Com a promulgação da Emenda Constitucional nº 45, em 08/12/2004, e sua posterior publicação (Diário Oficial da União de 31/12/2004), ampliou-se expressivamente a competência material destinada à Justiça do Trabalho. Trata-se, sem dúvida, de alteração que marca um novo momento histórico vivido pela Justiça do Trabalho, momento cuja importância só não supera aquela verificada em 1946, quando de sua integração ao Poder Judiciário.
Da promulgação e publicação da Emenda Constitucional nº 45 advêm algumas conseqüências merecedoras de destaque.
Entre elas se encontra a necessidade de remessa, à Justiça do Trabalho, dos autos de processos já ajuizados perante outros órgãos judiciários que tenham por objeto as novas matérias atribuídas à Justiça do Trabalho. A alteração do critério fixador da competência em razão da matéria se encontra entre as hipóteses de exceção ao princípio da perpetuatio jurisdictionis estabelecido no art. 87 do CPC e, ao contrário do que se fez em outra ocasião, quando se transferiu à Justiça do Trabalho a competência para processar e julgar matéria envolvendo a relação de emprego público, a alteração imposta pela Emenda Constitucional nº 45 não é acompanhada de disposição transitória mantendo a competência originária quanto às ações ajuizadas até então.
Além disso, a atividade jurisdicional, no que envolver as novas matérias atribuídas à Justiça do Trabalho, certamente será, em maior medida, a aspectos de natureza processual. Como é preocupação primeira do juiz dizer se é ou não competente para apreciar e julgar a ação e como a nova regra permite cogitar sobre várias situações de incidência, naturalmente surgirão discussões sobre o seu efetivo alcance. A tendência, pois, é o aumento de incidentes que envolvam a invocação de incompetência em razão da matéria ou a suscitação de conflitos de competência, além da preocupação quanto ao aspecto procedimental, com vistas a definir o procedimento ao qual deve ser submetida cada uma das situações novas.
Com o intuito de oferecer modestas contribuições ao exame do tema, interessa à presente análise, em particular, a disposição estabelecida no inciso I do art. 114 da Constituição Federal, que inclui, na competência material atribuída à Justiça do Trabalho, “as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”.
É justamente essa disposição que encerra, no que respeita à Justiça do Trabalho, a alteração mais significativa e que ensejará boa parte dos debates, porque torna regra situações até então admitidas como exceção. A regra, que até então correspondia às ações decorrentes da relação de emprego (espécie de relação de direito material da qual a relação de trabalho é gênero) – e, ainda assim, por força de interpretação que se extrai da redação anteriormente inscrita no caput do art. 114 da Constituição Federal, que, em realidade, fixava a competência não propriamente em razão da matéria, mas sim em razão da condição dos sujeitos integrantes da relação jurídica processual (trabalhadores e empregadores), conforme assim afirmada na petição inicial –, agora corresponde às ações resultantes da relação de trabalho.
Desse novo modelo podem ser extraídas algumas conclusões a respeito de situações específicas:
I. A competência passa a ser definida, efetivamente, com base na natureza da relação de direito material e, portanto, tendo em conta a origem do conflito (ou a causa de pedir próxima), sendo irrelevante, em princípio, a natureza da pretensão objeto da ação. No aspecto, vigora, com a devida adequação (relação de emprego – relação de trabalho), o entendimento já consagrado perante o Supremo Tribunal Federal acerca da competência anteriormente conferida à Justiça do Trabalh “À determinação da competência da Justiça do Trabalho não importa que dependa a solução da lide de questões de direito civil, mas sim, no caso, que a promessa de contratar, cujo alegado conteúdo é o fundamento do pedido, tenha sido feita em razão da relação de emprego, inserindo-se no contrato de trabalho”.
É mais fácil, ademais, sustentar que a competência destinada à Justiça do Trabalho inclui as fases pré e pós contratual. Até então, tratando-se de relação de emprego, a obtenção de consenso sobre a competência da Justiça do Trabalho quanto a questões surgidas nas fases pré e pós contratual era dificultada justamente em razão de os sujeitos da relação processual ainda não terem detido ou já não mais deterem, quando da ocorrência do fato que fundamenta o pedido, a condição de trabalhador e empregador.
Nessa mesma linha de raciocínio, igualmente é possível cogitar sobre situações em que um dos sujeitos da relação processual não tenha detido ou jamais venha a deter a condição de trabalhador ou beneficiário do trabalho, mas fundamenta sua pretensão em fato ocorrido na vigência da relação de trabalho ou que com ela guarda vinculação, ou seja, situações em que o fato que fundamenta o pedido não resulta diretamente da relação de trabalho, mas sim indiretamente, com ela guardando algum liame.
II. A nova norma constitucional não distingue entre trabalho oneroso e trabalho gratuito. Inserem-se no seu alcance, então, questões decorrentes de relação de trabalho voluntário, da qual é exemplo aquela disciplinada na Lei 9.608/1998, hipótese que, conquanto em tese não conduza ao estabelecimento de relação de emprego nem a obrigações de natureza trabalhista, previdenciária ou afim, pode perfeitamente propiciar o surgimento de litígios.
III. Da mesma forma como não distingue entre trabalho oneroso e trabalho gratuito, a nova norma não diferencia entre trabalho autônomo e trabalho subordinado, nem entre trabalho eventual e trabalho não-eventual. A autonomia e eventualidade do trabalho, embora possam ser também consideradas para efeito de identificação da relação de trabalho, melhor se apresentam como características incompatíveis com a relação de emprego – daí a idéia de que a presença de qualquer uma delas é suficiente a desqualificar a relação de emprego.
