Por Benedito Calheiros Bomfim (*)
Cresce a pressão social visando a impedir a eleição a cargos eletivos de políticos portadores de antecedentes delituosos, a chamada “ficha suja”. Esse clamor da opinião pública objetiva a moralização da política, a inelegíbilidade de candidatos sem qualificação ética, com vida pregressa desabonadora. Fazer depender essa medida saneadora de “condenação criminal em sentença transitada em julgado”, como expressa a letra do art.55, VI, C.F., é o mesmo, como a prática tem demonstrado, que tornar inefetivos, inúteis, meramente retóricos, o princípio fundamental da “dignidade da pessoa humana” e da “cidadania”, os postulados constitucionais da moralidade pública, da probidade administrativa, da busca de uma sociedade justa e menos desigual.
O principio de que ninguém pode ser considerado culpado antes de ser condenado por sentença transitada em julgado não pode servir de escudo para a impunidade, como ocorre na grande maioria dos casos. Não é possível que as mesmas disposições constitucionais garantidoras do amplo direito de defesa e assecuratórias da justiça de uma condenação definitiva, se transformem, pela só fato da lentidão judicial, em fator de impunidade. É paradoxal que a mesma condição necessária à configuração legal da culpa – sentença passada em julgado – possa, em razão da demora processual para sua proclamação, levar o acusado à impúnidade.
A interpretação ao pé da letra do preceito em causa leva a resultado contrário ao que nele implicitamente se propõe, um vez que propicia a conquista de imunidade parlamentar, como biombo, para acobertar malfeitos, falcatruas, irregularidades, práticas delituosas. A exegese de um preceito constitucional não pode produzir consequências inversas ao espírito e ao sistema do diploma em que está inserido. Se toda norma comporta interpretações, deve o intérprete optar por aquela que melhor atenda aos fins sociais, que se compadeça com a ética, a probidade, a moralidade, a justiça social.
Não é admissível se permita que corruptos e delinqüentes busquem na investidura do mandato parlamentar, como vem acontecendo em escala crescente, imunidade para a prática de atos fraudulentos, ilegais, contrários à ética, à decência, ao patrimônio público, à moralidade.
No campo penal, em que está em jogo a própria liberdade, individual, justifica-se o rigor da exigência de sentença criminal transitada
Se a simples falta de decoro leva à perda do mandato parlamentar, por que admitir que candidato manifestamente inidôneo possa concorrer, eleger-se, assumir e exercer o mandato de deputado ou senador? Condicionar a vedação à assunção a cargos eletivos de malfeitores e delinquentes à sentença criminal transitada em julgado, equivale a institucionalizar a impunidade, a permitir o uso do mandato para fins contrários à sua destinação.
Todo texto legal há de ser interpretado de forma a tornar efetiva sua finalidade social, a tornar eficaz seu conteúdo e destinação, a propiciar a materialização de seu objetivo. Ele há de guardar sintonia e compatibilidade com a principiologia e o sistema do diploma que integra. A não ser assim, a norma não passa de fórmula vazia, simbólica, inoperante, ineficaz.
Há, contudo, que encontrar uma fórmula que concilie a garantia individual de presunção da inocência até o trânsito em julgado da condenação com a garantia de que ninguém se valha desse preceito para alcançar a impunidade, ou seja, um resultado social inverso à finalidade da norma.
Pode-se adotar um meio termo na aplicação dos preceitos constucionais em exame, compatível com a exigência de sentença criminal transitada em julgado: estabelecer que, mesmo ao candidato condenado em primeiro grau, seria permitido concorrer a cargo eletivo; mas, se eleito, teria suspensa a posse até o trânsito em julgado da sentença. O recurso contra essa decisão seria dirigido diretamente ao TSE, com absolua prioridade nos julgamentos. Se aí absolvido, seria imediatamente empossado no cargo. Se confirmada a condenação, sua eleição seria tornada sem efeito, e o candidato impedido de concorrer a pleitos eleitorais futuros.
Esse entendimento, que também satisfaz o requisito da presunção da inocência até que a sentença condenatória se torne irrecorrível, pode coexistir com a exigência dos arts. 5º, LVII, e 155, VI, da Lei Fundamental, enquanto não sobrevier Emenda Constitucional que modifique a redação de ambos e da legislação eleitoral.
Assim equacionada a questão, o só fato de estar o candidato respondendo a processo não será empecilho ao seu registro; e a perda do direito ao mandato, por sua vez, ficaria condicionada ao trânsito em julgado da sentença condenatória.
No sistema atual, não vislumbramos outra forma de atender à exigência de condenação transitada em julgado sem frustrar o objetivo dessa mesma exigência.
Se o que se quer é sanear a atividade político-eleitoral, é inadmissível que se intérprete e aplique a lei sabendo que, pela demora da tramitação do processo, seu objetivo social será malogrado.
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* Ex-presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros, membro da Academia Nacional de Direito do Trabalho, Ex-Conselheiro Federal e Seccional da OAB