Noticia o site da OAB que a entidade maior dos advogados brasileiros desafia a Anamatra, a Associação Nacional de todos os Juízes do Trabalho do Brasil, a debater o instituto do quinto constitucional, que permite o ingresso de operadores do direito, sem o regular concurso público, na carreira da magistratura, em tribunais de segunda instância e nos superiores.
Entendo que o tema sequer pode ser encarado como desafio, mas uma necessidade do estabelecimento de debate sobre todas as formas de acesso aos cargos do Poder Judiciário, inclusive o denominado quinto constitucional, que reserva vagas exclusivas, nos tribunais, para advogados e membros do Ministério Público, sem concurso público e por indicação da OAB e das entidades do MP, com apreciação política dos nomes pelos tribunais e pelo Poder Executivo.
E foi nessa linha que a Anamatra solicitou, em 2002, a opinião dos conselhos seccionais da OAB e das associações de procuradores sobre o tema. A Anamatra aceita o convite da OAB para discutir o tema em caráter nacional e sugere a designação do encontro para data bem próxima, que pode ocorrer em algum dos espaços do Congresso Nacional, se possível com a participação de parlamentares e de outras organizações da sociedade civil organizada. Mas se o debate tiver que ser restrito, a Anamatra propõe-se a agendar reunião para os próximos dias com o presidente da OAB, doutor Roberto Busato.
Lamento o modo como foi encarado o posicionamento da Anamatra pela OAB, onde há referência ao fato de que o presidente da OAB recebeu “denúncia” de conselheiro federal no sentido de que a Anamatra “está trabalhando pela extinção do quinto”. Ou ainda, quando há insurgência pelo fato da Anamatra não ter procurado a OAB para discutir o assunto, “simplesmente defendendo o seu interesse corporativo”.
Ora, tratar a posição clara da Anamatra, extraída da consulta feita aos associados no ano de 2002, cujo resultado foi amplamente favorável à extinção do denominado quinto, como algo sujeito à denúncia, é, no mínimo, arvorar-se no direito e na presunção de que as idéias da OAB não merecem contestação, sequer podendo ser debatidas por outros segmentos. Enfim, é um comportamento pouco democrático.
Ademais, não obstante o respeito que tem à História e à trajetória política da entidade maior dos advogados brasileiros, a Anamatra não precisa pedir autorização a qualquer pessoa para discutir com os seus associados os temas que considera relevantes para o Poder Judiciário e para a sociedade brasileira. A OAB, quando defende o controle externo do Judiciário, é evidente que não necessita de qualquer aval das associações de classe da magistratura ou dos tribunais.
Como é possível enxergar corporativismo na tese defendida pela Anamatra, apesar da razão estar centrada no prestígio ao modo de seleção mais democrático de juízes e sem interferência do poder político? O que dizer então da posição da OAB que pretende manter o seu prestígio na realização de listas de advogados concorrentes aos cargos nos tribunais? Fáceis são as explicações.
O ingresso na carreira da magistratura, nos tribunais, através do quinto constitucional, revela a face do Estado corporativo e nitidamente intervencionista dos anos 30 no Brasil, por parte do Poder Executivo, com a mitigação da independência do Poder Judiciário, na precisa definição do ex-presidente da Anamatra, Hugo Cavalcanti Melo. Confere privilégio a advogados e a membros do Ministério Público.
Aliás, o modelo sofre questionamentos entre os próprios advogados, como é o caso do renomado Raul Haidar e do professor Dalmo Dallari, tendo declarado este último que “o melhor modo de seleção de juízes é o concurso público, aberto, em igualdade de condições, a todos os candidatos que preencham certos requisitos fixados em lei, excluída qualquer espécie de privilégio ou discriminação”.
Com a criação do Conselho Nacional de Justiça do Poder Judiciário, elimina-se o último argumento favorável ao quinto, onde alegava-se que o ingresso de advogados e membros do MP, mediante indicação das respectivas entidades de classe, funciona como uma espécie de “controle externo” do Judiciário.
Desde a posse do doutor Roberto Busato, temos intensificado o relacionamento da Anamatra com a OAB, na busca da construção de alternativas que realmente possam mudar o perfil da justiça brasileira. Espero que o presente episódio, revelador de notória dissonância quanto ao denominado quinto constitucional, ao invés de provocar fissura na relação, fortaleça os laços de entendimento entre as duas entidades.
É divergindo publicamente que encontraremos as melhores alternativas, cujos fundamentos devem abolir tendências naturalmente corporativas. E assim o é desde a Grécia pré-socrática, na feliz percepção de Heráclito, o verdadeiro precursor da dialética, que explicava o mundo pelas contradições existentes, ao afirmar que “todas as coisas opõem-se umas às outras e dessa tensão resulta a unidade do mundo. A harmonia nasce da própria oposição”. Vamos em frente com as diferenças, custe o que custar, porque não tememos ameaças. Quando é que acontecerá o debate? O desafio agora é nosso.