Dias atrás, a sociedade brasileira assistiu, estarrecida e indignada, a reportagem jornalística levada a efeito pelos diversos canais de televisão, noticiando o resultado das eleições na cidade de Unaí, MG, onde o candidato a prefeito, acusado de ser um dos mandantes das mortes dos três fiscais do Ministério do Trabalho, além do inocente motorista, que conduzia a diligência destinada à constatação de trabalho escravo, nas fazendas de propriedades do indigitado prefeito-eleito e de seus familiares, e que tanto comoveu a nação brasileira. Não só a totalização dos votos que foram destinados ao referido alcaide, ou sejam, 72% (setenta e dois por cento), elegendo-o diretamente no primeiro turno do referido certame, como, também, ainda e principalmente, por vê-lo recebido por toda a sociedade da pequena urbe mineira, aclamado como herói e carregado nos braços do povo, triunfante. Tais fatos são tão tristes e lamentáveis, como inexplicáveis. Ficamos, simplesmente, perplexos.
Procuramos buscar nos clássicos ensinamentos filosóficos razões que justificassem tais inusitados comportamentos sociais, objetivando compreender o “porquê” dessas reações ou atitudes populares, a desafiar e a aviltar a intuição e a indignação de todos nós.
Primeiro, socorremo-nos dos ensinamentos de Montesquieu, que sempre repetia: “Quando se faz uma estátua, não se deve estar sempre sentado no mesmo lugar; é preciso vê-la de todos os lados, de longe, de perto, de cima, de baixo, em todos os sentidos”. (Cadernos)
Em sua obra, “Do Contrato Social”, editada em 1762, Jean Jacques Rousseau, começa por dizer que: “O homem nasceu livre, e por toda parte se acha em grilhões...Como se fez tal mudança? Ignoro-o. Que pode torná-la legítima? Creio estar em condições de responder a esta pergunta.” Estas famosas linhas, que dão início ao Contrato, indicam, imediatamente, e sem ambigüidade, que o autor pretende estudar uma questão de legitimidade, de direito, não de história.
Assim, formula este eminente filósofo, quando lança um pacto de significação bastante sibilina: “Cada um de nós coloca em comum a sua pessoa e todo o seu poder, sob suprema direção da vontade geral, e nós recebemos em corpo cada membro como parte indivisível do todo”, significando, isto, que cada um dos cidadãos se aliena totalmente e sem reserva, com todos os seus direitos, à comunidade, intuindo que tudo isso se torna coroado, esclarecido e às vezes até mesmo obscurecido, por uma metafísica, para não dizer, uma teologia da vontade geral, que pode ser entendida por duas espécies distintas.
Como homem individual, é tentado a perseguir, de acordo com o instinto natural, egoísta, o seu interesse particular. Todavia, o homem social, que nele existe, o cidadão, procura e quer o interesse geral, na busca da própria moral. Todavia, Rousseau bem sabe que a condição humana é dependente, e que o homem natural está rudemente sujeito à natureza física, à necessidade física, às coisas, que Halbwachs titulou-as como “submissão à necessidade”, às leis estáveis sob as quais não transparece a vontade humana individual, caprichosa e instável. Só a lei, pois, como expressão da vontade geral, é capaz, pela sua generalidade precisamente, pela sua impessoalidade e inflexibilidade, de suavizar a maioria dos males inerentes ao homem, pelo fato de depender dos homens, sublinhamos. Graças à lei, e somente à lei, pode a dependência dos homens “voltar a ser a das coisas”.
Conclui o filósofo em apreço que, somente com a passagem do estado natural ao estado civil pode produzir no homem notabilíssima transformação, substituindo, no seu proceder, o instinto pela justiça, e dando às suas ações a moralidade que antes lhe faltava.
É, só então, que, sucedendo a voz do dever ao impulso físico e o direito ao apetite, o homem, que até esse momento não considerara senão a si mesmo, se vê obrigado a agir de acordo com outros princípios, e a consultar a razão antes de escutar as próprias tendências.
Chama a atenção, ainda, o douto filósofo que, por si mesmo, o povo quer sempre o bem, mas, por si mesmo, nem sempre o vê. A vontade geral é sempre reta, mas nem sempre é esclarecido o juízo que a guia. É preciso mostrar-lhe os objetos, tais quais são, às vezes tais quais lhe devem parecer, indicando-lhe o bom caminho que procura, preservá-la da sedução das vontades particulares, aproximarem a seus olhos os lugares e os tempos, equilibrar o atrativo das vantagens presentes e sensíveis com o perigo dos males distantes e ocultos.
Nunca um ensinamento, ditado há quase três séculos, esteve tão presente em nossos dias, para justificar a razão dos procedimentos dos cidadãos unaienses.
A ilusão de serem protegidos política e materialmente pelo prefeito eleito, aliada à miragem da possibilidade de alcançar trabalho remunerado, ainda que degradante ou humilhante, se traduziram e se consolidaram numa autêntica assacadilha aos mais comezinhos princípios de justiça, e a mostrar o seu descrédito injustificável em nosso sistema judiciário, quando tentam inocentá-lo, antes da sentença trânsita em julgado, além de outorgar-lhe foro privilegiado, por onde esperam escapar os inescrupulosos.
Também, seria muito oportuna a admoestação de Aléxis de Tocqueville (1805/1859), ex-magistrado e filósofo favorito do intelectual Fernando Henrique Cardoso, que, sem dúvida, diria sobre o ocorrido: “Eis aí um grande mal moral, uma verdadeira enfermidade dos costumes, que acarreta a decadência da qualidade humana, pela mediocridade dos desejos. Entre as ocupações mesquinhas e incessantes da vida particular, não perderá a alma todo o ímpeto e toda a grandeza? Não apodrecerá o coração, por falta de vivificar-se com elevadas paixões? Grande mal moral, o individualismo é um mal político e social, pior ainda: é a ferrugem das sociedades. Esvazia o cidadão de toda substância, esvaziando-o de civismo; estanca-lhe a fonte das virtudes públicas; dele torna a fazer um súdito, senão um escravo, oscilando sem dignidade entre a servidão e a licenciosidade.”
Voltemos, pois, nosso olhar ao primitivo povo de Unaí.