra do artigo abaixo, ou clique aqui para acessar.
“A PEC Nº 55 e o conto do vigário“
Germano Siqueira e Guilherme Guimarães Feliciano, respectivamente, presidente e vice-presidente da Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho).
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Conta-se que a expressão “conto do vigário”, de uso disseminado no Brasil e em Portugal, deva-se a uma antiga disputa oitocentista, entre os vigários das paróquias de Pilar e da Conceição (em Ouro Preto), por uma mesma imagem de Nossa Senhora. O vigário de Pilar teria então proposto que “Deus” decidisse a refrega: a imagem seria amarrada em certo burro, que por sua vez seria deixado à própria sorte, entre as duas igrejas; e a imagem então pertenceria àquela paróquia para a qual rumasse espontaneamente o animal. Como o burro tomou a direção da igreja de Pilar, ali permaneceu a imagem. O que, porém, o vigário da Conceição não sabia é que aquele burro não era um animal qualquer, mas o de estimação do vigário de Pilar (de modo que, afinal, só fez mesmo voltar para casa). “Conto do vigário” designaria, desde então, engodo, ilusão, artifício. O grande Fernando Pessoa contava as histórias de Manuel Peres Vigário, que vivia de trapaças. E o próprio adjetivo “vigarista” derivou desses contextos.
Pois bem. Dito isso, vamos ao ponto.
No dia 15 de junho deste ano – atente-se para a data −, o ainda vice-presidente da República apresentou à Câmara dos Deputados o que viria a ficar conhecido como a “PEC do teto de gastos”, ou “PEC do fim do mundo”. Falamos da PEC nº 55/2016 – que tramitou na Câmara dos Deputados sob o número 241/2016 −, destinada a “[a]ltera[r] o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal”, aprovada na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal no último dia 9 de novembro.
Já aprovada na Câmara dos Deputados em dois turnos, ela agora segue para o Plenário do Senado. E é ela que, entre outras medidas, limitará a despesa primária total para o exercício de 2017 pelo equivalente à despesa primária realizada no exercício de 2016, corrigida pela variação do IPCA, e nada mais; e determinará que assim se proceda, sucessivamente, pelos próximos vinte anos, manietando qualquer possibilidade real de melhorias substantivas em áreas estratégicas como saúde, educação e segurança pública (que obviamente requerem investimentos extraordinários, além dos atuais, ou estaríamos já no melhor dos mundos).
O rigor fiscal vai ainda além e, no caso de descumprimento daqueles limites, suspender-se-ão os efeitos do artigo 37, X, da Constituição, instando-se os servidores públicos a suportarem pessoalmente todas as perdas inflacionárias do período, sem possibilidade de qualquer reposição; e, da mesma maneira, vedar-se-á a criação de novos cargos, empregos ou funções, como também a contratação de pessoal e a própria realização de concursos, estagnando-se o serviço público, que paulatinamente perderá fôlego ante as acumuladas vacâncias não repostas (com exceção honrosa para os cargos efetivos; mas, mesmo assim, a critério de um administrador premido pela ideologia das contenções).
Justificando-a, os Ministros do Planejamento e da Casa Civil registravam, entre outros pontos, a existência de um “agudo desequilíbrio fiscal que se desenvolveu nos últimos anos” , refletido na “deterioração do resultado primário nos últimos anos, que culminará com a geração de um déficit de até R$ 170 bilhões este ano, somada à assunção de obrigações, (que) determinou aumento sem precedentes da dívida pública federal”.
E prosseguia, na exposição de motivos da proposta, pontificando que, “[d]e fato, a Dívida Bruta do Governo Geral passou de 51,7% do PIB, em 2013, para 67,5% do PIB em abril de 2016 e as projeções indicam que, se nada for feito para conter essa espiral, o patamar de 80% do PIB será ultrapassado nos próximos anos”. Ao assinalar esses pontos, defendeu a urgência de medidas de severas contenções de despesas, generalizadas e indiscriminadas, cuja implementação aumentaria a previsibilidade da política macroeconômica e fortaleceria a confiança dos agentes financeiros, “eliminando a tendência de crescimento real do gasto público, sem impedir que se altere a sua composição, reduzindo o risco-país”.
A nós, cidadãos, resta então saber se um regime tão intenso de restrições, jamais visto em outra parte do mundo – não com duração vintenária −, é de fato contingente e necessário. Ou se apenas realiza um projeto político de desconstrução do Estado social e de subalternização do funcionalismo público (desimportante nos Estados mínimos); projeto que, sob o novo governo, viria de todo modo. É dizer: a PEC n. 55/2016 é mesmo a solução emergencial para todos as males, como tem alardeado a grande imprensa? Ou, ao revés, é apenas o “burro” que placidamente caminha na direção daquilo que o Governo e o seu establishment querem?
Vejamos, com alguns dados recentes.
Chamávamos a atenção, há pouco, para a data de propositura da então PEC 241 (15/6). É que no dia 24 daquele mesmo mês (quase dez dias depois, portanto), esse mesmo Governo fez publicar uma Nota Pública, a propósito do plebiscito no Reino Unido (o “Brexit”) e dos seus impactos econômicos, comunicando o seguinte à comunidade internacional (e comunicando-o com verdade, havemos de crer, ou se arriscaria a perder a credibilidade):
“A situação do Brasil é de solidez e segurança porque os fundamentos são robustos. O país tem expressivo volume de reservas internacionais e o ingresso de investimento direto estrangeiro tem sido suficiente para financiar as transações correntes. As condições de financiamento da dívida pública brasileira permanecem sólidas neste momento de volatilidade nos mercados financeiros em função de eventos externos. O Tesouro Nacional conta com amplo colchão de liquidez. A dívida pública federal é composta majoritariamente de títulos denominados em reais. Além disso, o governo anunciou medidas fiscais estruturantes de longo prazo. A recente melhora nos indicadores de confiança e na percepção de risco do país reflete essas ações. Nesse contexto, o Brasil está preparado para atravessar com segurança períodos de instabilidade externa”.
A estranheza é inevitável. Ou bem estamos sob “agudo desequilíbrio fiscal ”, com o “aumento sem precedentes da dívida pública federal”, ou bem estamos em uma situação financeira “de solidez e segurança”, em que “as condições de financiamento da dívida pública brasileira permanecem sólidas” e “o Tesouro Nacional conta com amplo colchão de liquidez”. Ou alguém sustentará a absurda contradição de que estamos “muito bem” externamente e “muito mal” internamente, no pressuposto surreal de que o endividamento externo não interfere com a economia interna (e vice-versa)? Se o país é incapaz de manter a política de valorização do salário mínimo, se não consegue honrar os direitos constitucionais dos seus servidores públicos (artigo 37, X, CF), se não pode prover segurança jurídica para os atuais e futuros aposentados e pensionistas e, mais grave, se confessa publicamente a sua incapacidade de fazer mais investimentos em saúde e educação pública, será capaz de honrar, a tempo e modo, com o serviço da dívida pública externa.
