O Blog do Fred, da Folha de S. Paulo, publicou hoje (28/10) artigo do vice-presidente da Anamatra, Paulo Schmidt, e do diretor de Assuntos Legislativos, Germano Siqueira. No texto, os magistrados falam das ameaças atuais à independência da magistratura, entre elas o não cumprimento do dispositivo consticional que prevê a recomposição do subsídio dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF).
Confira abaixo o texto:
"Direito de Resistir"
A conjuntura vivida pela magistratura da União, decorrente da postura do Governo e do Congresso Nacional em não cumprir os artigos 37, XI e 95, III, da Constituição Federal, desrespeitando garantias do Judiciário e dos juízes do Brasil, não permite, por parte dos magistrados, uma conduta muito rígida nas formas de enfrentar esse grave momento.
A flagrante tentativa de quebra da independência do Judiciário, caracterizada pela imposição há seguidos anos de embaraços aos projetos de mera recomposição inflacionária dos subsídios dos ministros do STF e demais juízes não encontrará antídoto em conduta protocolar e excessivamente obediente dos ritos ordinários da jurisdição. Isso fica para o exercício típico da atividade judicial. No campo político, todavia, a atuação ortodoxa da magistratura não se presta a combater os atos de Governo que têm o objetivo de enfraquecer o próprio exercício independente da função de julgar, como a esse respeito já ponderava o Chief Justice Warren Burger, relator de caso julgado na Suprema Corte dos Estados Unidos, ao assinalar que “... a irredutibilidade dos vencimentos da magistratura é um direito dos jurisdicionados, é uma prerrogativa do povo, que tem direito a que os exercentes das sagradas funções jurisdicionais independam absolutamente da ação e até mesmo da omissão dos Poderes Legislativo e Executivo (...)”, registrando mais que “Tal conceito está não só no ideário de tripartição dos poderes e do Estado de Direito, como foi o próprio fundamento da inovadora disposição da Constituição da Filadélfia”.
Na verdade, tendo em vista esse quadro vivido recorrentemente no Brasil, os juízes estão sendo chamados hoje para uma tarefa maior, que é a de afirmação (não é a de reafirmação; mas de afirmação mesmo) do Poder Judiciário por meio do exercício do direito de resistência, na melhor adaptação contemporânea da teoria de Locke que, em síntese, considera legítimos modos de atuação destinados a reagir diante da força desproporcional do Estado (de fração do Poder de Estado em que avança sobre outro Poder), avanço esse que se expressa em atos de supressão (ou mitigação) de garantias constitucionais, o que desvirtua o exercente da função pública de sua missão primeira de zelar pelo cumprimento da Constituição, desfigurando a própria feição do Estado enquanto instituição democrática.
Para Norberto Bobbio (“A Era dos Direitos”), que toma o exercício do direito de resistência como uma forma de manifestação extralegal destinada a recobrar o reequilíbrio das garantias fundamentais, o Direito de Resistência é uma forma de exercício de poder impeditivo que se volta contra um perfil de Estado em descompasso com a institucionalidade.
Não há impedimento, no caso, que esse reequilíbrio seja travado dentro da própria estrutura do Poder estatal, por mais estranho que isso possa parecer. Mas, assim é, na medida em que o enfrentamento que está posto, pela violação de garantias do Poder Judiciário, coloca-se no panorama e contrariamente à fração do poder político que atua com esforço de controle hegemônico.
O fato é que ao longo da história o Poder Judiciário jamais se revelou com independência e autonomia suficientes, razão de hoje, nessa entrada do século 21, ainda estarmos como estamos; ao ponto de a Presidenta da República achar, na prática, que pode liminarmente rejeitar a proposta de reajuste dos subsídios que lhe foi encaminhada, simplesmente não a incluindo na peça orçamentária. Agindo assim, a um só tempo desdenha o Poder Judiciário e sonega do Parlamento a oportunidade do exercício de suas próprias funções.
Achamos os juízes que estamos falando de um novo momento, de resistência e valorização da magistratura. Porque essa é nossa campanha e campanha que deve ser contínua, com um olhar que objetive modificar o estado de coisas que apequena o Poder que integramos.
Apenas para se ter uma idéia da situação, contrariando a garantia da irredutibilidade o último PL encaminhado pelo STF tramitou por mais de três anos na Câmara Federal e foi aprovado apenas parcialmente. O atual já tramita faz tempo e segue parado. Os deputados, sem o menor constrangimento, dizem que tudo depende do Executivo. É clara a postura de sistematicamente desgastar as proposições do Judiciário o que, em última análise, representam desrespeito dos demais Poderes para com o Poder Judiciário.
