O magistrado vale pelo que é e não pelo que tem. O magistrado é a boca da Justiça e não da lei. O povo já está farto de “lei” e de “direito”, clama por justiça. Mas os juízes insistem em pronunciar um “Direito” em-si. E só um espírito sereno e sem ambições terá condições de socorrer os sedentos de justiça!
A crise maior do Judiciário reside no fato de pessoas comuns tornarem-se juízes e de juízes comportarem-se como pessoas comuns.
Várias funções exigem teste vocacional para avaliar a aptidão de pretendente ao cargo e não somente o seu preparo objetivo no sentido de dar respostas a questões universais encontráveis nos manuais. Ainda não se descobriu um processo de avaliação subjetiva do candidato a juiz, capaz de avaliar-lhe as taras e predisposições, bem como sua fidelidade aos padrões da boa justiça. Contudo, não obsta que se faça essa lapidação a posteriori.
Com isso, jovens ávidos de um emprego rentável, de algum poder e de um espaço social mais arejado procuram a magistratura, para tanto preparando-se nos moldes materialistas e objetivistas, na leitura só dos manuais práticos, sem a primeira incursão na Moral. Conseguem aprovação como quem tira a habilitação de motorista sem saber dirigir.
O resultado de tudo isso são magistrados decepcionados com o pouco poder que têm, porque tudo tem limite, frustrados com o ganho, que não é lá essas coisas, e não suporta o padrão de uma vida social mais elevada.
E o ideal de justiça, onde ficou? Estacou em passado remoto, nos bancos dos primeiros períodos da faculdade. Fez uma pousada modesta em algumas consciências. Padece no esquecimento da grande maioria.
“Não ganho por número de sentenças proferidas”, dizem alguns amorais juízes, com o fim de justificar sua indolência, confessando, com isso, sua falta de aptidão, de conteúdo realmente jurídico, de bagagem moral.
Como conseqüência, o materialismo jurídico agrilhoa os julgados às fórmulas estreitas da química jurídica, as mesmas que serviram de base no concurso público. Sequenciando, os postulados legais e jurisprudenciais, bem como dos doutores da fórmula jurídica (e não doutores do direito) assaltam-hes a mente como se fossem verdades eternas, aliás, postura própria dos povos primitivos, em que a palavra possuía verdadeira força mágica e um valor independente das intenções daquele que a pronuncia. “Sabe-se também que, nesses períodos, a palavra do oráculo esconde um sentido, que os não iniciados não percebem até ao momento em que a súbita realização de certos fatos a esclarece, de repente” (Radbruch, apud Eduardo Espínola e Espinola Filho – Tratado de Direito Civil Brasileiro, vol. III, p. 214. Freitas Bastos, 1939).
Segundo o magistério de Littré, o conhecimento teórico é marcado por três estádios: primeiro o teológico ou fictício; segundo o metafísico ou abstrato; terceiro o científico ou positivo. O primeiro representa a obra da razão concebendo vontade nas coisas; o segundo, a obra da razão pondo nas coisas as vistas do espírito; a terceira, obra da razão tirando das coisas aquilo que deve ser posto no espírito.
Com as honrosas exceções, nossos colegas magistrados vêm utilizando o ensinamento positivista, mas dando-lhe cunho teológico, concebendo seus postulados como uma revelação do oráculo.
Com efeito, Piaget elabora sua teoria das etapas do desenvolvimento humano, pondo em primeiro lugar o sensitivo, revelado pelos instintos de comer, de beber, de chorar, de movimentar-se, das necessidades fisiológicas etc.; o segundo seria o positivo, atingido em média aos cinco anos, quando a criança adquire certa consciência de causa e efeito da conduta; aos doze anos, em média, chega a um estágio de equidade. ... Mas só aos 24 anos será capaz de conjecturar juízos morais. Já Karl Oton-Apel acrescenta um outro estágio mais evoluído, o da consciência da ação comunicativa.
No plano cartesiano, para que o direito passe da teoria à prática, basta se observem as seguintes providências: a) que o estado de fato objeto da controvérsia seja fixado; b) que a norma jurídica seja determinado; c) seja pronunciado o resultado jurídico, que deriva da subordinação do estado de fato aos princípios jurídicos, diz Espínola.
Mas não deve ser só assim. A ciência humana parte daí e agrega os aqüestos culturais, históricos, psicológicos, para que humana seja a decisão.
"Sinto muito, mas a lei não ampara seu pedido, que é demais justo”, dizem os julgadores. Ora, que lei, temos mais de cem mil leis vigentes? A lei é o Ordenamento, e este é justo, não acobertando soluções injustas. É esse tecnicismo que tem afastado o juiz do povo, que é inculto, mas sensível à idéia do justo substancial, não aceitando justificativas formais. Mas o que é justo, se cada um tem sua concepção de justiça? É fácil, pois o injusto é aquilo que causa indignação e reprovação na média das pessoas. E justo é aquilo que, abstraído da propaganda momentânea, arranca da alma da média do povo sentimento de aprovação. Até as pessoas cultas podem entender os julgados técnicos, mas não o assimilam. Precisamos descer do oráculo e juntarmo-nos ao povo a que devemos servir. O povo já está farto de lei e de direito, agora quer justiça!
