1. Introdução
Diziam os antigos chineses que tudo tem o seu contrário: o bom e o mau, o dia e a noite, a terra e a água... Às vezes, o contrário de uma coisa pode estar até dentro dela – como as duas faces de uma mesma moeda.
Tome-se como exemplo a palavra “trabalho”. Ela deriva do latim tripalium, que todos descrevem como um antigo instrumento de tortura, mas alguns também traduzem como uma máquina de debulhar milho ou uma espécie de arado. Assim, numa mesma palavra, colheita e perda, prazer e dor, vida e morte.
Aliás, a própria Bíblia mostra essa dualidade. Quando Adão comeu a maçã, foi condenado a “cavar o pão com o suor do seu rosto”. Mas este suor, além de um meio de expiar a sua culpa, era o modo de reconduzi-lo à salvação . Assim, ainda uma vez, suor e pão, pena e paz, céu e inferno.
Essa dualidade reaparece com o capitalismo, que divide os homens em possuidores e despossuídos dos meios de produção. A força de trabalho se torna, então, mercadoria; e o trabalhador – mercador de si próprio – “perde a sua vida para ganhá-la”, como escreveu alguém, talvez Marx.
Mas eis que surge ainda uma outra contradição, também ligada ao trabalho, ou mais precisamente à fábrica. Para controlar os trabalhadores, e racionalizar a produção, o capitalista os reúne num mesmo ambiente, sujeitando-os aos mesmos sofrimentos. Nasce então a resistência operária e – com ela – o Direito do Trabalho.
É interessante notar como essa contradição da fábrica se refletiu no próprio direito, que passou a traduzir não apenas o poder dos oprimidos, mas a aceitação interessada dos opressores . De fato, quanto mais se consolidava, mais o Direito do Trabalho era usado para estabilizar e reproduzir o sistema – não só o legitimando, mas aumentando o poder de compra das pessoas, e assim realimentando o ciclo. Essa realidade se acentuou nos chamados “anos de ouro” do capitalismo, entre o segundo pós-guerra e o fim dos anos 60.
Hoje, algumas dessas contradições se resolvem, enquanto outras afloram. A fábrica já não precisa reunir para produzir – e desse modo vai inviabilizando a resistência coletiva. Ao mesmo tempo, porém, a sociedade civil começa a se reorganizar em outros níveis, como são exemplo os movimentos populares, as associações de bairro e a maioria das ONGs.
Essas ambiguidades também se instalam nas aspirações do movimento sindical. Assim é, por exemplo, que a liberdade completa, que sempre foi uma de suas bandeiras históricas, agora é vista como um risco. Mas esse mesmo risco, ou essa mesma fragilidade, acaba por induzi-lo a concentrar poder nas cúpulas, solução que também pode se tornar um problema.
É nesse contexto de incertezas que o Fórum Nacional do Trabalho tenta construir um novo modelo de relações entre o trabalho e o capital. Os debates se iniciaram pela questão sindical, em meados de 2003. Agora, surgem as primeiras conclusões, em forma de consensos – que mais tarde serão transformados em projetos de lei e de emendas constitucionais.
A Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – Anamatra - não teve acesso direto aos debates . Por isso, criou uma comissão , que recolheu propostas de várias associações regionais, discutiu múltiplas possibilidades e alinhavou os pontos principais de sua própria idéia de reforma.
Como o Leitor poderá ver, as conclusões do Fórum nem sempre coincidem com as dos juizes, que são também as do autor desse trabalho. Naturalmente, isso não significa, necessariamente, que a razão esteja conosco - mas talvez aponte para a necessidade de um aprofundamento das discussões. É o que tentaremos iniciar aqui, a partir de um breve diagnóstico da questão sindical.
2. O sindicato, numa perspectiva local
O movimento sindical está em crise. Quais as razões desse fenômeno?
Numa perspectiva local, tomando apenas a realidade brasileira, o sindicato é frágil porque a lei que o regula também o reprime – impedindo que possa se organizar de forma democrática e plural.