Ou, para usar os exemplos pedestres do discurso oficial recente (algo como “a dona de casa não pode gastar mais do que recebe”, na fantástica presunção de que as nossas casas refletem o ambiente macroeconômico do país), o pai de família que já não consegue honrar com os compromissos assumidos dentro de casa, que não tem condições de oferecer aos filhos um plano de saúde ou uma escola melhor, poderá fidedignamente dizer aos seus vizinhos que está tudo bem, e que não há qualquer risco de que o dinheiro vultoso a ele emprestado deixe de ser devolvido com os juros prometidos?
Essas contradições – ao lado de outras tantas − revelam, afinal, os reais motivos da PEC n. 55. Na verdade, bem longe das razões propagandeadas de forma intensiva pela grande mídia − sem dar voz efetiva, diga-se, aos muitos que pensam de forma contrária −, o que se busca com essa proposta é a inidônea revisão do modelo constitucional do Estado social brasileiro, tal como concebido pelo constituinte de 1987-1988.
Não se trata, pois, de uma “contingência”. Trata-se de uma escolha política. Trata-se daquela escolha política descrita por Zigmunty Bauman, não sem certa dose de ironia, como a do “Estado de Bem-estar social para os ricos que, ao contrário de seu homônimo para os pobres, nunca viu questionada a sua racionalidade”. Mas essa é uma escolha política que, todavia, já não pode haver – não, ao menos, em um ambiente genuinamente democrático −, sem o concurso de uma nova assembleia nacional constituinte. Saúde e educação, por exemplo, são direitos sociais fundamentais insculpidos no artigo 6º da Constituição. E, nessa condição, têm de estar acima dos compromissos com os serviços da dívida pública. Nada mais retilíneo, do ponto de vista jurídico.
Mas a retórica impenetrável da PEC n. 55 permite torcer prioridades, sob os insistentes aplausos da grande imprensa. Com efeito, enquanto os limites do “Novo Regime Fiscal” não se flexibilizam para os necessários investimentos em saúde e educação, excetuam-se por completo para as “despesas com aumento de capital de empresas estatais não dependentes” (texto proposto para o artigo 102, §6º, V, do ADCT). Não haverá óbices, portanto, a que o Tesouro aumente o capital de empresas como Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil e Petrobras e, de forma ainda mais perigosa, nessa mesma categoria, empresas estatais que emitem debêntures, com garantia pública, ferindo diversos dispositivos do art.167 da Constituição. Os projetos de lei PLS 204/2016, PLP 181/2015 e PL 3337/2015 visam “legalizar” esse esquema, que resultará em aumento da dívida pública, provocando enorme rombo nas finanças estatais.
Essas são as chamadas “empresas não dependentes”, i.e., aquelas empresas estatais controladas que não recebem do ente controlador recursos financeiros para pagamento de pessoal ou para despesas de custeio ou de capital. Poderão, todavia, ser “financiadas” de outro modo ou servir para que o Estado esteja a serviço de interesses privados, desde que o Tesouro lhes “engorde” o capital, sem limite (inclusive daquelas que sofreram ataques de corruptos e corruptores ao longo de anos). É, a rigor, manobra destinada a facilitar a operações de venda de ativos, depois de devidamente revalorizados com dinheiro público. Fosse séria a tal PEC de gastos, essas torneiras estariam fechadas, mas não estão. Ao contrário.
Fecham-se as portas para os interesses da sociedade com gastos em educação e saúde (que terão idênticas repercussões no desaparelhamento do sistema de Justiça), ao mesmo passo em que se abrem os portões para os interesses do poder econômico. E, de fato, a Petrobras já anuncia vendas de algumas de suas empresas (Liquigás, Ultrapar ) e alguns campos de produção de petróleo em terra. O Banco do Brasil também comunica a demissão de 18 mil empregados. São iniludivelmente realidades conexas, se imaginarmos um futuro possível de virtuais privatizações em condições generosas.
O economista François Bourguignon, ex-vice-presidente do Banco Mundial, assinala que importante para o Brasil é dar um sinal de que vai controlar melhor as contas públicas, alertando que se a taxa de gastos em relação ao PIB ficar em torno de 15%, o país vai se equiparar a países bem menos desenvolvidos, como os africanos, enquanto o professor Luiz Gonzaga Belluzo (professor titular do Instituto de Economia da Unicamp), em artigo na Folha, sustenta que “o déficit público não resulta de gastança, mas de queda de arrecadação, logo a inflação não resulta de excesso de demanda pública a controlar com juros altos. Segundo, os juros elevados e inexplicáveis são o principal determinante da ampliação da dívida pública, gerando custos que a austeridade do gasto social e do investimento público é incapaz de controlar, tanto mais porque os cortes limitam o crescimento do PIB”. E conclui, quanto à PEC n. 55: “Politicamente, é uma impostura: pesquisas de opinião mostram que a imensa maioria da população (até 98%) aprova a universalidade e a gratuidade da saúde e da educação pública. No mundo acadêmico, além de injusta, a austeridade é vista como contraproducente tecnicamente. O maior risco atual à democracia brasileira é que instituamos uma ditadura de tecnocratas que legitimam, com retórica cientificista, mudanças no pacto social inscrito na Constituição Federal com base em argumentos desatualizados empírica e teoricamente”. Curiosamente (ou congruentemente), pesquisa divulgada há pouco (18.10.2016) pela agência de comunicação Isobar Brasil, com base em 59 mil menções diretas à PEC do teto de gastos nas redes sociais, revela que um percentual muito semelhante àquele (94% dos internautas pesquisados) tem posição contrária à PEC n. 55, quando ainda tramitava como PEC n. 241…
Trata-se, pois, de expedientes retórico-políticos que pretendem impor às instituições brasileiras uma agenda de regressão civilizatória e constitucional, dita “inevitável”, sob a liderança de alguns capitães–do-mato que agora se apresentam como vozes da decência, mas cujos comportamentos recentes pouco ou nada revelam no campo da austeridade fiscal.
E, se ruinosas do ponto de vista econômico, serão tais mudanças ao menos admissíveis do ponto de vista jurídico?
Tampouco.
