Enquanto na discussão sobre todas as outras denominadas “reformas do estado” possamos identificar alguns pontos de divergência sobre a sua necessidade ou oportunidade, em se tratando de reforma do Poder Judiciário há rara unanimidade: ela não só é necessária, como também urgente! Também há unanimidade na identificação de dois fatores que apontam para a urgência da reforma: a morosidade da atividade jurisdicional e a falta de efetividade das suas decisões. A eles acrescentamos um terceiro, que suscita discussões e divergências no plano interno da própria instituição do poder, que é a falta de transparência da atividade jurisdicional em si e, fundamentalmente, de seus atos administrativos.
É possível identificar com razoável segurança o momento histórico em que se acentua a crise do Poder Judiciário, se considerarmos que ela é permanente, quase secular. Pois é exatamente a partir do processo constituinte que desaguou na Constituição Federal de 1988, apelidada “Constituição Cidadã” pelo saudoso deputado Ulysses Guimarães. A partir daí, o Judiciário passou a sofrer os intensos efeitos daquilo que o ministro Sepúlveda Pertence, do STF, imbuído de raro senso de propriedade e de inexcedível síntese, identificou como sendo uma autêntica “crise de funcionalidade”. Por quê? Se de um lado a Constituição ampliou os já existentes e criou novos direitos conhecidos como “direitos da cidadania de quarta geração”, individuais, coletivos e difusos, franqueando à sociedade civil ricos e variados instrumentos de acesso a esses direitos, de outro o Poder Judiciário, que obviamente seria o estuário natural destas novas demandas (sociais, econômicas e políticas), seguiu com suas estruturas arcaicas e ineficientes, como que imune ao grande vendaval de mudanças. Em resumo, a nova ordem oriunda do processo de redemocratização do País encontra o poder com estruturas incapazes de atender àquelas demandas.
De fato, a estruturação constitucional do Poder Judiciário, ressalvada a criação do Superior Tribunal de Justiça e dos tribunais regionais federais, ainda é a mesma vinda da Constituição de 1967, da Emenda Constitucional nº 1 de 1969, da Junta Militar que governou o País por um período e, finalmente, da Emenda Constitucional conhecida como “Pacote de Abril”, patrocinada pelo governo do general Geisel. Parcela maior da responsabilidade pela perpetuação desta velha estrutura deve ser atribuída aos magistrados e ao próprio Poder Judiciário, que se omitiram durante as discussões na Constituinte ou que lá comparecerem quando muito para defesa de reivindicações e de demandas corporativas. Naquela época, as associações de magistrados eram incipientes como forma de organização política dos juízes ou simplesmente vocacionadas para assistência e lazer.
Não desconhecemos que a Constituição de 1988 conferiu, pelo menos no plano teórico, maior autonomia administrativa e financeira aos tribunais. Esta autonomia, que poderia significar avanço na forma de administração da Justiça, não raro se traduziu em práticas e condutas administrativas não recomendáveis, como por exemplo malversação de dinheiro público, nepotismo, apadrinhamento e tráfico de influências. A propósito, em artigo publicado na revista Novos Estudos Cebrap nº 54, de julho de 1999, páginas 11-26, o cientista político Andrei Koener, professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, diagnosticou a situação: “Assim, foram ampliados os poderes de controle do governo pelo Judiciário e sua independência externa, isto é, sua autonomia decisória em relação aos outros poderes do estado, mas sem que houvesse a discussão do modelo segundo o qual seriam estabelecidas formas de controle político e social do uso de recursos públicos pelos órgãos administrativos do Judiciário”.
E prossegue o professor Koerner: “Nesse processo, também não foi questionado o modelo burocrático de organização judiciária, em que os juízes são subordinados aos órgãos de cúpula do Judiciário, cujos critérios na tomada de decisão de suas carreiras nem sempre são explicitados. Neste modelo não é garantida a independência interna dos juízes, que se voltam às sua carreiras individuais e mantêm atitude de isolamento tanto em relação aos seus colegas do Judiciário e associações com fins não-corporativos como no tocante aos administradores públicos e às liderança políticas ou das organizações sociais.” (págs. 12-13).
Para análise do diagnóstico acima apresentado, indicativo dos três fatores apontados como determinantes da necessidade e urgência da reforma – a morosidade, a pouca efetividade das decisões judiciais e a falta de transparência dos atos do Poder Judiciário –, comecemos pelo último, que acrescentamos aos dois primeiros. De pronto, divergimos de alguns operadores do direito ou de entidades representativas deles, e neste aspecto até mesmo do diagnóstico apresentado pelo governo, por intermédio do ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, no sentido de que a criação de um órgão de controle externo do Poder Judiciário, por si só, significaria a panacéia para a solução de todos os seus problemas, inclusive da morosidade e da falta de efetividade de suas decisões. Não é verdade. A criação do controle externo visa, primordialmente, a democratização interna e externa do poder, além de possibilitar sua organização estratégica e de interação com as demais instituições da República e da sociedade.