Mas a crise de nossos sindicatos se explica também por outros fatores, dentre os quais a Anamatra cita:
a) o poder normativo da Justiça do Trabalho, que inibe as suas ações e lhe subtrai responsabilidades;
b) a contribuição sindical obrigatória, que lhe permite existir mesmo quando não tem a menor representatividade – o que acaba desgastando a sua imagem;
c) as restrições ao direito de greve, não só as advindas através da lei ordinária, mas em descompasso com a Constituição, como as decorrentes do poder normativo, por ela previsto;
d) a falta de repressão efetiva aos atos anti-sindicais;
e) a ausência de organização nos locais de trabalho;
f) o distanciamento entre as bases e as cúpulas;
g) o distanciamento entre as próprias bases e os outros segmentos sociais;
h) o não reconhecimento formal das centrais como entidades sindicais;
i) a impossibilidade de contratos coletivos em níveis maiores;
j) a quase absoluta falta de proteção ao emprego dos nossos trabalhadores, que os faz temer a ação sindical e – aumentando o turn over – não só os desaloja constantemente de seu núcleo profissional, como os induz à concorrência, destruindo pouco a pouco o sentimento de solidariedade.
3. O sindicato, numa perspectiva global
Numa perspectiva global, a crise do sindicato começa pela própria globalização, passa pela reestruturação produtiva e termina na ideologia neoliberal, que traz de volta, com ares de novo, um velho discurso.
Na verdade, é o próprio trabalho humano que se desvaloriza, o que acaba também desvalorizando o Direito, a Justiça e todos os atores e instituições que tentam de algum modo protegê-lo.
Nasce a doutrina da flexibilização, que se concretiza, sobretudo:
a) pela retirada formal de direitos;
b) pela perda crescente de sua efetividade;
c) pela leitura às avessas do princípio da proteção ; e
d) pela transformação gradativa de normas de ordem pública em regras disponíveis.
Do ponto de vista econômico, o sindicato sofre os efeitos de um novo modo de organizar a produção, que, pouco a pouco:
- transforma a grande fábrica - onde a solidariedade fermentava – numa empresa quase deserta, ou – no limite - em simples gerenciadora de uma vasta rede, que envolve tanto a economia formal como a informal;
- por isso mesmo, quebra em pedaços o coletivo operário, não só em termos físicos como psicológicos;
- usa a automação não para criar tempo livre, mas para libertar-se, de forma crescente, da necessidade de mão-de-obra;
- transforma parte dos trabalhadores que restam em autônomos, cooperados e estagiários, alguns reais e outros falsos, mas todos desprotegidos, e cujos interesses não convergem – mas concorrem – com os dos empregados formais;
- troca os que permanecem empregados por outros – especialmente jovens e mulheres – sem a mesma tradição de luta, e através de contratos precários;
- transforma a empresa de imóvel em móvel , permitindo-lhe sediar-se onde os sindicatos são mais frágeis;
- aumenta, por isso mesmo, o poder de barganha da empresa, que assim pode ameaçar deslocar-se para outras paragens, numa espécie de lock-out disfarçado;
- põe em crise, também por isso, a negociação coletiva, invertendo as posições dos atores (o sindicato profissional se defende, o econômico ataca) e, na prática, inviabilizando novas conquistas dos trabalhadores;
- oferece ao sindicato, como espaço residual de manobra, a possibilidade de negociar com os governos e as grandes corporações o próprio processo de precarização, jogando com a perspectiva teórica de reduzi-la, mas ajudando na prática a legitimá-la;
- por tudo isso, desgasta – e vira pelo avesso - a imagem e os próprios conceitos de sindicato e de convenção coletiva;
- semeia a instabilidade e – com ela – o medo;
- semeia o individualismo e – com ele – a cooptação;
- transforma a empresa em centro (re)produtor de ideologia, reforçada pela cooptação e pelo medo;
- acentua o poder diretivo, senão de direito, pelo menos de fato, fazendo do empregador não só o detentor do contrato , mas o primeiro juiz do empregado, quando este não se coloca no seu devido lugar.
4. O sindicato, em sua própria perspectiva
Como o próprio sindicato está se vendo?
Até recentemente, a maior parte do sindicalismo brasileiro não tinha uma percepção crítica do que acontecia no mundo. Via-se apenas refém de um passado corporativista e projetava um futuro exatamente ao contrário.
