Em 2003, a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) a exemplo de anos anteriores, participou ativamente de inúmeros debates sobre o Poder Judiciário, a legislação do trabalho, o Estado, a Democracia e outras questões relevantes para a sociedade, pautando sua atuação na defesa de mudanças profundas na Justiça, com a instituição de mecanismos capazes de dar maior transparência aos atos administrativos dos tribunais.
Nesse cenário, no final de abril, fomos surpreendidos pela Proposta de Emenda Constitucional, encaminhada pelo Executivo, que dilacerava o regime público de previdência, preservando tão somente os militares das forças armadas. A reação da magistratura mereceu destaque, ainda que parte da mídia, com o aval do Governo, tenha difundido a idéia de tratar-se de privilégio corporativo não mais tolerado pela sociedade, quando, na verdade, estava em jogo a opção pelo modelo de Estado (privatista ou não). A greve anunciada pelos juízes e outras ações políticas permitiram a redução do estrago perseguido pelo Governo Lula, ensejando a retomada da integralidade e paridade para os atuais magistrados e servidores, sem que tenha sido possível evitar, para os futuros, a incerteza dos fundos de pensão, ainda que de natureza pública, a despeito do empenho da entidade nesse sentido.
As condições objetivas apresentadas, lamentavelmente, não propiciaram a manutenção do regime público de previdência, com integralidade e paridade para os futuros magistrados, no campo do Parlamento. Entretanto, a matéria continuará a ser enfrentada com todo o vigor, agora na órbita do Judiciário, com a firme expectativa de reversão, dadas as evidentes inconstitucionalidades de forma e conteúdo que maculam a proposta aprovada. Fica para a Anamatra a certeza da ausência de motivo nobre do governo para quebrar um regime que, apesar das distorções existentes, deveria ser aperfeiçoado em nome do Estado formulador de políticas públicas. O Executivo foi extremamente generoso com o mercado financeiro e com os insaciáveis credores internacionais, mas teve o cuidado de excluir o conjunto do aparelho repressor (militares e policiais) da dureza das novas regras previdenciárias. Deve ser esse o modelo de Estado essencial para os novos donos do poder que, muitas vezes, mesclam o totalitarismo político stalinista com o liberalismo econômico.
Estivemos atentos aos inúmeros projetos que tramitam no Congresso cuidando da legislação trabalhista, cuja perspectiva, na maioria das vezes, aponta para a precarização das relações de trabalho. A Anamatra foi a primeira entidade a denunciar publicamente o caráter nefasto do projeto da terceirização e do trabalho temporário, mediante pareceres encaminhados a parlamentares e ministros, razão pela qual foi citada pelo presidente da Comissão do Trabalho da Câmara, deputado Sandro Mabel (PL/GO), como a grande responsável pela retirada do referido projeto pelo Presidente Lula. Não foi diferente a atuação no projeto da nova lei de falências e de recuperação judicial, que, preocupantemente, ia passando ao largo da devida atenção das entidades sindicais, a despeito das deletérias implicações para os direitos dos trabalhadores. Em discurso proferido no Plenário da Câmara, apresentei aos deputados os aspectos da proposta que pioravam a situação do trabalhador. Por ter sido a entidade com presença mais significativa durante a discussão da matéria, o DIAP reconheceu que o texto final aprovado na Câmara alcançou relevantes avanços em face da atuação da Anamatra.
Na reforma trabalhista em discussão no Fórum Nacional do Trabalho, constituído pelo Ministério do Trabalho e Emprego, a Anamatra buscou no conjunto de deliberações em seus congressos (CONAMATs) o modo próprio de atuação, rejeitando, portanto, qualquer proposta tendente à precarização sob o rótulo de flexibilização das relações de trabalho e dos princípios que orientam a referida legislação, sempre respondendo aos arautos da “modernidade”, sedentos pela acumulação de riquezas, alguns muito bem posicionados no governo social-democrata de Luiz Inácio Lula da Silva.
Depois de três anos de luta, foi aprovado e sancionado o projeto que cria 269 varas do trabalho nas mais diversas regiões. A Anamatra participou de todo o processo de negociação com o Executivo Federal, tendo comparecido à Casa Civil da Presidência da República uma dezena de vezes para fornecer elementos suficientes ao convencimento quanto à relevância da votação e aprovação da matéria. Vitória do trabalhador e da sociedade brasileira, pela ampliação do acesso à justiça e da efetividade da prestação jurisdicional que a conquista propicia.