No campo da saúde, p.ex., as estimativas são de que, à mercê de um “congelamento” de vinte anos no respectivo orçamento, voltemos à condição que o Sistema Único de Saúde apresentava no início da década passada; a rigor, se o “Novo Regime Fiscal” estivesse em vigor entre 2003 e 2015, não teriam sido aplicados no SUS cerca de 135 bilhões de reais, a preços médios de 2015 (o que corresponderia a uma perda superior a tudo o que será empenhado, nesse segmento, em todo o ano de 2016). Com efeito, pesquisas internas do próprio Conselho Nacional da Saúde revelam que, para manter o padrão de investimentos de 2014, o governo deveria destinar cerca de R$ 119 bilhões para a Saúde em 2017 v., e.g., http://epoca.globo.com/vida/noticia/2016/10/o-que-pec-241-muda-na-saude.html); e, no entanto, se aprovada a PEC n. 55, serão aplicados aproximadamente R$ 113,7 (queda estimada de 5% , portanto, já no primeiro ano de vigência da emenda).
Já no âmbito da educação, cenários projetados no âmbito da Câmara dos Deputados sinalizam que, se a PEC n. 55 estivesse em vigor entre 2010 e 2016, a área da educação teria recebido, a cada ano, algo entre 9,6% e 18% daquilo que efetivamente recebeu. No que toca ao Plano Nacional de Educação (PNE), talvez o mais fundamental programa de governo nesse segmento (por justamente envolver metas para todas as etapas da educação básica, atendendo à primeira infância e capacitando os respectivos professores), é certo que a aprovação da PEC n. 55 comprometerá a chamada “meta n. 20”, que propõe o investimento de 10% do PIB na área (isto porque, a bem da verdade, o atual Governo quer romper com quaisquer vínculos entre investimento e crescimento do PIB, pela suposta relação errática que se estabelece entre esse crescimento e a própria arrecadação fiscal). Também haverá provável redução dos investimentos para fins de expansão do número de creches e de repasse às escolas integrais.
E nem se responda a esses números com a tíbia afirmação – que os canais oficiais têm insistentemente reproduzido – que “a PEC não estabelece teto, mas piso”, seja para a saúde, seja para a educação.
O fato é que a PEC n. 55 não apresenta, a rigor, qualquer marco financeiro setorial, seja para mais, seja para menos (os “pisos”, hoje, estão dados pela própria Constituição – v. EC n. 59/2009 e EC n. 86/2015; a PEC apenas prevê que esses “pisos” serão, nos próximos vinte anos, unicamente corrigidos pela inflação). Por outro lado, os “limites individualizados para despesas primárias” da PEC estabelecer-se-ão para os gastos globais, por poder e/ou instituição pública da União (v. artigo 102 do ADCT, na redação da PEC: Poder Executivo, STF, STJ, CNJ, Justiça do Trabalho, Justiça Federal, Justiça Militar da União, Justiça Eleitoral, Justiça do Distrito Federal e Territórios, Senado Federal, Câmara dos Deputados, Tribunal de Constas da União, Ministério Público da União, Conselho Nacional do Ministério Público e Defensoria Pública da União). Essa constatação reforça o vaticínio de que, na prática, dar-se-á a efetiva retração dos investimentos em saúde e educação: certas despesas orçamentárias fixas, ainda se consideradas por unidade ou instituição (e não por área de aplicação), deverão inexoravelmente aumentar; tal é o caso, por exemplo, das despesas com a previdência pública, seja no Regime Geral da Previdência Social, seja ainda nos Regimes Próprios de Previdência Social.
É que as projeções atuariais indicam que a população brasileira em idade ativa (de 16 a 59 anos), como proporção da população total, alcançará o seu pico em cinco anos, quando corresponderá a 64,7% do total; já a partir de 2021, entrará em queda constante, ainda dentro do primeiro terço do período de vigência da PEC n. 55 (v. Projeções Atuariais para o Regime Geral de Previdência Social – RGPS, Ministério da Previdência Social, Secretaria de Políticas de Previdência Social, março de 2013). Logo, haverá naturalmente mais gastos e menos recursos para custeá-los, especialmente em razão do aumento da expectativa de sobrevida e da diminuição da taxa de fecundidade. E a anunciada “reforma da previdência” – a terceira em pouco menos de vinte anos, contando-se a partir da EC n. 20/1998 – não conseguirá fazer frente a tais aumentos; quando muito, minorará a taxa de crescimento dessas despesas fixas. Consequentemente, se tais despesas vão necessariamente aumentar (ainda que a menor taxa), outras rubricas do “bolo” – como, p. ex., os investimentos em saúde, educação e segurança pública – tendencialmente estacionarão, se é que não sofrerão efetivos cortes (já que atualmente tais inversões estão acima dos pisos constitucionais, ao menos no âmbito da União).
Daí que, que em áreas socialmente sensíveis, como notadamente em saúde e educação públicas, haverá irretorquível retrocesso, com restrições de ordem econômico-orçamentária que impactarão no planejamento político e na tecnologia jurídica. Em o fazendo, o Brasil estará, desde logo, violando o compromisso assumido com a Organização dos Estados Americanos, desde 1992 (Decreto n. 678), com a ratificação do Pacto de San José da Costa Rica (Convenção Interamericana de Direitos Humanos), cujo artigo 26 dispõe que “[o]s Estados-partes comprometem-se a adotar as providências, tanto no âmbito interno, como mediante cooperação internacional, especialmente econômica e técnica, a fim de conseguir progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires, na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios apropriados” (g.n.).
A rigor, porém, o Estado brasileiro passa a fazer o contrário. Por via legislativa – a própria PEC n. 55 −, compromete intensivamente a capacidade de investimento no campo social (notadamente em saúde e educação, mas também em ciência e cultura), reservando, nos próximos vinte anos, todo o excedente em relação aos limites do art. 102, §1º, do ADCT, na redação da PEC, para a amortização dos juros da dívida pública. Uma opção socialmente retrocessiva, a despeito de seu compromisso internacional. Nada mais, nada menos. E, ao agredir o compromisso derivado do artigo 26 do Pacto de San José, agride-se também a Constituição da República, já que a vedação do retrocesso social é um princípio constitucional pétreo implícito, derivado dos artigos 5º, §2º, e 6º, c.c. 60, §4º, IV, da Constituição (como, aliás, já reconheceu o STF; v., p.ex., ARE n. 727.864 AgR, j. 4.11.2014; RE n. 398.041, j. 3.11.2006).
Mas não será apenas essa a eiva constitucional. A PEC n. 55 padece de outras inconstitucionalidades ainda mais patentes.