Nessa perspectiva, todos os problemas se resumiriam na herança de Vargas – a unicidade, o “imposto”, o poder normativo, a organização por categorias. Acabando-se com isso, tudo seriam flores.
Esse modo de pensar tem até hoje a simpatia dos meios mais conservadores, inclusive a midia. E não é por acaso. Ao reduzir a crise a um fenômeno local e circunstancial, afasta as atenções de sua dimensão também global e estrutural.
Com o passar do tempo, porém, o sindicalismo parece ir percebendo que os seus problemas têm raiz bem mais profunda. Não se resumem à famosa Carta del Lavoro. Por isso, não dependem simplesmente - nem mesmo principalmente – da revogação de alguns artigos de lei.
A propósito, aliás, não custa notar que o próprio modelo corporativo já não é o que era. O contexto mudou – alterando a função e a importância de cada uma das peças da engrenagem. Por isso, não se pode analisá-lo, hoje, como se ainda estivéssemos no tempo de Vargas.
Numa comparação bem singela, é mais ou menos o que acontece com as reações químicas. Como escrevemos certa vez, “tomemos como exemplo uma reação conhecida: a água. Como sabemos, ela é o resultado da união de duas moléculas de hidrogênio e uma de oxigênio. Pois bem. Se trocarmos o oxigênio pelo enxofre, o resultado será ácido sulfídrico: uma substância pastosa, com um cheiro horrível, quase o oposto da água. Conclusão: às vezes, basta que um dos elementos se altere, para que toda a reação se modifique.
Ora: o modelo corporativo exigia vários ingredientes, usados em conjunto. O objetivo era controlar o sindicato, a fim de que o próprio Estado absorvesse a luta de classes. Desde 1988, porém, alguns dos ingredientes não mais participam da receita, exatamente porque não se persegue o mesmo fim. O Estado já não pode, por exemplo, intervir ou interferir na vida sindical. Por isso, o resultado da reação pode ser diferente.
Mas voltemos às nossas moléculas de hidrogênio e oxigênio. Se, ao invés de trocarmos uma delas, simplesmente as aquecermos, o resultado será um gás; se, ao contrário, as esfriarmos, obteremos água ou mesmo gelo. Isso nos mostra que a simples ação do ambiente pode alterar radicalmente o resultado, mesmo quando os elementos da reação permanecem os mesmos.
Pois bem. Há dez ou vinte anos, qual era o ambiente em que se inseria a ação sindical? A grande empresa era vertical. Dominava, de alto a baixo, todas as etapas de produção, fabricando em massa, para um consumo de massa. Para isso utilizava trabalhadores também em massa, com tarefas fragmentadas, repetidas, e ao mesmo tempo homogêneas.
Esses grandes contingentes de operários, trabalhando nos mesmos locais, em jornadas plenas e por anos a fio, acentuavam aquela velha contradição do sistema: a de ter de reuní-los em volta da máquina e não poder evitar que eles próprios se unissem. Além de carros e sabonetes, a fábrica produzia, assim, o seu próprio demônio.
A esse modo de ser da fábrica correspondia um modo de ser do sindicato. Também ele era grande, homogêneo, verticalizado. O pleno emprego se refletia no associativismo pleno. E, para completar, também o Estado era forte, grande, interventor.
Hoje, esse modelo está em crise. Para manter as taxas de dominação e lucro, a empresa tenta se enxugar, e para isso se automatiza, se reorganiza, se terciariza e - especialmente - terceiriza. Graças aos novos recursos, como a informática, ela se parte em pedaços, através das parceiras, sobre as quais conserva uma invisível relação de domínio.
Os resultados são basicamente três: a produtividade aumenta, os custos se reduzem e a resistência operária - tanto em nível individual, como na esfera coletiva - passa a ser coisa do passado. O próprio sindicato, símbolo e expressão dessa resistência, vive a maior de suas crises” .
Como dizíamos, o ambiente mudou, o que altera o resultado da reação. Assim, o sonho de uma alteração radical no modelo pode e deve ser dosado com uma pitada de realidade. E o sindicalismo vai se convencendo disso.
Em outras palavras, a principal razão da fragilidade do movimento sindical não é a “herança de Vargas”, mas a nova forma de acumulação capitalista. É a estrutura, bem mais que a circunstância.
