1. Especialização ameaçada
A Justiça do Trabalho teve sua competência ampliada, mas isso não significa que ganhou uma concorrência. Qualquer comemoração seria precipitada. Primeiro, porque não se trata de vermos a distribuição da competência como licitação. Depois, porque uma eventual comemoração da JT deve se dar em função da sua competência no sentido leigo, antes do jurídico. Não há lide nova, todas já existiam. O que houve foi o deslocamento da competência de outros poderes jurisdicionais para a especializada do trabalho. Sem dúvida, trata-se de um novo encargo, inclusive com a transferência de processos já em andamento nas outras justiças para a JT, já que a EC n. 45 não manteve a competência residual, como ocorreu em 1988 com as mudanças de competência do Poder Judiciário. Se alguém vai ter que concorrer é o trabalhador, que disputará o tempo do Judiciário trabalhista com outros tipos de ações que não reclamações trabalhistas, uma vez que não houve nenhuma regra determinando que se dê preferência a estas. O problema maior do aumento da competência da JT, a longo prazo, é de ela deixar de ser especializada e de os trabalhadores mais necessitados serem prejudicados por postulantes (não reclamantes) mais poderosos. É claro que torço pelo fortalecimento da JT e fico contente com o aumento de sua competência, mas ela não pode perder seu rumo.
Espero não ter que vir a defender varas especializadas dentro de uma justiça que já é especializada. Hoje, na era do neoliberalismo, quando o trabalhador produtivo e explorado (pelo empregador e pelo mercado) encontra-se enfraquecido, é quando ele mais precisa de atenção da JT. Espero também que a JT não venha a se transformar em justiça dos colarinhos brancos e dos fraudadores.
2. Outros processos e ritos do CPC ao lado das reclamações
Até agora, a competência jurisdicional da Justiça do Trabalho vem sendo confundida com o procedimento das reclamações trabalhistas. A CLT tratava a JT e a reclamação trabalhista como se uma fosse irmã gêmea da outra. Tivemos épocas em que não se admitia nenhum procedimento fora do previsto na CLT, como ações cautelares, ações rescisórias, ações de consignação em pagamento etc. Muitos só admitiam despacho liminar no caso estreito do inciso IX do art.659 da CLT, sobre a transferência de empregado.
Nas décadas de 70 e 80, sob a influência do CPC de 1973, a JT foi abraçando diversos procedimentos do CPC, mas ainda relacionados com empregados e empregadores. A primeira grande exceção ocorreu com o advento da Lei 8.984/95, que atribuiu à JT competência para processar lides "entre sindicatos e entre sindicatos de trabalhadores e empregador", sendo que aqui o sindicato atuava não na condição de substituto processual, mas em causa própria, cobrando verbas da entidade.
A EC n. 45 foi bem além, como expõe a redação do novo inciso III do art.114, que dá competência à JT também para julgar "as ações sobre representação sindical, entre sindicatos, entre sindicatos e trabalhadores, e entre sindicatos e empregadores". As ações de cobrança já demonstravam a total falta de identidade para com as reclamações trabalhistas. Para aquelas, o rito previsto no CPC era mais adequado, já que aí não havia, por exemplo, necessidade de serem incluídas em pauta e passarem por tentativa de conciliação, com risco de arquivamento, o que para as reclamações trabalhistas é fundamental. É bom dizer que o procedimento do CPC dificilmente será aplicado de forma pura e uniforme na JT, pois os serviços administrativos, cartoriais e a cobrança das custas não foram unificados. Também a parte recursal é um problema. Dificilmente se admitirá, por exemplo, agravo de instrumento sobre despachos interlocutórios, o que fere o princípio da inapelabilidade das interlocutórias, defendido por Carnelutti no início do século XX e adotado no rito trabalhistas como símbolo de celeridade (`PAR`1º do art.893 da CLT e Enunciado 214 do TST).
Diversos juízes dos tribunais de São Paulo e Campinas (2ª e 15ª Regiões), em nota conjunta, recomendam a exclusividade do rito da CLT para todas ações, com objetivo de manter a celeridade e uniformidade. Sem dúvida, o legislador ordinário deveria agora se preocupar com o tema. Todavia, entendemos que, por ora, na 1ª instância, é válido seguir o rito do CPC para ações não trabalhistas, de notificar o réu para contestar, o que alivia as pautas para as trabalhistas e evita o excesso de arquivamento e revelia. Aliás, a própria CLT já deveria ter sido reformada neste sentido, permitindo critérios para inclusão do feito na pauta, inclusive aquela regra de ser obrigatória a tentativa de conciliação após a instrução (parte final do caput do art.850 da CLT).