Ela fere a autonomia do Poder Legislativo e do Poder Judiciário – e, portanto, o princípio de independência do artigo 2º da Constituição −, na medida em que confere ao Poder Executivo da União, na fixação dos limites globais de gastos e no controle financeiro-orçamentário dos outros Poderes, uma primazia sem precedentes.
A usurpação iniciou-se já com a própria iniciativa legislativa (o Executivo, ao remeter à Câmara dos Deputados a PEC n. 241, desconsiderou os demais Poderes) − e termina com a sua interpretação hegemônica para os vários conceitos abertos do texto sugerido. Com efeito, pelo teor do texto, caberá ao Poder Executivo, sozinho, calcular, interpretar e impor, aos demais Poderes da República, os limites globais de despesas de cada um. Se é certo que o parágrafo 1º do artigo 102 do ADCT, como proposto na PEC, minudenciará a forma de cálculo de tais limites, a partir de 2017, também é certo que alguns conceitos e hipóteses exigirão interpretação e adequação à realidade de cada instituição (como, p.ex., “demais operações que afetam o resultado primário”, “compensação entre os limites individualizados dos órgãos elencados em cada inciso” etc.).
Na prática, qualquer perspectiva de ampliação material ou funcional do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público ou da Defensoria Pública fica vedada, nos próximos vinte anos, a despeito do que entendam, por suas cúpulas administrativas, tais instituições; nesse sentido, aliás, caminhou a Nota Técnica PGR/SRI n. 82/2016, da Secretaria de Relações Institucionais da Procuradoria-Geral da República, que apontou tal inconstitucionalidade. Daí que, para preservar a independência entre os Poderes da República, nos termos do artigo 2º da Constituição, é imprescindível inserir a presente ressalva, de modo que os Poderes encaminhem ao Executivo as suas propostas, já adequadas ao Novo Regime Fiscal, e, a seguir, o Executivo apenas as consolide.
A esse propósito, aliás, a pedido da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho, o Senador Paulo Paim apresentou, na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado, em 9.11.2016, a emenda n. 59 à PEC n. 55, que ressalvaria a autonomia dos Poderes da República no próprio artigo 102. Essa emenda, porém, não foi acolhida, como, de resto, nenhuma das outras apresentadas.
A PEC n. 55 também violenta obliquamente a regra do artigo da Constituição, que constitui a chamada “regra de ouro” do Direito Financeiro brasileiro. Com efeito, dispõe o artigo 167, III, da Constituição, que é vedada “a realização de operações de créditos que excedam o montante das despesas de capital, ressalvadas as autorizadas mediante créditos suplementares ou especiais com finalidade precisa, aprovados pelo Poder Legislativo por maioria absoluta”.
Noutras palavras, não deve haver endividamento público – i.e., o Estado não poderá fazer empréstimos − para custear despesas correntes, ou seja, despesas de custeio e manutenção das atividades e serviços públicos (p. ex., itens de consumo, diárias, passagens, folhas de pagamento, juros da dívida etc.); o endividamento, se necessário, deve servir para investimentos patrimoniais e para a amortização da dívida pública correspondente (que são despesas de capital, dentro da categoria das despesas de transferência de capital, nos termos do artigo 12, §6º, da Lei n. 4.320/1964). Isto porque o Estado deve custear despesas correntes com fontes contínuas de receita; não com empréstimos. Nada mais salutar.
Todavia, entrando em vigor a PEC n. 55, essa regra será burlada. É que, ao permitir que todo e qualquer recurso excedente do “limite de gastos” reverta para o pagamento da dívida pública, o seu texto pereniza algo que já vem sendo praticado no Brasil desde o Plano Real (com a abolição da atualização monetária automática): a parcela da atualização monetária dos juros da dívida pública, que deveria integrar a própria rubrica dos juros nominais (que não podem ser pagos a partir da emissão de títulos), é deslocada da categoria das despesas correntes e passa a ser computada como amortização da dívida pública, que se compreende entre as despesas de capital. Elide-se, assim, a proibição de que despesas correntes sejam financiadas com empréstimos, e parte das despesas correntes – exatamente a atualização dos juros – passa a ser financiada como despesa de capital.
Mantido esse “modus operandi” e aprovada a PEC n. 55, toda a receita acumulada acima dos tetos de gastos públicos será destinada à quitação dessas “despesas de capital” que, na prática, têm travestido parte das despesas correntes. Ora, se o propósito declarado da PEC é “conter a expansão da dívida pública”, mas se, ao revés, ela potencializará a capacidade de pagamento de despesas de capital que mascaram financiamento de parte dos juros nominais da dívida pública (a parte equivalente à sua atualização monetária), estimulando essa expansão para exclusiva finalidade financeira, resta evidente que a proposta encerra uma contradição interna que, para efeitos constitucionais, malfere os próprios princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. Seguindo, com Rua Alex e outros, o clássico tríptico da proporcionalidade − necessidade, adequação, proporcionalidade em sentido estrito −, conclui-se que a PEC n. 55 imporá grandes sacrifícios à população, mas não é adequada para o fim a que se destina. E, portanto, não pode vicejar.
Tudo, afinal, a revelar que esta PEC n. 55 – como também a nova PEC da Previdência, que virá logo em seguida, montada em déficit nebuloso e tendente a repetir a tragédia chilena (que privatizou o seu modelo previdenciário, ao mais bom gosto neoliberal, e hoje não consegue sequer pagar aposentadorias de salário mínimo) − trará infortúnios irreversíveis às atuais e futuras gerações.
A esta altura, porém, a pergunta óbvia haveria de vir: se não o teto de gastos, o que então caberia fazer?
O debate público tem sugerido diversas alternativas, como a restrição das renúncias fiscais (essas mesmas que serão, ao fim e ao cabo, mantidas), a taxação dos dividendos distribuídos por empresas comerciais, a implementação da taxação constitucional de grandes fortunas (entendendo-se como tais, p.ex., os capitais financeiros que, ociosos, alcancem a ordem das dezenas de milhões), o aumento do número de faixas-alíquotas de imposto de renda, a limitação do crescimento dos gastos primários da União com base na soma entre a inflação do ano anterior e o crescimento estimado da população (mantendo-se ao menos os gastos primários – inclusive aqueles com saúde e educação − constantes em termos per capita), e assim sucessivamente. Podem ser suficientes ou não. O fato é que as alternativas disponíveis devem ser as menos onerosas e que atendam as maiorias. E, em todo caso, nenhuma que possa seriamente padecer dos vícios da inconstitucionalidade e da inconvencionalidade.