Para pronunciar o direito, o juiz deve empregar toda a sua vocação de homem bom, probo, sem ambição, religioso (de qualquer credo, no dizer de Barata e Silva), sensível, mas sobretudo culto.
O vocábulo norma jurídica reúne conteúdo mais amplo do que lei. Norma constitui a construção que do Ordenamento Jurídico o intérprete extrai, mediante a análise de todos os ângulos da lei: gramatical, lógico, histórico, sociológico, mas sobretudo humano. Ou seja, o texto normativo passa por um processo de plenificação para poder tornar-se norma, ou norma de concreção. Por isso, a função primordial do juiz é solucionar os casos, com o auxílio da lei, e não só com a lei. Exemplo do que se afirma é que, pela letra fria do Código Civil, o filho de uma mulher gestado em outra (barriga de aluguel não teria reserva de bens a que tem direito o nascituro no caso de morte da verdadeira mãe, aquela que teve o óvulo fecundado e implantado. Mas, à luz do direito, sim, pois a lei não é apenas texto, mas também contexto. Da mesma forma pela legislação vigente, todos os pedintes e todos os vadios que infestam as praças públicas deveriam estar na cadeia. Põem, ante a falta de emprego e ante o princípio da liberdade, isso é absolutamente impraticável e inviável, inclusive à falta de cadeia para tanto. Isto porque a palavra é mau veículo do pensamento, diz Carlos Maximiliano.
A justiça constitui um dos bens públicos mais preciosos, de quem o povo espera muito, o elemento neutralizador da vingança privada, ainda mais nos últimos tempos, em que o místico cede espaço ao laicismo. No racionalismo iluminista, dizia Montesquieu, “o juiz é a boca da lei”. Mas como já referido, de que lei, se são tantas e tão contraditórias? Melhor dizermos hoje que o juiz é a boca da justiça, aliás, o magistrado representa a mão, os olhos, os ouvidos e a boca da Justiça.
Conseqüentemente, o magistrado deve identificar-se com os valores superiores, com a superação dos sentimentos inferiores (como o ódio, a inveja, o orgulho, o ciúme, a ambição, a ingratidão, a traição), pautar sua vida pela retidão, com o mínimo de preocupação com os aspectos materiais e promocionais. Que venham o ganho material e as promoções, mas como fruto de uma construção diuturna, serena, do seu labor no dia-a-dia e não como resultado perseguido.
Como membro do poder, o julgador subordina-se à hierarquia por vínculos tênues, significando que, uma vez concedida a autodisciplina, presume-se reúna tal pessoa os atributos éticos da autocrítica, do controle próprio dos seus impulsos egoísticos, o suficiente para dedicar sua vida ao público que procura a solução jurídica dos seus problemas.
A justiça não se pode comparar aos órgãos das outras divisões do Poder, porque estes se pautam por soluções e ações casuísticas, espelhados no materialismo emergente, servindo a uma linha de interesse, enquanto o Judiciário representa a corporificação do ideal, do infalível, do desinteressado – uma reserva moral da sociedade e do Poder.
O Judiciário é, do ponto de vista material, o mais pobre e o mais frágil dos Poderes, pois não comanda os canhões nem tem a chave do cofre. A justiça não aplica golpes financeiros nem dá golpe de Estado. Sua força vem de sua qualidade, do apoio e da confiança que a sociedade lhe tem. E são estes últimos dados que devem ser alimentados.
O exercício da magistratura não constitui emprego público nem fonte de renda, mas uma nobilíssima função pública, cujos ocupantes devem pautar-se por valores éticos os mais sublimes, mais que qualquer agente da economia, porque este, de regra, trabalha em torno de interesse acima de tudo pessoal, enquanto o juiz deve ser muito atuante, operoso, porém totalmente desinteressado e de espírito desarmado.
O juiz vale pelo que é e não pelo que tem. Probidade, cultura, prudência, sensibilidade, serenidade, equilíbrio, anonimato, discrição são qualidades que o magistrado deve, como pessoa, acumular; operosidade, firmeza, acessibilidade, certa rigidez, consistência, coerência devem acompanhar o juiz-órgão. A publicidade interessa ao político, porque alimenta-se do voto popular; o rigor autoritário liga-se à carreira policial, porque combate o infrator; a azáfama é própria do agente econômico, porque persegue o lucro.
Moral é regra de existência humana; Direito, regra de coexistência. A Moral firma as bases da paz interior; o Direito, da paz intersubjetiva. Significa que aquele a quem foi confiada a missão de pronunciar o direito entre os homens deve possuir primeiro a paz interna, a mente desanuviada de conflitos gestados nos sentimentos egoísticos.
Por isso, conclamamos os juízes a retomarmos os manuais de religião, ética, filosofia, história, sociologia, psicologia e de humanismo, para o progresso do Direito e da Justiça.