3. Ampliação da competência material
Além da ampliação do procedimento comum do CPC ao lado do procedimento da reclamação trabalhista, não podemos deixar de destacar o tema mais polêmico dessa reforma: a ampliação material da JT. "Ações oriundas da relação de trabalho" têm conotação bem extensa, se considerarmos que a relação de emprego é apenas uma das relações de trabalho. Estão neste campo ações oriundas de prestação de serviço autônomo e/ou eventual, que envolvem lides dos profissionais liberais com seus clientes, caso dos advogados, médicos, empreiteiros, representantes comerciais, estagiários, aprendizes, trabalhadores voluntários, trabalhadores eleitorais, cooperados verdadeiros, enfim, todos os que trabalham por meio de contratos e estatutos, ainda que verbais. Até os estatutários foram incluídos. A "exceção" que havia no caput do art.114 do projeto, colocado pelo Senado, afastando as ações dos estatutários da JT, foi suprimida na Câmara por se tratar de inovação na sua tramitação. Mas sem dúvida esse tema ainda volta a ser debatido tal a sua importância no cenário político.
Em suma, "trabalho" é um gênero amplo que não pressupõe necessariamente a existência de salário, subordinação ou continuidade. Incluem-se nesse campo do biscateiro informal aos colarinhos brancos.
Não se pode deixar de destacar outro detalhe polêmico da redação promovida pela reforma. Além da expressão "relação de trabalho" do caput do art.114, criou-se o inciso IX ("outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei"), que já existia na redação original da Carta de 88. Alguns podem afirmar: ora, se o caput menciona apenas "relação de trabalho", o que abrange todo tipo de relações de trabalho, por que falar em “outras" controvérsias oriundas das relações de trabalho? Com isso, alguns podem vir a defender que a JT, na verdade, não ampliou tanto.
Mas isso não é verdade. O inciso IX se refere a outras ações que, embora não sejam de relação de trabalho, surgem em conseqüência desta, como a cobrança de encargos sociais, as custas, as multas etc, muitas já tratadas em lei ou na própria Carta. Seria também o caso de se criar uma lide entre o profissional liberal e seu conselho profissional, sobre a qual ainda não há lei atribuindo à JT a competência para julgar tal caso. Ou o caso do trabalhador diretamente contra a CEF, Ministério do Trabalho, INSS ou outros órgãos públicos em prol de benefícios como seguro desemprego, correção do FGTS, benefícios sociais em geral decorrentes da relação de trabalho, mas não em face do tomador de serviços. Também todas lides que envolvem liberdade profissional, enquanto direito individual (inciso XIII do art.5º da CF), por exemplo, contra corporações; ou a própria defesa do direito ao trabalho (art.6º da CF), a favor de emprego, em prol de mercado de trabalho e a favor de financiamentos contra o Estado (PREGER etc); ações para participação de representação de trabalhadores em comissões que tratam de seus interesses (art.10 da CF); ações de trabalhadores e/ou de sindicatos contra a administração do FGTS, FAT e outros diretos oriundos da relação de trabalho. Entendo que, desde já, deve ser reconhecida a competência da JT para julgar lide entre o empregado e a CEF, quando esta figura no pólo passivo ao lado do empregador, tratando-se de lide sobre o FGTS. Afirmo isso por que já existe há bastante tempo lei (atual art. 26 da Lei 8.036/90) que trata desta hipótese, porém sempre tinham sido considerada inconstitucional pelo Enunciado 179 TST, hoje revogado.
Outra novidade é a competência da JT para as ações relativas às penalidades administrativas impostas aos empregadores pelos órgãos de fiscalização das relações de trabalho (inciso VII do art.114). Não é o caso de a JT aplicar a multa, como inicialmente se previu no projeto (inciso XI: "a execução, de ofício, das multas por infração à legislação trabalhista, reconhecida em sentença que proferir"). Mas sim processar os executivos fiscais (Lei 6.830/80) e julgar a validade das multas aplicadas por meio de mandado de segurança, ação de repetição de indébito ou ação anulatória do ato declarativo de dívida (art.38, idem) ou por meio dos embargos do devedor (art.16, idem). São processos totalmente novos para a JT. Aliás, já se faz necessário aumentar o quadro de oficiais de justiça, tal o crescimento do número de execuções, as quais, hoje, ao lado das de crédito do trabalhador, concorrem as de custas, previdência social, imposto de renda, contribuição sindical e agora a multa administrativa do MTE.
A nova competência atribui às varas do trabalho a competência originária para apreciem diversos mandados de segurança em face de autoridade, não só a já citada, mas também em função de processo eleitoral sindical, de estatutários, etc. Até então não se admitiam habeas corpus e mandados de segurança com competência originária das varas, pois na JT todas elas eram apenas em face dos próprios juízes, daí os Tribunais terem competência originária. Agora não, e há um novo inciso no art.114, de n. IV, que, genericamente, trata dos "mandados de segurança, habeas corpus e habeas data, quando o ato questionado envolver matéria sujeita à sua jurisdição".
Outra mudança importante diz respeito à competência da JT para apreciar "as ações de indenização por dano moral ou patrimonial decorrentes da relação de trabalho" (inciso VI do art.114). A ação de indenização de dano moral já era pacífica desde o pronunciado do STF, porém, a de dano patrimonial, não, embora a jurisprudência trabalhista já a aceitava, principalmente para os casos de obrigação de fazer, como a entrega de documento para o seguro desemprego (OJ 211 da SDI-1). Acredito que agora não haverá mais dúvidas sobre a competência da JT para os acidentes de trabalho, tema que parte da doutrina vinha resistindo a reconhecer. Também as ações indenizatórias de trabalho de profissional liberal, como o erro médico, estão incluídas neste bloco.
