Depois de promulgada a EC nº 45/04,
que cuidou da reforma do Judiciário, o tema
concernente à ampliação da competência da Justiça do
Trabalho tem suscitado intenso debate sobre a sua
pertinência em momento de intensas mudanças nas formas
de produção do sistema capitalista.
A evolução tecnológica propicia aos detentores dos
meios de produção modificações nos sistemas produtivos
que sempre têm em mira a ampliação de seus lucros pela
via da redução da participação do trabalho nos
resultados da produção. Essa redução de participação,
invariavelmente, resulta da diminuição da remuneração
do trabalhador ou do aumento da produtividade
(ensejador da redução dos postos de trabalho sem
prejuízo da produção).
A reação dos trabalhadores tarda, mas sempre sobrevem a partir do momento em que se organizam adequadamente.
Por isso, o retardamento dessa reação também se insere nas eternas estratégias do capital, que adota, patrocina e estimula mecanismos inibidores, coibidores e/ou impeditivos da organização dos trabalhadores.
Em épocas anteriores essa reação se processou por meios violentos, revolucionários. Mais recentemente foram encontrados mecanismos menos traumáticos, caracterizados pelo intervencionismo estatal na mitigação dos conflitos entre o capital e o trabalho, conferindo certo equilíbrio a essa relação que pendularmente oscila em favor do primeiro.
Quando se imaginava que havia sido encontrada uma solução para esse eterno embate, por meio do welfare state e da adoção da relação de emprego como paradigma do vínculo entre os atores individuais do conflito, mais uma vez a onda liberal renasce, agora como tsunami, a partir do terremoto gerado pela evolução da informática.
O avanço das comunicações, da robótica, do processamento das informações vem determinar um enorme ganho de produtividade das empresas, bem assim a internacionalização de suas atividades, tornando os Estados, ao menos momentaneamente, incapazes de desempenhar o papel de equilíbrio entre o capital e o trabalho, pelas restrições à sua soberania sobre as atividades de empresas alienígenas, determinadas pelo clima competitivo que se estabelece em âmbito global.
Esse ganho de produtividade acaba por determinar uma enorme redução dos postos de trabalho, ampliando-se o desemprego, com os decorrentes efeitos deletérios sobre a remuneração dos trabalhadores ensejados pelo aumento da oferta de trabalho propiciada pelo exército de desempregados. A terceirização passa a ser outra das estratégias de fragmentação da organização dos trabalhadores e de redução de seus ganhos.
A relação de emprego, cada vez mais, deixa de ser o paradigma do liame a vincular os atores individuais do eterno embate. Emergem ou aperfeiçoam-se outras formas de exploração do trabalho humano.
O direito do trabalho, construído para disciplinar a relação paradigmática de emprego, já não mais responde às demandas emergentes dos novos conflitos que se originam a partir das novas formas de relação de trabalho. Mesmo para as tradicionais relações laborais, ainda que autônomas, o Judiciário Comum, assoberbado com tantas outras demandas, não consegue oferecer resposta eficiente e adequada.
Num quadro dessa natureza, nada mais conveniente e racional do que cometer a um especial ramo do Judiciário a exclusividade da competência para a solução de todos os conflitos emergentes no mundo do trabalho, tendo-se apenas em conta, como elementos invariavelmente definidores da matéria, a prestação pessoal de serviços por pessoa física, independentemente de outros tipificadores de particular modalidade de relação de trabalho (v.g., subordinação ou não, eventualidade ou não, onerosidade ou não, alteridade ou não).
Ninguém como o juiz do trabalho se
encontra tão apto a tratar desses conflitos. Em seu
dia-a-dia, invariavelmente, sempre lidou com esses
elementos diferenciadores das peculiares relações de
trabalho, como matéria prejudicial de mérito nas
situações em que o tomador de serviços impugna a
configuração da pretendida relação de emprego. De
outro lado, não terá a menor dificuldade em tratar de
situações em que o caráter tuitivo deva ser
considerado não em favor do prestador, mas sim do
tomador de serviços, como só ocorrer em relações de
consumo que também configurem relações de trabalho. A
abrangência de todos esses conflitos se revela
conveniente até mesmo para especializar o juiz na
identificação e solução de situações outras, em que não
haja qualquer desequilíbrio entre as partes da relação
de trabalho, de sorte a aplicar em cada caso o direito
material mais consentâneo, seja ele o direito do
trabalho, o do consumidor ou o comum, sempre à luz dos
princípios e normas constitucionais prevalentes.
Essas considerações consubstanciam as razões
sociológicas-políticas justificadoras da
redistribuição de competência material viabilizada pela
recente EC.
Em boa hora, o Parlamento teve a exata noção da relevância de se cometer à JT a competência material para dirimir todos os conflitos "oriundos da relação de trabalho", qualquer que seja a modalidade, independentemente de quem sejam seus atores.
Agora apenas resta à sociedade,
sobretudo aos juízes do trabalho, pugnar por que
nenhum "acidente de hermenêutica" determine qualquer
retrocesso nessa conquista, que é dela, pelo qual se
subtraiam, ainda que parcialmente, matérias que o
processo legislativo claramente evidenciou terem sido
destinadas à competência da JT pela vontade do
constituinte derivado.