Brasília, 10 de novembro de 2016
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O teto de gastos e o conto do vigário
Sob o título “A PEC Nº 55 e o conto do vigário“, o artigo a seguir é de autoria de Germano Siqueira e Guilherme Guimarães Feliciano, respectivamente, presidente e vice-presidente da Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho).
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Conta-se que a expressão “conto do vigário”, de uso disseminado no Brasil e em Portugal, deva-se a uma antiga disputa oitocentista, entre os vigários das paróquias de Pilar e da Conceição (em Ouro Preto), por uma mesma imagem de Nossa Senhora. O vigário de Pilar teria então proposto que “Deus” decidisse a refrega: a imagem seria amarrada em certo burro, que por sua vez seria deixado à própria sorte, entre as duas igrejas; e a imagem então pertenceria àquela paróquia para a qual rumasse espontaneamente o animal. Como o burro tomou a direção da igreja de Pilar, ali permaneceu a imagem. O que, porém, o vigário da Conceição não sabia é que aquele burro não era um animal qualquer, mas o de estimação do vigário de Pilar (de modo que, afinal, só fez mesmo voltar para casa). “Conto do vigário” designaria, desde então, engodo, ilusão, artifício. O grande Fernando Pessoa contava as histórias de Manuel Peres Vigário, que vivia de trapaças. E o próprio adjetivo “vigarista” derivou desses contextos.
Pois bem. Dito isso, vamos ao ponto.
No dia 15 de junho deste ano – atente-se para a data −, o ainda vice-presidente da República apresentou à Câmara dos Deputados o que viria a ficar conhecido como a “PEC do teto de gastos”, ou “PEC do fim do mundo”. Falamos da PEC nº 55/2016 – que tramitou na Câmara dos Deputados sob o número 241/2016 −, destinada a “[a]ltera[r] o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal”, aprovada na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal no último dia 9 de novembro.
Já aprovada na Câmara dos Deputados em dois turnos, ela agora segue para o Plenário do Senado. E é ela que, entre outras medidas, limitará a despesa primária total para o exercício de 2017 pelo equivalente à despesa primária realizada no exercício de 2016, corrigida pela variação do IPCA, e nada mais; e determinará que assim se proceda, sucessivamente, pelos próximos vinte anos, manietando qualquer possibilidade real de melhorias substantivas em áreas estratégicas como saúde, educação e segurança pública (que obviamente requerem investimentos extraordinários, além dos atuais, ou estaríamos já no melhor dos mundos).
O rigor fiscal vai ainda além e, no caso de descumprimento daqueles limites, suspender-se-ão os efeitos do artigo 37, X, da Constituição, instando-se os servidores públicos a suportarem pessoalmente todas as perdas inflacionárias do período, sem possibilidade de qualquer reposição; e, da mesma maneira, vedar-se-á a criação de novos cargos, empregos ou funções, como também a contratação de pessoal e a própria realização de concursos, estagnando-se o serviço público, que paulatinamente perderá fôlego ante as acumuladas vacâncias não repostas (com exceção honrosa para os cargos efetivos; mas, mesmo assim, a critério de um administrador premido pela ideologia das contenções).
Justificando-a, os Ministros do Planejamento e da Casa Civil registravam, entre outros pontos, a existência de um “agudo desequilíbrio fiscal que se desenvolveu nos últimos anos” , refletido na “deterioração do resultado primário nos últimos anos, que culminará com a geração de um déficit de até R$ 170 bilhões este ano, somada à assunção de obrigações, (que) determinou aumento sem precedentes da dívida pública federal”.
E prosseguia, na exposição de motivos da proposta, pontificando que, “[d]e fato, a Dívida Bruta do Governo Geral passou de 51,7% do PIB, em 2013, para 67,5% do PIB em abril de 2016 e as projeções indicam que, se nada for feito para conter essa espiral, o patamar de 80% do PIB será ultrapassado nos próximos anos”. Ao assinalar esses pontos, defendeu a urgência de medidas de severas contenções de despesas, generalizadas e indiscriminadas, cuja implementação aumentaria a previsibilidade da política macroeconômica e fortaleceria a confiança dos agentes financeiros, “eliminando a tendência de crescimento real do gasto público, sem impedir que se altere a sua composição, reduzindo o risco-país”.
A nós, cidadãos, resta então saber se um regime tão intenso de restrições, jamais visto em outra parte do mundo – não com duração vintenária −, é de fato contingente e necessário. Ou se apenas realiza um projeto político de desconstrução do Estado social e de subalternização do funcionalismo público (desimportante nos Estados mínimos); projeto que, sob o novo governo, viria de todo modo. É dizer: a PEC n. 55/2016 é mesmo a solução emergencial para todos as males, como tem alardeado a grande imprensa? Ou, ao revés, é apenas o “burro” que placidamente caminha na direção daquilo que o Governo e o seu establishment querem?
Vejamos, com alguns dados recentes.
Chamávamos a atenção, há pouco, para a data de propositura da então PEC 241 (15/6). É que no dia 24 daquele mesmo mês (quase dez dias depois, portanto), esse mesmo Governo fez publicar uma Nota Pública, a propósito do plebiscito no Reino Unido (o “Brexit”) e dos seus impactos econômicos, comunicando o seguinte à comunidade internacional (e comunicando-o com verdade, havemos de crer, ou se arriscaria a perder a credibilidade):
“A situação do Brasil é de solidez e segurança porque os fundamentos são robustos. O país tem expressivo volume de reservas internacionais e o ingresso de investimento direto estrangeiro tem sido suficiente para financiar as transações correntes. As condições de financiamento da dívida pública brasileira permanecem sólidas neste momento de volatilidade nos mercados financeiros em função de eventos externos. O Tesouro Nacional conta com amplo colchão de liquidez. A dívida pública federal é composta majoritariamente de títulos denominados em reais. Além disso, o governo anunciou medidas fiscais estruturantes de longo prazo. A recente melhora nos indicadores de confiança e na percepção de risco do país reflete essas ações. Nesse contexto, o Brasil está preparado para atravessar com segurança períodos de instabilidade externa”.
A estranheza é inevitável. Ou bem estamos sob “agudo desequilíbrio fiscal ”, com o “aumento sem precedentes da dívida pública federal”, ou bem estamos em uma situação financeira “de solidez e segurança”, em que “as condições de financiamento da dívida pública brasileira permanecem sólidas” e “o Tesouro Nacional conta com amplo colchão de liquidez”. Ou alguém sustentará a absurda contradição de que estamos “muito bem” externamente e “muito mal” internamente, no pressuposto surreal de que o endividamento externo não interfere com a economia interna (e vice-versa)? Se o país é incapaz de manter a política de valorização do salário mínimo, se não consegue honrar os direitos constitucionais dos seus servidores públicos (artigo 37, X, CF), se não pode prover segurança jurídica para os atuais e futuros aposentados e pensionistas e, mais grave, se confessa publicamente a sua incapacidade de fazer mais investimentos em saúde e educação pública, será capaz de honrar, a tempo e modo, com o serviço da dívida pública externa.