No limite, o novo modelo econômico é incompatível com o sindicato, ou pelo menos com a forma de sindicato que o mundo tem conhecido até hoje. E é exatamente por isso que alguns autores já não falam apenas em crise, mas em declínio do sindicalismo.
Com efeito: ao externalizar os custos, a empresa divide já não apenas cada empregado, mas a própria classe trabalhadora. E é nesse ponto, mais do que em qualquer outro, que reside a grande arma do novo modelo: ele resolve a contradição da fábrica enquanto local de trabalho e, ao mesmo tempo, de fermentação coletiva.
Por outro lado, os sindicatos – ou mais precisamente as centrais – parecem estar assumindo, definitivamente, o papel de atores de um novo modelo de negociação, envolvendo os empregadores e o Estado. E é também este o olhar do Fórum, mesmo porque ele próprio já é a primeira grande experiência nesse sentido.
O problema é que o Estado, como dizíamos, tem poucas possibilidades de se tornar o fiel da balança. Ele próprio deve prestar contas a outros tantos atores - das multinacionais aos organismos financeiros internacionais – que o pressionam fortemente na direção dos interesses do capital.
Desse modo, o papel desse “Novo Sindicalismo” às avessas seria apenas o de tentar reduzir o ímpeto da onda flexibilizadora, o que sem dúvida é importante; mas ao preço de legitimar – e com isso reforçar – tudo o que vier a ser flexibilizado com a sua participação. Na verdade, estará legitimando o próprio modelo e a ideologia que o acompanha.
E como o sindicato vai-se tornando mais de resposta que de ataque, a sua importância, maior ou menor, será medida pela sua intervenção, também maior ou menor, em defesa de direitos residuais. E isso poderá levá-lo a aceitar a transformação gradual de normas de ordem pública em regras disponíveis, exatamente para que – num segundo momento – possa tentar negociá-las de maneira favorável aos trabalhadores. Ou seja: na falta de um espaço onde possa negociar para cima, o sindicato ajuda a criar artificialmente um novo espaço – para baixo – onde possa se movimentar.
Se essa perspectiva se confirmar, o sindicato estará atingindo o ápice de um longo processo de institucionalização, cujas bases foram construídas no início do século XX. Mais uma vez se tornará uma peça essencial ao sistema. Mas de um modo bem diferente ao dos “anos gloriosos” do capitalismo, quando realimentava o ciclo produtivo, mas aumentando o poder de compra (e, portanto, as condições de vida) dos trabalhadores.
É verdade que, já naquela época, o sindicato havia abandonado a luta contra o sistema; mas o fato é que o sistema se tornara permeável às suas reivindicações imediatas. Hoje, ao contrário, o capital quer retomar o terreno perdido. E isso inverte o papel de cada uma de suas peças, dentre as quais o próprio sindicato e a negociação coletiva.
5. Síntese dos principais consensos do Fórum
5.1. Quanto à organização sindical
Os sindicatos serão organizados segundo o ramo de atividade preponderante das empresas ou das unidades produtivas de sua base de representação. Com isso, desaparecem os sindicatos de categorias diferenciadas e profissionais liberais. A base mínima continuará correspondendo a um município.
Mas essas regras se flexibilizam em relação aos atuais sindicatos, bem como aos que se constituírem até à véspera da nova lei. Para eles, haverá uma espécie de direito adquirido. Poderão continuar como estão, desde que sejam representativos. Mas se houver um sindicato no ramo da atividade econômica, os trabalhadores poderão preferi-lo.
Outro ponto importante diz respeito ao pluralismo. Numa mesma base, poderá haver mais de um sindicato. Mas essa regra também não será aplicada aos sindicatos existentes até antes da lei, desde que optem, em assembléia, pelo monopólio de representação.
E mesmo a última hipótese é flexível. Se, no futuro, um grupo de trabalhadores quiser criar um novo sindicato, basta ganhar a assembléia e mudar as regras do jogo – embora, na prática, isso deva ser difícil. E pode ainda acontecer que, no futuro, um outro sindicato se organize, criando uma nova base de representação.