Na atual quadra, o Executivo se fecha e não abre canais de diálogo. O chefe do Poder Judiciário, por sua vez, diz que já fez a sua parte, que se resume a enviar o PL (nós sabemos que não é assim), enquanto faz uma defesa ardente do reajuste dos servidores, muitos deles com remuneração superior ao próprio presidente.
Até concordamos que o empenho na defesa do reajuste dos servidores seja por ele feito na mesma proporção dos juízes. Mas não há razão para vergonha ou constrangimento em fazer a defesa do próprio vencimento. É atribuição conferida pela própria Constituição Federal que não admite delegação.
De outro modo, para a omissão legislativa, a própria Constituição Federal previu o remédio do Mandado de Injunção. Vários já foram aviados no STF, mas, não há qualquer possibilidade de que sejam julgados. Os juízes, além de “órfãos”, são também um segmento destituídos de jurisdição.
Como visto, os magistrados estão sendo levados ao caminho do exercício de um verdadeiro direito de resistência, embora numa perspectiva incomum. Nas palavras de Norberto Bobbio (ob.cit) “o indivíduo recorre ao direito de resistência como extrema ratio, em última instância, para se proteger contra a falta de proteção dos direitos primários”. No mesmo sentido Canotilho (Direito Constitucional, 6ª ed.) ao dizer que "O direito de resistência é a última ratio do cidadão ofendido nos seus direitos, liberdades e garantias, por atos do poder público ou por ações de entidades privadas".
E é precisamente isso o que ocorre, diante da obstrução do diálogo e da negativa omissiva do próprio STF de julgar os mandados de injunção.
Convém lembrar que em passado recente foram as associações de juízes que cumpriram importante papel na correção de vícios da estrutura judiciária. Se antes denunciaram o nepotismo e se opuseram a práticas medievais de compadrio, parece que agora a ponta de lança é o tema remuneratório (que é expressão de uma faceta relevante da independência judicial), pela via da irredutibilidade de vencimentos, como desafio gigantesco de não permitir o amesquinhamento definitivo do Judiciário, especialmente quando se sabe que o argumento da crise mundial entrou na pauta brasileira apenas para conter demandas orçamentárias.
Parece-nos que, novamente, caberá à magistratura, agir politicamente em defesa da independência do Poder, ainda que seja por instrumentos de resistência que se tornaram legítimos por serem desencadeados contra ações ilegítimas dos demais Poderes da República.
Há de se observar que os métodos escolhidos (operação padrão ou restrição da prática de determinados atos), estão perfeitamente caracterizados nos limites do direito de resistência, como mais uma vez alude Bobbio ao destacar: “Há, contudo, uma diferença entre não fazer o que é ordenado e fazer o contrário do que é ordenado: diante da intimação de esvaziar uma praça, por exemplo, sentar no chão. Pode-se fazer resistência passiva não só deixando de fazer o que se deve, como também fazendo mais, fazendo em excesso (como é o caso do obstrucionismo parlamentar)”.
E é isso, exatamente, que está sendo colocado para a sociedade como forma de denúncia do descaso e ferimento da Constituição.
Por outro lado, como tendenciosamente querem alguns setores, não é possível reduzir a demanda dos juízes a uma questão meramente remuneratória. O significado é muito maior que isso. É contraposição a um cenário que desafia o cumprimento de preceito constitucional e, nesse contexto, traduz-se em instrumento de defesa da própria independência do Poder Judiciário.
O que está sendo feito pelo Executivo e pelo Congresso Nacional contra texto da Constituição Federal, somada à negativa omissiva do STF em julgar os Mandados de Injunção apresentados pelas associações, não tem meios ortodoxos de combate. E se o momento é de anormalidade que não encontra meios de superação, o direito de resistência passa a ser meio legítimo de combate.
A paralisação coletiva e os seus meios equivalentes ou assemelhados, combinada com outras ações de pressão, são atos cidadãos legítimos de insurreição e de resistência de uma magistratura que não concorda com a violação reiterada da Constituição Federal, daí porque e visam, inclusive, suprir a omissão do Supremo Tribunal Federal e, porque não dizer, do próprio Conselho Nacional de Justiça, que a esse respeito (desse estado de descompromisso do Executivo com as prerrogativas da magistratura) até agora nada disseram.
Nesse contexto e em resumo, se o STF (nosso juiz natural) não conhece das matérias que ali postamos; se a Presidenta da República e o Congresso não se sensibilizam com o diálogo, com artigos e notas publicados e o presidente do STF diz que o assunto não é com ele, o que restará aos juízes para restabelecer a dignidade do Poder Judiciário?