Ou, para usar os exemplos pedestres do discurso oficial recente (algo como “a dona de casa não pode gastar mais do que recebe”, na fantástica presunção de que as nossas casas refletem o ambiente macroeconômico do país), o pai de família que já não consegue honrar com os compromissos assumidos dentro de casa, que não tem condições de oferecer aos filhos um plano de saúde ou uma escola melhor, poderá fidedignamente dizer aos seus vizinhos que está tudo bem, e que não há qualquer risco de que o dinheiro vultoso a ele emprestado deixe de ser devolvido com os juros prometidos?
Essas contradições – ao lado de outras tantas − revelam, afinal, os reais motivos da PEC n. 55. Na verdade, bem longe das razões propagandeadas de forma intensiva pela grande mídia − sem dar voz efetiva, diga-se, aos muitos que pensam de forma contrária −, o que se busca com essa proposta é a inidônea revisão do modelo constitucional do Estado social brasileiro, tal como concebido pelo constituinte de 1987-1988.
Não se trata, pois, de uma “contingência”. Trata-se de uma escolha política. Trata-se daquela escolha política descrita por Zigmunty Bauman, não sem certa dose de ironia, como a do “Estado de Bem-estar social para os ricos que, ao contrário de seu homônimo para os pobres, nunca viu questionada a sua racionalidade”. Mas essa é uma escolha política que, todavia, já não pode haver – não, ao menos, em um ambiente genuinamente democrático −, sem o concurso de uma nova assembleia nacional constituinte. Saúde e educação, por exemplo, são direitos sociais fundamentais insculpidos no artigo 6º da Constituição. E, nessa condição, têm de estar acima dos compromissos com os serviços da dívida pública. Nada mais retilíneo, do ponto de vista jurídico.
Mas a retórica impenetrável da PEC n. 55 permite torcer prioridades, sob os insistentes aplausos da grande imprensa. Com efeito, enquanto os limites do “Novo Regime Fiscal” não se flexibilizam para os necessários investimentos em saúde e educação, excetuam-se por completo para as “despesas com aumento de capital de empresas estatais não dependentes” (texto proposto para o artigo 102, §6º, V, do ADCT). Não haverá óbices, portanto, a que o Tesouro aumente o capital de empresas como Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil e Petrobras e, de forma ainda mais perigosa, nessa mesma categoria, empresas estatais que emitem debêntures, com garantia pública, ferindo diversos dispositivos do art.167 da Constituição. Os projetos de lei PLS 204/2016, PLP 181/2015 e PL 3337/2015 visam “legalizar” esse esquema, que resultará em aumento da dívida pública, provocando enorme rombo nas finanças estatais.
Essas são as chamadas “empresas não dependentes”, i.e., aquelas empresas estatais controladas que não recebem do ente controlador recursos financeiros para pagamento de pessoal ou para despesas de custeio ou de capital. Poderão, todavia, ser “financiadas” de outro modo ou servir para que o Estado esteja a serviço de interesses privados, desde que o Tesouro lhes “engorde” o capital, sem limite (inclusive daquelas que sofreram ataques de corruptos e corruptores ao longo de anos). É, a rigor, manobra destinada a facilitar a operações de venda de ativos, depois de devidamente revalorizados com dinheiro público. Fosse séria a tal PEC de gastos, essas torneiras estariam fechadas, mas não estão. Ao contrário.
Fecham-se as portas para os interesses da sociedade com gastos em educação e saúde (que terão idênticas repercussões no desaparelhamento do sistema de Justiça), ao mesmo passo em que se abrem os portões para os interesses do poder econômico. E, de fato, a Petrobras já anuncia vendas de algumas de suas empresas (Liquigás, Ultrapar ) e alguns campos de produção de petróleo em terra. O Banco do Brasil também comunica a demissão de 18 mil empregados. São iniludivelmente realidades conexas, se imaginarmos um futuro possível de virtuais privatizações em condições generosas.
O economista François Bourguignon, ex-vice-presidente do Banco Mundial, assinala que importante para o Brasil é dar um sinal de que vai controlar melhor as contas públicas, alertando que se a taxa de gastos em relação ao PIB ficar em torno de 15%, o país vai se equiparar a países bem menos desenvolvidos, como os africanos, enquanto o professor Luiz Gonzaga Belluzo (professor titular do Instituto de Economia da Unicamp), em artigo na Folha, sustenta que “o déficit público não resulta de gastança, mas de queda de arrecadação, logo a inflação não resulta de excesso de demanda pública a controlar com juros altos. Segundo, os juros elevados e inexplicáveis são o principal determinante da ampliação da dívida pública, gerando custos que a austeridade do gasto social e do investimento público é incapaz de controlar, tanto mais porque os cortes limitam o crescimento do PIB”. E conclui, quanto à PEC n. 55: “Politicamente, é uma impostura: pesquisas de opinião mostram que a imensa maioria da população (até 98%) aprova a universalidade e a gratuidade da saúde e da educação pública. No mundo acadêmico, além de injusta, a austeridade é vista como contraproducente tecnicamente. O maior risco atual à democracia brasileira é que instituamos uma ditadura de tecnocratas que legitimam, com retórica cientificista, mudanças no pacto social inscrito na Constituição Federal com base em argumentos desatualizados empírica e teoricamente”. Curiosamente (ou congruentemente), pesquisa divulgada há pouco (18.10.2016) pela agência de comunicação Isobar Brasil, com base em 59 mil menções diretas à PEC do teto de gastos nas redes sociais, revela que um percentual muito semelhante àquele (94% dos internautas pesquisados) tem posição contrária à PEC n. 55, quando ainda tramitava como PEC n. 241…
Trata-se, pois, de expedientes retórico-políticos que pretendem impor às instituições brasileiras uma agenda de regressão civilizatória e constitucional, dita “inevitável”, sob a liderança de alguns capitães–do-mato que agora se apresentam como vozes da decência, mas cujos comportamentos recentes pouco ou nada revelam no campo da austeridade fiscal.
E, se ruinosas do ponto de vista econômico, serão tais mudanças ao menos admissíveis do ponto de vista jurídico?
Tampouco.