A racionalidade da redistribuição de competência não
se resume à vertente sociológica-política, como também
sob a perspectiva técnica e econômica.
A atribuição de exclusiva competência à JT para dirimir todos os conflitos oriundos da relação de trabalho seguramente provocará a redução de conflitos de competência entre os diversos ramos, freqüentemente suscitados naquelas situações chamadas de zonas gris, ou seja, em face de situações limítrofes que dificultavam a identificação do peculiar liame de trabalho que relacionava as partes contratantes.
No mesmo sentido, será desnecessária a fragmentação do processo, para soluções parciais por mais de um ramo do Judiciário, nos casos em que estejam envolvidos interesses de terceiros, sendo certo que, no velho regime, não se podia admitir a intervenção de terceiros no processo do trabalho, pois isso importava em contraposição de partes que não eram, uma e outra, empregado e empregador. A partir do momento em que a competência se define em função, não mais dos atores envolvidos, mas da relação de trabalho subjacente, passa a inexistir óbice à aplicação dos tradicionais institutos do processo comum.
Tais exemplos já são reveladores de expressivos ganhos de eficiencia do sistema implementados pela nova atribuição competencial.
Não bastasse isso, as estatísticas globais revelam que a JT encontra-se muito mais equilibrada que os demais ramos do Judiciário, quando consideradas as demandas a que estão sujeitos e a capacidade de solução das ações. Com efeito, a situação da Justiça Federal e da Estadual, ao menos em termos de números globais, é extremamente grave, em muitos casos caótica.
Além disso, a ampliação de sua capacidade em cerca de 25%, como decorrência da instalação de novas Varas, a ser ultimada neste ano, conferir-lhe-á potencial para absorver as novas demandas. Com isso, promover-se-á um alívio nos demais ramos, com evidente ganho geral do sistema em eficiência e produtividade.
Evidencia-se, portanto, que a redistribuição de competência, a par da racionalidade sociológica-política, também confere racionalidade técnica-econômica ao sistema Judiciário nacional, confluindo no sentido dos anseios nacionais de modernização, na medida em que será determinante de maior celeridade, eficiência e efetividade da prestação jurisdicional.
Não temos nenhuma dúvida, pois, da correção de rumos tomada pelo constituinte derivado, ao repartir de maneira mais racional e equilibrada o regime de competência dos diversos segmentos do Poder Judiciário. Os juízes do trabalho estão preparados para cumprir com brilho mais um serviço em prol da cidadania brasileira.
Nessas circunstâncias, não podemos permanecer inertes diante de interpretações restritivas, especialmente as preconceituosas que partam de outros segmentos ou instâncias do próprio Poder Judiciário, em detrimento da maior racionalidade viabilizada pela mudança.
Parecem-nos ainda mais graves as interpretações reducionistas que eventualmente tenham origem na própria magistratura trabalhista e que - sob o pálio de um pretenso receio de perda da "centralidade" das relações subordinadas, notadamente as de emprego, seja por equivocada boa-fé, seja por inescusável comodismo - recusem o enfrentamento desse grande desafio a ela oferecido pela sociedade brasileira.
A solução dos conflitos atinentes a todas as relações de trabalho humano, inclusive àquelas que também o são, concomitantemente, de consumo, são da competência da JT, posto que a nenhuma a Carta da República excluiu (apenas cumprindo ressalvar as pertinentes às relações estatutárias ou jurídicas-institucionais, ao menos enquanto subsistir, ou acaso se confirme, a cautelar monocraticamente concedida nos autos da ADIn 3.395 ajuizada junto ao STF).
Mesmo nas hipóteses em que o objeto da prestação de serviços por pessoa jurídica seja a relação de trabalho - entendidas como tais as situações em que a pessoalidade da prestação de trabalho por pessoa natural, e não o resultado dos serviços, seja da essência do contrato -, a competência para os conflitos emergentes dessa relação são da JT, ainda que a legitimidade para a ação possa ser da pessoa jurídica e não do prestador de trabalho que a ela se vincule por liame societário, gerencial ou empregatício.
Vencida essa estapa, o desafio maior dos juízes do trabalho é pugnar por avançar ainda mais, para abrigar as hipóteses de prestação de serviços por pessoas jurídicas cujo grau de dependência (econômica, técnica ou hierárquica) em relação ao tomador dos serviços seja manifesto. Como também lutar pela ampliação do elenco de direitos materiais que amparem os titulares dessas chamadas paraempresas, que, na feliz expressão de Dalegrave, são aquelas com "corpo de pessoa jurídica e alma de pessoa física".
Temos a plena convicção de que esses desafios, postos pela sociedade brasileira, por seu Parlamento, serão enfrentados e vencidos condignamente pela magistratura trabalhista, como sinaliza sua história recente, construída a partir das enormes dificuldades com que se defrontou e pautada pelo denodo e obstinação de seus integrantes, amadurecidos pelos embates e cônscios de seu papel na construção de um Judiciário mais eficiente e acreditado pela cidadania brasileira.