A democratização externa será alcançada à medida que haja o controle social sobre a atuação do Poder Judiciário, e a interna através da descentralização da sua administração, garantindo a participação de todos os segmentos da magistratura, especialmente, aqueles que se ocupam da prestação jurisidicional direta à população, que são os juízes de primeira instância. No que se refere à necessidade de autogoverno do Poder Judiciário e de seu planejamento estratégico, o conselho terá competência para promover a integração dos numerosos órgãos judiciais espalhados na estrutura de poder da União Federal e dos estados, que hoje têm atuação estanque e dessincronizada, quase sempre em prejuízo da racionalidade administrativa e financeira.
Rompendo com um verdadeiro tabu até então existente no seio da magistratura brasileira, a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) saiu na dianteira e propõe a criação do Conselho Nacional de Justiça, a quem competirá, entre outras coisas, o exercício do autogoverno do Poder Judiciário, seu planejamento estratégico, a definição de uma política judiciária para todo o País, o exercício do poder disciplinar relativo a todos os juízes, o provimento dos cargos de magistrados, inclusive dos tribunais, e a regulamentação dos procedimentos de ingresso na carreira da magistratura. Tudo isto sem significar qualquer interferência na atividade jurisdicional, que seguirá como atributo exclusivo da independência e autonomia do juiz. Embora permaneça em aberto a discussão sobre a forma de composição do conselho, é certo que dele deverão participar, de forma democrática, todos os segmentos da magistratura nacional e representantes da sociedade civil.
Voltando ao exame dos fatores remanescentes – morosidade da atividade jurisidicional e falta de efetividade das decisões judiciais –, podemos afirmar que a solução destes dois tormentosos problemas não passará, necessária e exclusivamente, por uma reforma constitucional do Poder Judiciário. Afora alguns aspectos de ordem constitucional, relativos à distribuição da competência entre os vários órgãos jurisdicionais, questão de pouca relevância para a sociedade, pois que afeta os interesses internos dos diversos segmentos da magistratura, tudo o mais dependeria tão-somente de mudanças ou reformas da legislação infraconstitucional, relativas aos procedimentos, ao processo, principalmente no que se refere ao sistema recursal, e da estruturação interna dos diversos órgãos jurisdicionais, sobretudo os de primeira instância.
Não desconhecemos, evidentemente, que no diagnóstico destes problemas ou nas propostas para a sua solução registra-se acentuada divergência entre operadores do direito, tribunais superiores e governo federal. E neste campo, há propostas que privilegiam inclusive mudanças na Constituição, como a instituição das súmulas vinculantes para as decisões dos órgãos de base do Poder Judiciário, patrocinada principalmente pelo Supremo Tribunal Federal e pelos tribunais superiores com sede em Brasília, ou o seu contraponto das súmulas impeditivas de recursos, defendido sobretudo pelas associações de magistrados. As duas propostas soam complexas e ensejam grande polêmica entre seus defensores e opositores e, se viabilizadas, poderão significar de fato certo alívio na avalanche de processos que bate nos órgãos do Poder Judiciário.
Mas continuamos firmes no entendimento de que a solução é bem mais simples, e depende tão-somente de alterações na legislação ordinária, com reformas nos códigos e na legislação processual que permitam a simplificação e a desburocratização do processo, facilitando o acesso dos cidadãos aos diversos órgãos da Justiça. Todavia, há importantes segmentos entre os operadores do direito que têm no mínimo posição dúbia sobre a questão e que, por isso, se omitem na sua discussão com indisfarçáveis razões corporativas. Exemplo que pode ser citado são a entidades representativas dos advogados, que não se interessam por efetivas reformas que diminuam ou arrefeçam o nível de conflituosidade hoje gerado pelo processo e pela legislação processual. Também é o caso das posições assumidas pelo governo federal que, na proposta de reforma do Poder Judiciário em tramitação no Senado Federal, tem concentrado seus esforços apenas na criação do órgão de controle externo, vendendo a ilusão de que ele significará a solução para os graves problemas da morosidade e da falta de efetividade.
Enfim, a urgência da reforma do Judiciário não permite que continuemos a tergiversar sobre o que é essencial para transformarmos com radicalismo as estruturas deste poder, de modo a sintonizá-lo com os anseios da sociedade; ou ainda, que permitamos o desvirtuamento da discussão sobre o que também é essencial para tornar suas decisões mais céleres e efetivas. Todos nós, juízes, advogados, Ministério Público e, principalmente, os jurisdicionados, somos os responsáveis pelo futuro do Poder Judiciário.