IV. Com relação a entes de direito público externo, a alteração exige mera adequação do alcance do entendimento hoje dominante. Em se tratando de relação de emprego, é entendimento atual que no processo de conhecimento não prevalece a imunidade de jurisdição se o interesse diz respeito ao campo privado, ou seja, a imunidade não alcança os atos praticados por ente de direito público externo quando age na condição de particular ou pratica atos de comércio (princípio da imunidade temperada).
V. Quanto a entes de direito público interno, a nova regra não distingue a espécie de relação mantida com aqueles que trabalham em seu proveito. Assim, sujeitam-se à competência da Justiça do Trabalho as questões envolvendo servidores ocupantes de cargos públicos de provimento efetivo ou em comissão, empregados públicos – no que não há qualquer alteração – e, também, trabalhadores contratados por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público (CF, art. 37, inciso IX).
Em que pese, como se viu, seja possível visualizar uma série de situações novas, persiste a dificuldade de definir o efetivo alcance da norma ou, mais especificamente, o significado da expressão “relação de trabalho”.
Nessa tarefa, a conclusão mais apropriada a acrescentar às anteriores é a de que o estabelecimento de relação de trabalho pressupõe que a condição de prestador de serviços seja detida por pessoa física. Certamente não se caracteriza como relação de trabalho aquela em que o prestador dos serviços esteja constituído sob a forma de autêntica pessoa jurídica, sob pena de reconhecer que se encontra incluída na nova competência material a atividade empresarial voltada à prestação de serviços. Daí, contudo, não se extrai conclusão de indispensabilidade do elemento pessoalidade na execução do trabalho, não sendo imprescindível, pois, que o trabalho seja prestado de forma pessoal. No âmbito de uma das espécies de relação de trabalho cuja competência já pertencia à Justiça do Trabalho – pequena empreitada –, é reconhecida a possibilidade de o empreiteiro, sendo operário ou artífice, valer-se de um ou dois auxiliares para executar o trabalho.
A consideração dos argumentos até aqui expendidos permite, num rápido exercício de raciocínio, arrolar vários contratos típicos cuja celebração e execução pode gerar litígios afetos à competência da Justiça do Trabalho. Assim, por exempl estágio, no que envolver a relação entre estudante e parte concedente (Lei 6.494/1977); cessão de veículo rodoviário em regime de colaboração (Lei 6.094/1974); empreitada (CC, art. 610), independentemente da restrição prevista no art. 652, III, da CLT, no sentido de que o empreiteiro seja operário ou artífice; depósito (CC, art. 627); mandato (CC, art. 653); comissão mercantil (CC, art. 693); agência e distribuição (CC, art. 710); corretagem (CC, art. 722); transporte (CC, art. 730); parceria rural (Lei 4.504/1964); corretagem de seguros (Lei 4.594/1964); representação comercial autônoma (Lei 4.886/1965); e despachos aduaneiros (Decreto-lei 4.014/1942).
Em síntese, e conforme vêm sustentando alguns, como relação de trabalho deve ser entendida aquela da qual participa, além daqueles detentores da condição de empregado, qualquer trabalhador não sujeito à disciplina prevista na CLT.
Parece-nos, no entanto, que um grupo desses trabalhadores, porque a sua atuação é disciplinada de modo a conferir-lhe natureza própria, se encontra à margem da competência atribuída à Justiça do Trabalho. Trata-se dos profissionais liberais, que, embora possam ser reputados trabalhadores, têm o seu trabalho definido como atividade fornecida no mercado de consumo e, por conta dessa definição, detêm o status de fornecedores. Nesse sentido, a Lei 8.078/1990, em seu art. 3º, caput e `PAR` 2º, dispõe que “Fornecedor é toda pessoa física [...] que desenvolve atividades de [...] prestação de serviços” e “Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração [...] salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista” – leia-se relações de caráter trabalhista como sendo relações submetidas à disciplina da CLT. E, reforçando a noção de que os profissionais liberais se encontram conceituados como fornecedores, a mesma Lei 8.078/1990, em seu art. 14, caput e `PAR` 4º, estabelece que “O fornecedor de serviços responde [...] pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços [...]” e “A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa”.
O Código de Defesa do Consumidor, como se vê, considera fornecedor quem exerce, profissionalmente – ou seja, de forma continuada e onerosa –, a atividade de prestador de serviços, e como tal enquadra o profissional liberal, espécie de trabalhador autônomo definido, em doutrina, como aquele que exerce com independência, sem qualquer vinculação hierárquica, atividade predominantemente intelectual ou técnica e, de regra, regulada por lei.
Agora, a se entender que os profissionais liberais são sujeitos de relação de trabalho e, portanto, se encontram abrangidos pela competência estabelecida no inciso I do art. 114 da Constituição Federal, dessa competência não se pode ressalvar discussão envolvendo a qualidade do trabalho prestado, justamente porque, consoante visto linhas atrás, à definição da competência é, em princípio, irrelevante a natureza da pretensão.
A despeito dos argumentos técnicos até aqui invocados, não se pode negar que a definição do efetivo alcance da nova norma também passa por argumentos de ordem política. E aqui, cumpre indagar se a ampliação da competência material afeta à Justiça do Trabalho se justifica em razão de sua reconhecida especialização – caso em que a interpretação necessariamente se fará de maneira restritiva, porquanto nem todas as espécies de relação de trabalho e os respectivos meios de solução de conflitos delas advindos pautam-se por princípios compatíveis com aqueles que orientam a atuação da Justiça do Trabalho – ou se com a finalidade de acabar com a sua especialização e torná-la uma espécie de “justiça comum” – caso em que a interpretação certamente se fará de maneira ampla.