A exclusividade também poderá cair se o sindicato não continuar sendo representativo. Por fim, o sindicato terá de ter estatutos democráticos, cujos parâmetros serão fixados pelo Conselho Nacional de Relações de Trabalho. A intenção é evitar que o processo eleitoral dos sindicatos continue manipulado por seus dirigentes, o que acontece hoje, com frequência.
Assim, como se percebe, a representatividade é um dos pontos-chave do novo sistema. Para ser criado e se manter vivo, o sindicato não filiado a uma central ou confederação deve ter um quadro de sócios igual ao superior a 20% dos “trabalhadores empregados” em sua base de representação (o que exclui os aposentados).
Caso prove ter aquele índice, o sindicato recebe do Ministério do Trabalho a certificação que o habilita a existir. Mas o índice deve ser mantido ao longo do tempo – de tal modo que nada impede que o sindicato acabe perdendo a representação.
No entanto, pode uma central, uma confederação ou uma federação criar diretamente um sindicato, mesmo sem aqueles 20%. Do mesmo modo, pode filiar em seus quadros um sindicato já existente, sem que este tenha cumprido o requisito. É a chamada “representação derivada”, diferente da “representação comprovada”, e sobre a qual falaremos adiante.
É importante notar que as centrais integrarão o sistema, o que não acontece hoje, pelo menos na teoria. Mas, para isso, também elas terão de ser representativas, o que significa atender a três desses quatro requisitos, verbis:
“1. A Central Sindical deverá contar com Sindicatos reconhecidos em pelo menos 18 (dezoito) Estados da Federação, contemplando as cinco regiões do País;
2. Dentre os 18 (dezoito) Estados da Federação com representação da Central Sindical, em pelo 9 (nove) a soma dos trabalhadores empregados sindicalizados nos Sindicatos pertencentes à Central Sindical deve ser igual ou superior a 15% da soma dos trabalhadores empregados em cada um desses Estados;
3.A soma dos trabalhadores empregados sindicalizados nos Sindicatos pertencentes à Central Sindical deve ser igual ou superior a 22% da soma dos trabalhadores empregados nas bases de representação de seus Sindicatos;
4.Em pelo menos 7 (sete) setores econômicos, previstos na legislação, a soma dos trabalhadores empregados sindicalizados nos Sindicatos pertencentes à Central Sindical deve ser igual ou superior a 15% da soma dos trabalhadores empregados em cada um desses setores econômicos em âmbito nacional”.
Atualmente, segundo participantes da bancada do Governo, apenas a CUT seria capaz de atender a essas exigências. Mas na própria CUT há quem diga que a Força Sindical também as atenderia. De todo modo, como haverá um prazo de transição, é provável que pelo menos aquelas duas centrais permaneçam. Aliás, se isso não acontecer, é ainda mais provável que as regras sejam mudadas.
As confederações serão organizadas não por ramo, mas por setor de atividade. Curiosamente, a diferença entre ramo e setor foi deixada para o Poder Executivo. Ou seja: embora se tenha feito a distinção, não se sabe exatamente do que se trata. Mas a idéia geral é a de que o setor seja algo mais global.
Arriscando um exemplo, a toda a indústria seria um setor, e a indústria metalúrgica um ramo de atividade. Mas a matéria ainda está em aberto. Como ponto de partida para as discussões, fixou-se um número de 14 setores na economia brasileira.
Do mesmo modo que os sindicatos, as confederações tanto poderão se constituir com independência como se filiar às centrais. Na última hipótese, sua representação também será “derivada”. Não sendo assim, terão de obedecer às seguintes regras, in verbis:
“1. A Confederação Sindical deverá contar com Sindicatos reconhecidos em pelo menos 18 (dezoito) Estados da Federação, contemplando as 5 (cinco) regiões do País;
2. Dentre os 18 (dezoito) Estados da Federação com representação da Confederação, em pelo menos 9 (nove) a soma dos trabalhadores empregados sindicalizados nos Sindicatos pertencentes à Confederação deve ser igual ou superior a 15% da soma dos trabalhadores empregados em cada um desses Estados;
3. A soma dos trabalhadores empregados sindicalizados nos sindicatos pertencentes à Confederação deve ser igual ou superior a 22% da soma dos trabalhadores da base de representação de seus Sindicatos”
Quanto às federações, serão organizadas por ramo de atividade e também poderão ter representação derivada. Não acontecendo isso, estarão sujeitas aos seguintes critérios:
“1. A soma dos trabalhadores empregados sindicalizados nos Sindicatos pertencentes à Federação deve ser igual ou superior a 22% da soma dos trabalhadores da base de representação de seus Sindicatos;
2. A soma dos trabalhadores empregados sindicalizados nos Sindicatos pertencentes à Federação deve ser igual ou superior a 15% da soma dos trabalhadores empregados no ramo de atividade econômica da base de representação da Federação”.