No campo da saúde, p.ex., as estimativas são de que, à mercê de um “congelamento” de vinte anos no respectivo orçamento, voltemos à condição que o Sistema Único de Saúde apresentava no início da década passada; a rigor, se o “Novo Regime Fiscal” estivesse em vigor entre 2003 e 2015, não teriam sido aplicados no SUS cerca de 135 bilhões de reais, a preços médios de 2015 (o que corresponderia a uma perda superior a tudo o que será empenhado, nesse segmento, em todo o ano de 2016). Com efeito, pesquisas internas do próprio Conselho Nacional da Saúde revelam que, para manter o padrão de investimentos de 2014, o governo deveria destinar cerca de R$ 119 bilhões para a Saúde em 2017 v., e.g., http://epoca.globo.com/vida/noticia/2016/10/o-que-pec-241-muda-na-saude.html); e, no entanto, se aprovada a PEC n. 55, serão aplicados aproximadamente R$ 113,7 (queda estimada de 5% , portanto, já no primeiro ano de vigência da emenda).
Já no âmbito da educação, cenários projetados no âmbito da Câmara dos Deputados sinalizam que, se a PEC n. 55 estivesse em vigor entre 2010 e 2016, a área da educação teria recebido, a cada ano, algo entre 9,6% e 18% daquilo que efetivamente recebeu. No que toca ao Plano Nacional de Educação (PNE), talvez o mais fundamental programa de governo nesse segmento (por justamente envolver metas para todas as etapas da educação básica, atendendo à primeira infância e capacitando os respectivos professores), é certo que a aprovação da PEC n. 55 comprometerá a chamada “meta n. 20”, que propõe o investimento de 10% do PIB na área (isto porque, a bem da verdade, o atual Governo quer romper com quaisquer vínculos entre investimento e crescimento do PIB, pela suposta relação errática que se estabelece entre esse crescimento e a própria arrecadação fiscal). Também haverá provável redução dos investimentos para fins de expansão do número de creches e de repasse às escolas integrais.
E nem se responda a esses números com a tíbia afirmação – que os canais oficiais têm insistentemente reproduzido – que “a PEC não estabelece teto, mas piso”, seja para a saúde, seja para a educação.
O fato é que a PEC n. 55 não apresenta, a rigor, qualquer marco financeiro setorial, seja para mais, seja para menos (os “pisos”, hoje, estão dados pela própria Constituição – v. EC n. 59/2009 e EC n. 86/2015; a PEC apenas prevê que esses “pisos” serão, nos próximos vinte anos, unicamente corrigidos pela inflação). Por outro lado, os “limites individualizados para despesas primárias” da PEC estabelecer-se-ão para os gastos globais, por poder e/ou instituição pública da União (v. artigo 102 do ADCT, na redação da PEC: Poder Executivo, STF, STJ, CNJ, Justiça do Trabalho, Justiça Federal, Justiça Militar da União, Justiça Eleitoral, Justiça do Distrito Federal e Territórios, Senado Federal, Câmara dos Deputados, Tribunal de Constas da União, Ministério Público da União, Conselho Nacional do Ministério Público e Defensoria Pública da União). Essa constatação reforça o vaticínio de que, na prática, dar-se-á a efetiva retração dos investimentos em saúde e educação: certas despesas orçamentárias fixas, ainda se consideradas por unidade ou instituição (e não por área de aplicação), deverão inexoravelmente aumentar; tal é o caso, por exemplo, das despesas com a previdência pública, seja no Regime Geral da Previdência Social, seja ainda nos Regimes Próprios de Previdência Social.
É que as projeções atuariais indicam que a população brasileira em idade ativa (de 16 a 59 anos), como proporção da população total, alcançará o seu pico em cinco anos, quando corresponderá a 64,7% do total; já a partir de 2021, entrará em queda constante, ainda dentro do primeiro terço do período de vigência da PEC n. 55 (v. Projeções Atuariais para o Regime Geral de Previdência Social – RGPS, Ministério da Previdência Social, Secretaria de Políticas de Previdência Social, março de 2013). Logo, haverá naturalmente mais gastos e menos recursos para custeá-los, especialmente em razão do aumento da expectativa de sobrevida e da diminuição da taxa de fecundidade. E a anunciada “reforma da previdência” – a terceira em pouco menos de vinte anos, contando-se a partir da EC n. 20/1998 – não conseguirá fazer frente a tais aumentos; quando muito, minorará a taxa de crescimento dessas despesas fixas. Consequentemente, se tais despesas vão necessariamente aumentar (ainda que a menor taxa), outras rubricas do “bolo” – como, p. ex., os investimentos em saúde, educação e segurança pública – tendencialmente estacionarão, se é que não sofrerão efetivos cortes (já que atualmente tais inversões estão acima dos pisos constitucionais, ao menos no âmbito da União).
Daí que, que em áreas socialmente sensíveis, como notadamente em saúde e educação públicas, haverá irretorquível retrocesso, com restrições de ordem econômico-orçamentária que impactarão no planejamento político e na tecnologia jurídica. Em o fazendo, o Brasil estará, desde logo, violando o compromisso assumido com a Organização dos Estados Americanos, desde 1992 (Decreto n. 678), com a ratificação do Pacto de San José da Costa Rica (Convenção Interamericana de Direitos Humanos), cujo artigo 26 dispõe que “[o]s Estados-partes comprometem-se a adotar as providências, tanto no âmbito interno, como mediante cooperação internacional, especialmente econômica e técnica, a fim de conseguir progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires, na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios apropriados” (g.n.).
A rigor, porém, o Estado brasileiro passa a fazer o contrário. Por via legislativa – a própria PEC n. 55 −, compromete intensivamente a capacidade de investimento no campo social (notadamente em saúde e educação, mas também em ciência e cultura), reservando, nos próximos vinte anos, todo o excedente em relação aos limites do art. 102, §1º, do ADCT, na redação da PEC, para a amortização dos juros da dívida pública. Uma opção socialmente retrocessiva, a despeito de seu compromisso internacional. Nada mais, nada menos. E, ao agredir o compromisso derivado do artigo 26 do Pacto de San José, agride-se também a Constituição da República, já que a vedação do retrocesso social é um princípio constitucional pétreo implícito, derivado dos artigos 5º, §2º, e 6º, c.c. 60, §4º, IV, da Constituição (como, aliás, já reconheceu o STF; v., p.ex., ARE n. 727.864 AgR, j. 4.11.2014; RE n. 398.041, j. 3.11.2006).
Mas não será apenas essa a eiva constitucional. A PEC n. 55 padece de outras inconstitucionalidades ainda mais patentes.
