Depois de quase treze anos, e de forma surpreendente, a PEC que trata da chamada Reforma do Poder Judiciário foi afinal parcialmente aprovada pelo Senado Federal. Após a histórica sessão que culminou com a aprovação da aludida PEC, não faltaram discursos, alguns inflamados, de que a Reforma teria o poder – que eu diria mágico – de resolver os graves problemas do Judiciário Brasileiro, na medida em que mecanismos como a súmula vinculante e outros remédios redentores, seriam capazes de por fim a tão atacada morosidade na solução dos processos, pois a partir do momento em que o entendimento a respeito de certa matéria for sumulado pelo Tribunal Superior, o juiz não poderá decidir de forma contrária a esse mesmo entendimento, o que contribui para a celeridade da prestação jurisdicional.
Não parece procedente tal entendimento, pois sendo a súmula vinculante texto com força de lei, admite interpretação. Logo, o juiz, ao examinar o caso concreto, poderá se convencer que o entendimento sumulado a ele não se aplica deixando de enquadrá-lo na súmula e portanto, não aplicá-la, o que na prática ensejará a interposição de recurso levando o processo ao tribunal, ainda para que este diga que naquele caso, é aplicável o entendimento rejeitado pela decisão recorrida. Cumpre ao juiz atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegadas pelas partes, dá a solução ao conflito que lhe é submetido a julgamento, devendo apenas fundamentar a decisão. E nem poderia ser de outra forma, pois é lógico que juiz não se pode fazer surdo e neutro aos dramas e as angústias da sociedade. E ademais, a pura e acrítica aplicação de súmula vinculante, por mais respeitável que seja o entendimento por ela albergado, fere de morte o princípio do juiz natural, constitucionalmente garantido como direito fundamental. Portanto, impossível de ser alterado pelo poder de reforma constitucional (art. 60, `PAR` 4o, inciso IV da Constituição de 88), na medida em que na prática não seria o juiz da causa que estaria decidindo, mas o tribunal editor da súmula, o que evidentemente não condiz com os valores democráticos previstos no Texto Maior. Portanto, o tão festejado mecanismo além de ferir garantias constitucionais pétreas, nem de longe afasta a possibilidade da interposição do recurso.
De outro lado, a súmula vinculante constitui um lamentável retrocesso, pois impede a evolução do direito e da jurisprudência, tão importante para a oxigenação das normas, principalmente aquelas que não mais se encontram em sintonia com a realidade social face à rapidez e a dinâmica com que as mudanças sociais ocorrem na atualidade. Não me parece, pois, que tal mecanismo seja algo mágico na solução de um dos maiores problemas do Judiciário, qual seja, a morosidade decorrente de vários fatores e causas.
Na verdade, a principal causa da chamada morosidade do Judiciário não reside apenas na quantidade de recursos, mas, nomeadamente em um sistema processual arcaico que, independentemente do número de recursos permitidos, já não consegue resolver os novos e massificados conflitos de uma sociedade em constantes e rápidas mudanças que as normas de origem estatal não conseguem disciplinar e acompanhar de modo eficaz.
Nesse contexto, para que a Reforma do Judiciário possa “pegar” torna-se indispensável a alteração das normas processuais de modo a adequá-las a uma nova e pujante realidade econômica e social, mas acima de tudo, urge uma mudança de mentalidade de todos os envolvidos com administração da Justiça, inclusive e especialmente dos juizes, infelizmente ainda muito aferrados a um positivismo dogmático completamente ultrapassado que é incapaz de enxergar que além da norma estatal, existem outras formas e padrões de regulação da vida social, muitas vezes mais eficazes do que aqueles oriundos do poder hegemônico estatal. Há – e é impensável que se reconheça –, um pluralismo jurídico que precisa ser tomado em conta pelo julgador, sob pena de se fazer cego à realidade da vida.
Enquanto se acreditar que o direito está limitado ao fenômeno legal, certamente nenhuma reforma por mais bem intencionada que possa ser, conseguirá resolver o problema da Justiça. É preciso, pois, uma mudança de forma de pensar e agir do juiz.
O crescimento dos direitos transindividuais, o aumento das demandas sociais e a complexidade da vida social em um país desigual e excludente como o Brasil, estão a reclamar novas posturas dos concretizadores do direito, o que infelizmente muitos deles ainda não se deram conta.
Parece evidente que as condições do atual modelo político-econômico mundial — caracterizado por um capitalismo monopolista globalizado — marcado por contradições sociais e crises específicas de legitimidade inerentes à sociedade burguesa, pelo exaurimento do modelo clássico liberal da tripartição dos poderes e pela incontida descrença da sociedade nos mecanismos tradicionais de representação política e de resolução dos conflitos sociais, têm levado a agudização da crise em praticamente todas as instituições, e o Judiciário dela não foi poupado, o que o tem desqualificado perante a sociedade, especialmente junto às pessoas mais humildes que muitas vezes não têm seque condições de entender qual é o verdadeiro papel desse Poder deixando-se levar, quase sempre, por informações não verdadeiras ou distorcidas.
Em um Estado verdadeiramente democrático, se espera do Judiciário uma posição ativa e independente frente aos demais Poderes. O juiz não pode ser apenas a boca da lei ou autômato aplicador de súmulas: tem de ser a boca não só da lei, mas antes disso, do Direito, da Justiça.
Assim, é preciso estar atento a essa realidade para que a Reforma do Judiciário – que tanto tardou – possa ter a capacidade de, no campo da vida prática do jurisdicionado, produzir os efeitos efetivos e concretos que dela ele espera. E da postura do juiz, isso muito depende.