4. Retrocesso para o direito coletivo
Na parte de dissídio coletivo, acho que houve retrocesso. Se enfraqueceu o poder normativo e se fortaleceu as ações de declaração de ilegalidade de greve. Com o advento da Carta de 88 chegou-se a defender o fim das ações de ilegalidade de greve, já que os trabalhadores passaram a definir a oportunidade da greve. Mas, com a Lei de Greve (Lei 7783/89), que criou a figura da declaração de abusividade de greve, restringiu-se a sua liberdade. Os que combatiam o poder normativo usavam como argumento justamente a declaração de ilegalidade da greve. E ela permanece, com a redação do novo inciso II, dando competência à JT para julgar "as ações que envolvam exercício do direito de greve", o que é complementado com o novo `PAR`3º. Mas, por outro lado, o novo `PAR`2º do art.114 cria a figura de ajuizamento de dissídio coletivo "de comum acordo". Trata-se de mais uma tentativa de forçar a eleição de árbitro, agora transformando a JT num semi-árbitro. É notória a dificuldade das partes litigantes de fazerem qualquer acordo prévio de árbitro. Se os tribunais começarem a extinguir dissídios sem julgamento de mérito por falta de acordo prévio, haverá um grande retrocesso, já que ainda não existe tradição de arbitragem. Acho que essa questão deveria ser tratada junto com a reforma sindical, que está tramitando em separado da reforma do Judiciário.
5.Fundo de Execução para fraudadores
Outra questão que envolve a JT está prevista no art.3º da EC n.45: "Art. 3º: A lei criará o Fundo de Garantia das Execuções Trabalhistas, integrado pelas multas decorrentes de condenações trabalhistas e administrativas oriundas da fiscalização do trabalho, além de outras receitas". Vejo esta proposta com receio, embora sua intenção, aparentemente, seja positiva. Há aí dois problemas: um em relação aos seus objetivos sociais gerais (se é válido o povo pagar as dívidas do capital), e outro mais específico, que abre espaço para fraudes e para a ausência de isonomia entre aquele reclamante (e o advogado) que luta para executar e o outro que recebe fácil.
Vejo como falta de criatividade socializar as dívidas entre os cidadãos. O sistema securitário já existe e tem nome, chama-se Previdência Social, além de outros análogos, públicos ou privados. Uma mania tipicamente brasileira é querer criar um "novo fundo", com mais cargos políticos e administrativos, não se fortalecendo a previdência social, pelo contrário. No caso do FGTS criado em 1967, por exemplo, não se aumentou a receita para promover o capital da construção civil, pois o que acaba acontecendo com esses fundos é que eles acumulam capital para financiar os empresários ou arcar com despesas políticas, não servindo efetivamente para fortalecer a previdência do trabalhador. Em 1980 o INPS entrou em crise de arrecadação, mas o capital da construção financiada pelo FGTS ia muito bem. O que ocorreu com o FGTS vem ocorrendo com o FAT. Sem falar em outros casos, como o do CPMF, pago por todos para uma suposta ajuda à saúde que não chegou a pagar um xarope sequer. Depois, uma Emenda Constitucional (n.31 de 2000) estabeleceu a criação de um Fundo de Combate à Pobreza, que não se efetivou. No caso do Fundo de Garantia da Execução Trabalhista, o objetivo é pagar dívida de terceiros, algo inusitado. O benefício é adquirido não por meio de um sistema de obrigações e direitos, mas por uma dívida de um contrato sobre o qual o Estado não teve qualquer responsabilidade. No mínimo, esse fundo será um incentivo ao inadimplemento, criando uma bola de neve para a JT.
Para evitar o inadimplemento trabalhista, existem várias propostas que não aumentam a despesa do Estado nem abrem espaço para fraudadores. O legislador não compreende (ou não quer compreender) que o capital hoje é flexível e fragmentado. Não é mais identificado, como antes, com bens de capital, em que o estabelecimento e o maquinário eram o maior patrimônio da empresa, imóvel ou pesado, não podendo ela fugir facilmente. Hoje prevalecem as prestadoras de serviços e os contratos terceirizados e, nesse esquema, fecha-se uma empresa para não se pagar uma dívida.
Cito algumas medidas eficazes, para garantia do crédito trabalhista, que podem ser previstas em lei: impedir o abuso de criação de pessoas jurídicas, passando a exigir garantias como fiança, caução; permitir a prisão civil do devedor em casos a serem definidos por lei; obrigar o empregador a antecipar depósitos do pagamento do crédito trabalhista, ou parte dele, em conta bancária neutra e fiscalizada por órgão de classe e/ou públicos; exigir certidão negativa de débito trabalhista e carência de vida da empresa para qualquer licitação pública ou elaboração de contrato administrativo, com parecer obrigatório do MPT; criar título exeqüível de crédito trabalhista suscetível à execução imediata, fornecida pelo MTE ou pelo MPT; permitir direito de retenção de bens do empregador por parte do empregado com atraso de salário ou crédito incontroverso; criar multa para atraso de salário etc.
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