Ela fere a autonomia do Poder Legislativo e do Poder Judiciário – e, portanto, o princípio de independência do artigo 2º da Constituição −, na medida em que confere ao Poder Executivo da União, na fixação dos limites globais de gastos e no controle financeiro-orçamentário dos outros Poderes, uma primazia sem precedentes.
A usurpação iniciou-se já com a própria iniciativa legislativa (o Executivo, ao remeter à Câmara dos Deputados a PEC n. 241, desconsiderou os demais Poderes) − e termina com a sua interpretação hegemônica para os vários conceitos abertos do texto sugerido. Com efeito, pelo teor do texto, caberá ao Poder Executivo, sozinho, calcular, interpretar e impor, aos demais Poderes da República, os limites globais de despesas de cada um. Se é certo que o parágrafo 1º do artigo 102 do ADCT, como proposto na PEC, minudenciará a forma de cálculo de tais limites, a partir de 2017, também é certo que alguns conceitos e hipóteses exigirão interpretação e adequação à realidade de cada instituição (como, p.ex., “demais operações que afetam o resultado primário”, “compensação entre os limites individualizados dos órgãos elencados em cada inciso” etc.).
Na prática, qualquer perspectiva de ampliação material ou funcional do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público ou da Defensoria Pública fica vedada, nos próximos vinte anos, a despeito do que entendam, por suas cúpulas administrativas, tais instituições; nesse sentido, aliás, caminhou a Nota Técnica PGR/SRI n. 82/2016, da Secretaria de Relações Institucionais da Procuradoria-Geral da República, que apontou tal inconstitucionalidade. Daí que, para preservar a independência entre os Poderes da República, nos termos do artigo 2º da Constituição, é imprescindível inserir a presente ressalva, de modo que os Poderes encaminhem ao Executivo as suas propostas, já adequadas ao Novo Regime Fiscal, e, a seguir, o Executivo apenas as consolide.
A esse propósito, aliás, a pedido da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho, o Senador Paulo Paim apresentou, na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado, em 9.11.2016, a emenda n. 59 à PEC n. 55, que ressalvaria a autonomia dos Poderes da República no próprio artigo 102. Essa emenda, porém, não foi acolhida, como, de resto, nenhuma das outras apresentadas.
A PEC n. 55 também violenta obliquamente a regra do artigo da Constituição, que constitui a chamada “regra de ouro” do Direito Financeiro brasileiro. Com efeito, dispõe o artigo 167, III, da Constituição, que é vedada “a realização de operações de créditos que excedam o montante das despesas de capital, ressalvadas as autorizadas mediante créditos suplementares ou especiais com finalidade precisa, aprovados pelo Poder Legislativo por maioria absoluta”.
Noutras palavras, não deve haver endividamento público – i.e., o Estado não poderá fazer empréstimos − para custear despesas correntes, ou seja, despesas de custeio e manutenção das atividades e serviços públicos (p. ex., itens de consumo, diárias, passagens, folhas de pagamento, juros da dívida etc.); o endividamento, se necessário, deve servir para investimentos patrimoniais e para a amortização da dívida pública correspondente (que são despesas de capital, dentro da categoria das despesas de transferência de capital, nos termos do artigo 12, §6º, da Lei n. 4.320/1964). Isto porque o Estado deve custear despesas correntes com fontes contínuas de receita; não com empréstimos. Nada mais salutar.
Todavia, entrando em vigor a PEC n. 55, essa regra será burlada. É que, ao permitir que todo e qualquer recurso excedente do “limite de gastos” reverta para o pagamento da dívida pública, o seu texto pereniza algo que já vem sendo praticado no Brasil desde o Plano Real (com a abolição da atualização monetária automática): a parcela da atualização monetária dos juros da dívida pública, que deveria integrar a própria rubrica dos juros nominais (que não podem ser pagos a partir da emissão de títulos), é deslocada da categoria das despesas correntes e passa a ser computada como amortização da dívida pública, que se compreende entre as despesas de capital. Elide-se, assim, a proibição de que despesas correntes sejam financiadas com empréstimos, e parte das despesas correntes – exatamente a atualização dos juros – passa a ser financiada como despesa de capital.
Mantido esse “modus operandi” e aprovada a PEC n. 55, toda a receita acumulada acima dos tetos de gastos públicos será destinada à quitação dessas “despesas de capital” que, na prática, têm travestido parte das despesas correntes. Ora, se o propósito declarado da PEC é “conter a expansão da dívida pública”, mas se, ao revés, ela potencializará a capacidade de pagamento de despesas de capital que mascaram financiamento de parte dos juros nominais da dívida pública (a parte equivalente à sua atualização monetária), estimulando essa expansão para exclusiva finalidade financeira, resta evidente que a proposta encerra uma contradição interna que, para efeitos constitucionais, malfere os próprios princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. Seguindo, com Rua Alex e outros, o clássico tríptico da proporcionalidade − necessidade, adequação, proporcionalidade em sentido estrito −, conclui-se que a PEC n. 55 imporá grandes sacrifícios à população, mas não é adequada para o fim a que se destina. E, portanto, não pode vicejar.
Tudo, afinal, a revelar que esta PEC n. 55 – como também a nova PEC da Previdência, que virá logo em seguida, montada em déficit nebuloso e tendente a repetir a tragédia chilena (que privatizou o seu modelo previdenciário, ao mais bom gosto neoliberal, e hoje não consegue sequer pagar aposentadorias de salário mínimo) − trará infortúnios irreversíveis às atuais e futuras gerações.
A esta altura, porém, a pergunta óbvia haveria de vir: se não o teto de gastos, o que então caberia fazer?
O debate público tem sugerido diversas alternativas, como a restrição das renúncias fiscais (essas mesmas que serão, ao fim e ao cabo, mantidas), a taxação dos dividendos distribuídos por empresas comerciais, a implementação da taxação constitucional de grandes fortunas (entendendo-se como tais, p.ex., os capitais financeiros que, ociosos, alcancem a ordem das dezenas de milhões), o aumento do número de faixas-alíquotas de imposto de renda, a limitação do crescimento dos gastos primários da União com base na soma entre a inflação do ano anterior e o crescimento estimado da população (mantendo-se ao menos os gastos primários – inclusive aqueles com saúde e educação − constantes em termos per capita), e assim sucessivamente. Podem ser suficientes ou não. O fato é que as alternativas disponíveis devem ser as menos onerosas e que atendam as maiorias. E, em todo caso, nenhuma que possa seriamente padecer dos vícios da inconstitucionalidade e da inconvencionalidade.
Brasília, 10 de novembro de 2016