O engajamento na luta contra as formas degradantes de exploração do trabalho humano, especialmente a que reduz alguém à condição análoga à de escravo e o trabalho infantil, foi uma marca da Anamatra em 2003. Nos fóruns constituídos , no Parlamento e em de artigos publicados, defendemos a expropriação das terras dos escravocratas, a elevação das penas a eles cominadas, além do rompimento radical com a ideologia neoliberal de “que qualquer trabalho é melhor que nada”.
A Anamatra não descuidou da defesa de ampliação da competência da Justiça do Trabalho, da defesa da maior amplitude para a substituição processual, da efetividade do processo de execução (bloqueio eletrônico de contas de devedores, certidão negativa de débito trabalhista, elevação de juros de mora e outras medidas),sendo incisiva na resposta às críticas injustas lançadas contra o Judiciário Trabalhista por outros segmentos da Justiça, do Executivo e do Legislativo, e até mesmo por representante da ONU, instituição responsável pela condução fracassada da política de paz entre as nações.
Mas nem tudo se restringiu ao ambiente externo. A falta de democracia interna em alguns tribunais trabalhistas, aliada à ausência de transparência e à utilização dos poderes excessivos conferidos pelo modelo vigente, com arbitrariedade, exigiu que a Anamatra reagisse imediatamente contra os atos praticados pelos respectivos dirigentes, dando publicidade a todas as suas ações.
O mais importante, evidentemente, ficou para o final do ano de 2003, quando o Conselho de Representantes da Anamatra, no último dia 09 de dezembro, por ampla maioria, decidiu, em caráter inédito, ser imprescindível a criação de um controle democrático para o Poder Judiciário, pela instituição de um Conselho Nacional de Justiça a ser composto majoritariamente por juízes de todas as instâncias e segmentos, eleitos pelo conjunto de magistrados, além de representantes da sociedade civil organizada (entidades e comunidade científica). Sempre nos “ensinaram a antiga lição” de que o controle com a participação externa era o fim do Judiciário. Não é verdade. Está em jogo o enfrentamento de um sistema ultrapassado, cujos defensores não hesitarão em articular os mesmos argumentos que encontraram ressonância durante vários anos entre os associados, mas que protegem apenas os efetivos detentores do poder e, por essa razão, começam a desmoronar no seio da magistratura. Para acabar com as mazelas existentes, a Anamatra tem pugnado pela realização de eleições diretas para os dirigentes dos tribunais, pelo fim do nepotismo e das sessões secretas, medidas importantes, mas insuficientes para resolver a grave crise de legitimidade reinante na justiça brasileira. Está equivocado o modelo vigente. A revolução será completada com a instituição do controle social democrático que dará transparência aos atos praticados, a par de dispersar o excessivo poder hoje conferido às cúpulas.
Queremos o Conselho para funcionar como órgão máximo de governo do Poder Judiciário, velando pela independência, interna e externa, do juiz no exercício da função jurisdicional, nela não interferindo de modo algum. Dentre outras funções, caberá ao CNJ a definição da política judiciária, o planejamento estratégico e a avaliação do Poder Judiciário, com poderes de coordenação, supervisão, fiscalização e disciplina sobre as atividades administrativas e orçamentárias de seus órgãos e serviços auxiliares, o exercício do poder disciplinar, o provimento de cargos de magistrado dos tribunais, inclusive das cortes superiores e a regulamentação de procedimentos de acesso à carreira e de promoção.
O tabu foi quebrado. Agora é hora de lutar pela criação do CNJ nos moldes descritos. A Anamatra não fará do seu discurso antigo de democracia interna e transparência mera retórica exibida em dias de confraternização, estando definitivamente inserida no rol das forças que buscam transformar o Judiciário brasileiro. Fortalecendo-o, não tenho qualquer dúvida, teremos chances reais de eliminar vícios de todos os poderes e instituições, assim como se procedeu na famosa “operação mãos limpas” na Itália, quando a independência jurisdicional dos magistrados italianos foi assegurada pela existência de um Conselho Nacional da Magistratura bem estruturado, composto por juízes eleitos pelos próprios magistrados e por representantes da sociedade civil.