As centrais podem criar (ou manter) confederações, federações e sindicatos. As confederações podem criar (ou manter) federações e sindicatos. E as federações podem criar (ou manter) sindicatos.
Em todas essas hipóteses, como vimos, as entidades criadas ou mantidas não precisam obedecer àqueles requisitos. A representação será derivada. Mas para que isso seja possível, a entidade que criar outra (de nível inferior) terá de se manter representativa (a menos que ela própria retire a sua representatividade de outra superior).
Para entender melhor o mecanismo, imaginemos que uma central esteja exatamente no limite dos índices de representatividade, sem nenhuma sobra. Nesse caso, não poderá transformar em sindicato uma associação sem representatividade. Suponhamos, agora, que ela esteja apenas um pouco acima daquele limite. Nessa hipótese, pode ser que consiga criar o sindicato, mas ela própria pode se tornar não representativa. É que os números relativos ao sindicato criado serão naturalmente computados quando for calculada a representatividade da própria central. Assim, a proporção dos empregados sindicalizados, em relação aos não sindicalizados, será menor.
Desse modo, para que uma central crie ou mantenha uma entidade sindical pouco representativa, é preciso que ela própria tenha gordura suficiente – o que a levará a considerações estratégicas, na base da relação custo/benefício. Também por isso, pode acontecer que uma central resolva extinguir a entidade criada. Aliás, conforme o caso, a sua própria sobrevivência poderá depender disso.
Note-se que os critérios para aferir a representatividade das entidades sindicais só passarão a vigorar depois de um período de transição - que deve se estender por 36 meses, mas pode ser prorrogado por outros 24. Nesse período, as exigências serão menores.
Outro ponto importante: os sindicatos com monopólio de representação têm de ter representatividade “comprovada”. Não podem ser “derivados”.
Por fim, haverá organização nos locais de trabalho - OLT. Como não houve acordo sobre o seu funcionamento e constituição, o tema foi remetido à Comissão de Sistematização. Mas é quase certo que o sindicato estará presente.
5.2. A negociação coletiva
O modelo proposto lembra a “negociação articulada” italiana. Poderá haver um contrato coletivo em nível maior (até nacional), a partir do qual serão celebrados convenções e acordos. Em princípio, as regras mais importantes, e também as mais genéricas, seriam fixadas em níveis maiores, e em seguida especificadas ou completadas em níveis menores. Mutatis mutandi, seria algo parecido com a relação que existe entre a Constituição, a lei ordinária e o decreto que a regulamenta, embora nem sempre com a mesma rigidez.
Quando existirem, os instrumentos normativos de nível superior “deverão indicar as cláusulas que não podem ser modificadas em nível(eis) inferior(es), observadas as peculiaridades de cada âmbito de representação e de empresas ou unidades produtivas” Naturalmente, na prática, essa regra tanto poderá servir para preservar conquistas como para espalhar precariedades.
Havendo mais de uma entidade sindical na mesma base, seja de empregados, seja de patrões, cada uma delas terá representantes na bancada de negociação, em número proporcional ao dos trabalhadores filiados. A bancada deverá estabelecer como será tomada a decisão final a respeito da assinatura (ou não) do convênio coletivo.
A negociação coletiva será obrigatória – embora as partes, naturalmente, possam não chegar a um consenso. Caso uma das entidades representativas se recuse a negociar, a titularidade da negociação pode ser conferida a outra . Na mesma hipótese, os “responsáveis diretos” estarão sujeitos a “multas e penas estabelecidas na lei”. Além disso, se a recusa for reiterada, o sindicato pode perder suas “prerrogativas e atribuições”.
Se não houver entidade sindical disposta a negociar, os trabalhadores podem deliberar diretamente, o que a atual CF não permite. Excetuando-se essa hipótese, a negociação coletiva só poderá ser realizada, do lado dos trabalhadores, por entidades sindicais que os representem. Já do lado patronal, poderá ser firmada por empresas ou “unidades produtivas”.
O instrumento coletivo terá plena eficácia jurídica, como já acontece hoje. E está garantido o direito a informação. O prazo de vigência, salvo ajuste em contrário, será de até 3 anos, ao fim dos quais haverá prorrogação automática por 90 dias – prazo que também poderá ser prorrogado por acordo. Se persistir o impasse, as partes poderão eleger árbitro. Na impossibilidade disso, “o conflito será submetido à arbitragem pública por meio da Justiça do Trabalho”.
Embora o documento do Fórum não o diga claramente, a Justiça do Trabalho só atuaria na impossibilidade de renovação de instrumentos normativos. Os “conflitos novos” serão“abertos”, ou seja, podem se estender indefinidamente.
Quanto ao conteúdo da negociação coletiva, o documento da Comissão de Sistematização diz que:
“O novo marco normativo da negociação coletiva deve considerar a realidade dos setores econômicos, das empresas ou das unidades produtivas, e as necessidades dos trabalhadores, ressalvados os direitos definidos em lei como inegociáveis (...)”
Note-se que os “direitos definidos em lei” não são, necessariamente, os que a lei hoje define como inegociáveis. Ao contrário. Nas entrelinhas dos consensos firmados, o que se percebe é a tendência de se limitar as normas de ordem pública a um “mínimo” – que será certamente menor do que o atual.
Haverá negociação coletiva no setor público, mas regulamentada à parte. Para isso, o Fórum fixou o prazo de 120 dias, a partir da entrega ao Congresso das conclusões a respeito da reforma sindical.
5.3. Proteção contra atos anti-sindicais
A proposta de reforma considera nulo todo ato tendente a:
“a) subordinar o emprego de um trabalhador à filiação ou não a uma entidade sindical, ou ainda, ao seu desligamento;
b) despedir ou discriminar no exercício regular das funções, um trabalhador devido à sua filiação, atividade sindical ou participação em greve”
A solução natural, em caso de despedida discriminatória, seria a reintegração no emprego. É o que se conclui não só pelo caráter de nulidade do ato, como porque, segundo o mesmo documento,
“a futura legislação deve prever expressamente a possibilidade de reversão judicial do comportamento lesivo mediante um procedimento ágil e simplificado” (grifos nossos)
Será também proibido conceder “tratamentos econômicos de favorecimento, com caráter discriminatório, decorrentes da filiação ou da atividade sindical”. A pena será de multa.
5.4. A composição dos conflitos
Esquecendo-se da hipótese de “arbitragem compulsória” pela Justiça do Trabalho, afirma o Relatório que as formas de solução dos conflitos coletivos serão “sempre” voluntárias. Os serviços e atividades essenciais terão disciplina específica, como já acontece.
Havendo greve, os meios de solução deverão ser a conciliação, a mediação e a arbitragem. A Justiça do Trabalho poderá julgar os conflitos de natureza jurídica. Quanto aos de natureza econômica, só poderá atuar como árbitro, e mediante o requerimento de ambas as partes (salvo na hipótese acima lembrada).
Na esfera individual, o novo sistema – também como já acontece hoje – preverá formas de composição extrajudicial, mas sempre com assistência sindical.
5.5. A substituição processual
A substituição processual será ainda objeto de regulamentação, a cargo da Comissão de Sistematização. Havendo impasse, prevalecerá a seguinte proposta:
“É atribuição das entidades sindicais de trabalhadores e de empregadores a defesa dos direitos e interesses individuais e coletivos dos trabalhadores e empregadores, inclusive em questões judiciais e administrativas, conforme a lei”.
Nessa hipótese, como se vê, a substituição poderia ser ampla. Mas também correria o risco de ser restringida pela lei. Note-se ainda que a proposta nada diz sobre a possibilidade de renúncia ou desistência por parte dos trabalhadores beneficiados.
5.6. O direito de greve
A proposta é manter o texto da Constituição:
“É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender”.